Um dos debates mais relevantes do mercado de gás natural no Brasil, nos últimos anos, está concentrado em um problema com várias facetas de natureza técnica, jurídica e regulatória: a classificação do Gasoduto Subida da Serra (GSS), um projeto de 31,5 quilômetros, em fase avançada de construção pela concessionária de serviços de gás canalizado Companhia de Gás de São Paulo (Comgás) como um reforço da infraestrutura — originalmente construída em 1992 — de ligação da Baixada Santista com a Região Metropolitana de São Paulo.
Em 2019, a Agência Reguladora dos Serviços Públicos de São Paulo (Arsesp) definiu a obrigação de a Comgás implementar o GSS como parte integrante do sistema estadual de distribuição de gás, com investimentos a serem incorporados na base de ativos da concessão e custeado pela tarifa paga pelos usuários paulistas. A Arsesp, cabe observar, atuou dentro da sua competência, como veremos neste artigo.
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No ano seguinte, a partir de representação formulada por entidade interessada, a Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP) considerou que o GSS deveria ser classificado como um “gasoduto de transporte”, visto que essa estrutura de tubulação supostamente conectaria fontes de suprimentos de gás a pontos de recebimento da Comgás.
Posteriormente, contudo, após a realização de vistorias técnicas e o fornecimento de esclarecimentos pela Arsesp e pela Comgás, a ANP constatou que o GSS constitui estrutura endógena ao sistema de distribuição de gás, devendo permanecer classificado como “gasoduto de distribuição”.
Não obstante isso, a ANP divulgou por meio da Consulta Pública n.º 10/2023 uma “minuta de acordo”, a ser celebrado com a Arsesp, contendo uma série de condicionantes regulatórias, operacionais e comerciais ao GSS, como (a) vedação de entrega de gás natural para consumidores finais fora da área de concessão da Comgás, inclusive swap; b) vedação à conexão à Unidade de Processamento de Gás Natural – UPGN (Rota 4), estocagens e outros Terminais de Gás Natural Liquefeito – GNL (exceto o Terminal de Regaseificação de São Paulo – TRSP); c) revisão do Decreto do Estado de São Paulo n° 65.889/202; d) o controle vazão do gás advindo do TRSP, vedando o uso de GSS além do volume já contratado pela Comgás com a Compass (proprietária do TRSP), e, por fim, e) possibilidade de conexão do transporte diretamente ao TRSP, acesso não discriminatório ao TRSP e monitoramento de práticas anti-concorrenciais. Na visão da ANP, essas limitações reduziriam o risco de divergências interpretativas e evitariam que o GSS assumisse características de um gasoduto de transporte.
As discussões ocorridas na Consulta Pública n.º 10/2023 suscitaram pelo menos duas grandes questões: (a) qual a natureza jurídica do GSS? e (b) a ANP pode estabelecer condicionantes regulatórias ao GSS?
No que tange à primeira questão, a Constituição estabelece que a cadeia do gás é composta pelas etapas de (a) exploração, produção, importação, transferência, processamento e transporte, consideradas atividades econômicas em sentido estrito, sujeitas à legislação federal e reguladas pela ANP (art. 177); e (b) distribuição, qualificada como um serviço público essencial, de competência estadual, executada pelas empresas distribuidoras e regulada pelos entes reguladores locais (art. 25, §2º).
A lógica utilizada pelo constituinte foi a de assegurar que, após a entrega do hidrocarboneto, o retalhamento e a distribuição do gás natural, por ser uma atividade considerada essencial para a concretização de direitos fundamentais e de interesse predominantemente local, é considerada um serviço público de competência dos Estados, submetida a uma regulação estatal mais intensa no que tange a aspectos como universalidade, continuidade e modicidade tarifária. Nesse sentido, questões como o diâmetro dos gasodutos, a pressão ou o volume movimentado não têm relevância para fins da definição da competência constitucional. Ao contrário, o foco está em sua destinação para atendimento das necessidades essenciais da população.
A partir das discussões havidas na Consulta Pública ANP n.º 10/2023, ficou claro que o GSS (a) ligará o city gate de Cubatão II aos consumidores finais dos serviços de distribuição de gás, em reforço aos gasodutos de distribuição existentes; (b) é uma estrutura interna à rede de distribuição da Comgás; (c) não possui qualquer ligação direta com fontes de suprimento de gás; e (d) em que pese ser um gasoduto de alta capacidade de movimentação, diâmetro e vazão, não tem a finalidade de promover a interligação da malha de transporte no território nacional, mas de atender aos usuários do sistema de distribuição de gás da região mais populosa do país. Confirmando este ponto, inclusive, cumpre destacar que a rede de gasodutos da Comgás já é composta por milhares de quilômetros de dutos de alta pressão.
Assim, fica evidente que o GSS é um gasoduto de distribuição e, consequentemente: (a) a sua outorga, regulação e fiscalização são de competência privativa do Estado de São Paulo; e (b) a sua operação está submetida às regras aplicáveis à prestação dos serviços públicos de distribuição de gás canalizado. Fixada esta premissa, temos que a imposição pela ANP de condicionantes a um gasoduto de distribuição seria inconstitucional por violação ao princípio federativo.
In casu, em linha com a contribuição da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp) na CP n.º 10/2023, a proposta de acordo elaborada pela ANP violaria o art. 25, §2º, da Constituição, pois o estabelecimento de regras aplicáveis à vazão dos gasodutos ou à realização de operações de swap entre as concessionárias de distribuição são matérias inseridas integralmente na competência estadual.
Ademais, a imposição pela ANP das limitações indicadas ao GSS criaria uma situação de assimetria regulatória indevida em prejuízo dos consumidores paulistas (diga-se especialmente da indústria paulista), haja vista a existência de diversos exemplos em outros Estados — como é o caso de Sergipe, Bahia, Amazonas, Pará, Rio de Janeiro e Alagoas — em que clientes ou concessionárias recebem moléculas de gás diretamente de fontes de suprimento, sem que haja passagem por dutos de transporte ou cobrança de tarifa de transporte. Caso as disposições contempladas na minuta de acordo proposto pela ANP vigorassem, o Estado de São Paulo estaria sendo onerado em comparação com estas outras unidades federativas ou estes outros projetos estariam sobre a mesma ameaça regulatória da ANP.
Por sua vez, a imposição de condicionantes à operação do GSS acarreta consequências negativas, entre as quais: (a) frustração da demanda projetada e, consequentemente, o desequilíbrio do contrato de concessão; (b) ineficiência alocativa, pois restringe o potencial do GSS em atender ao crescimento da demanda; (c) ociosidade permanente na utilização de parte do gasoduto, causando prejuízos aos usuários do serviço, que pagarão pela amortização de um bem subutilizado; e (d) estabelecimento de uma verdadeira reserva de mercado em favor das transportadoras, eliminando concorrência no suprimento da concessionária e o risco de demanda inerente à atividade de transporte de gás.
Neste contexto, o consentimento regulatório entre a ANP e a Arsesp, por meio de um instrumento negocial, pode constituir uma forma (não a única) para a convergência das funções administrativas desempenhadas pelas referidas agências reguladoras. Se for bem manejada, esta medida será profícua para a estabilidade jurídica do GSS, eliminando situação de incerteza surgida no processo de reclassificação do gasoduto empreendido pela ANP, nos exatos termos do art. 26 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro – LINDB (Decreto-Lei n. 4.657/1942, com redação dada pela Lei n. 13.655/2018).
Uma vez ajustados os termos do eventual acordo entre ANP e Arsesp, a próxima medida regulatória importante para endereçar as preocupações da ANP sobre o tema consiste em uma regulação adequada da tarifa de transporte de gás, o que é objeto de sua recente Consulta Pública n.º 15/2023. Trata-se, pois, de mais uma oportunidade de debater, em ambiente aberto, a estrutura de custos desta atividade tendo como parâmetro o disposto no art. 9º da Lei nº 14.134/2021.
Encontrar a devida solução para todas essas questões é crucial para a manutenção da segurança jurídica e regulatória, que envolve um setor essencial para a segurança energética, bem como para promover a sua competitividade — premissa básica para o bom funcionamento da economia brasileira.