Conflitos societários: a desinteligência dos sócios destruindo a empresa

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Nesta pequena série de três artigos no JOTA, abordarei um tema “gigante”, com inúmeros reflexos para o empresariado e recorrente no Judiciário: os conflitos societários e a apuração de haveres.

Pesquisa realizada em 2020, pela Höft Consultoria[1], aponta que 7 em cada 10 sociedades no Brasil desaparecem em decorrência de conflitos entre sócios. Por outro lado, regras claras de governança corporativa e procedimentos bem definidos, alinhados às estratégias de negócios das empresas tendem a minimizar tais conflitos.

Conflitos societários podem ter inúmeras causas e podem ser definidos como o desalinhamento entre os sócios[2] que podem gerar desgastes nas relações, culminando com a ruptura do vínculo societário, com a saída de um dos sócios da empresa, mas sempre atrapalhando o seu caminhar.

As startups, que também são sociedades empresariais, sofrem do mesmo mal. As ditas empresas inovadoras, disruptivas ou com modelos incrementais de negócios, possuem como segunda causa de insucesso o desalinhamento entre os sócios[3].

Nada mais natural. O início de uma sociedade, costuma-se comparar, seria igual ao namoro e a assinatura do contrato/estatuto social seria o noivado ou, para os mais apressados, já o casamento. Como se sabe, somente a maturidade (basta conversar com os mais velhos) ensina que o casamento deve ser construído dia após dia, com combinados claros e transparentes para ser durador.

O mesmo ocorre nas sociedades empresárias. Se o ato constitutivo for bem elaborado, com cláusulas bem estruturadas, inclusive e desde já se sugere, com acordo de sócios entabulado[4], as chances de desarmonia no seio social diminuem, pois as regras estarão claras, com direitos, deveres e responsabilidades alinhados.

Por outro lado, se as regras não estiverem claras, “poder” (ex. empreendedor de uma startup) e “capital” (ex. o fundo investidor da startup) dentro da empresa tendem a se chocar, quebrando a harmonia social, pelo desalinhamento das visões do negócio de cada parte.

Ocorrendo o conflito societário e sem que haja a possibilidade de harmonização dos interessados, todos perdem – sociedade, sócios, administradores, colaboradores, fisco, fornecedores etc. –, pois não raro as brigas internas levam a empresa à bancarrota[5].

A solução dos conflitos societários passa por diversas etapas e caminhos diferentes podem ser trilhados. É possível que os sócios se socorram e utilizem desde a negociação (técnica eficaz) até o Judiciário ou a arbitragem, passando pela conciliação, a mediação e a consulta ao especialista. Ainda, sempre recomendável a consulta a psicólogos e gestores de recursos humanos, pois a prática demonstra que as brigas muitas vezes são de profundo caráter emocional e não jurídico.

A título ilustrativo, pesquisa de 2023, realizada pelo Centro de Mediação e Arbitragem da Câmara de Comércio Brasil-Canadá (CAM-CCBC), retrata que a proeminência dentre as matérias tratadas em arbitragens é societária. Representando, em alguns casos, mais de 70% dos processos.[6]

Explica-se: os conflitos muitas vezes são fruto dos sentimentos e ressentimentos, em grupos familiares ou não[7]. Inveja, ciúmes, carência, reconhecimento, falta de reconhecimento geram desconfortos intangíveis e consequências danosas as relações humanas se não tratados.

Na área jurídica propriamente dita, existindo o conflito, vale aos profissionais diagnosticar o problema e sugerir o remédio adequado para a sua solução.

Preventivamente, entretanto, contratos/estatutos sociais bem redigidos, acompanhado de acordo de sócios, poderão prever e solucionar os conflitos antes mesmo que eles ocorram, balizados na vontade dos sócios. Valerá o princípio da autonomia privada das partes, basilar ao direito empresarial, inclusive refletindo a liberdade de contratar[8], a boa-fé objetiva e a validade do pactuado entre os sócios[9].

Veja-se: o sócio descontente com o caminhar da sociedade e com as decisões dos demais sócios poderá exercer o seu direito de retirada[10] ou recesso[11]. Se entabulado acordo de sócios, o sócio descontente poderá também exercer a opção de venda de sua participação societária; os sócios descontentes com um sócio podem, se houver falta grave[12], excluí-lo da sociedade. Se não houver falta grave, mas existir cláusula contratual, será possível exercer a opção de compra da participação societária. Todas são formas de resolver o impasse, a dar importância ao ajuste prévio.

Não é só: após a saída do sócio, independentemente da hipótese, chega-se à questão da apuração dos haveres, o valor que a sociedade (e não os sócios remanescentes) deve pagar para o sócio retirante.

Este valor, cuja forma de cálculo será mais discutida no segundo artigo desta série, inclusive com os seus desdobramentos tributários, deve ser justo, observado o real valor dos ativos corpóreos e incorpóreos da sociedade.

Nem o sócio retirante, nem os sócios remanescentes podem se enriquecer indevidamente[13] com a dissolução parcial da sociedade. E, acrescenta-se, o valor a ser pago não pode descapitalizar a empresa, sob pena de descontinuidade dos negócios e escalada do conflito. Tudo a robustecer quão relevante será a existência de um acordo inicial.

Assim, a desinteligência no seio da sociedade pode destruir a empresa, tirando players importantes da economia, sendo que muitas vezes isto acontece pela simples falta de diálogo e de cláusulas preventivas e estratégicas firmadas entre os sócios no início do empreendimento.

A experiencia ensina: antes de casar, namore; e quando for casar, já estabeleça as regras de convivência, facilitando o crescimento conjunto das relações societárias. Somente assim, sócios e sociedade conseguirão vencer os desafios apresentados pelo mercado.

[1] Disponível em: https://www.hoft.com/

[2] Os conflitos societários também podem envolver os administradores e a própria sociedade empresária.

[3] Pesquisa realizada pela Fundação Dom Cabral, intitulada “CAUSAS DA MORTALIDADE DAS STARTUPS BRASILEIRAS” mostra que quando a startup inicia as atividades com mais de um sócio, a chance de fracasso é maior. Fundadores entrevistados na pesquisa elencaram prováveis razões para a descontinuidade nesse cenário, sendo os principais: desalinhamento dos interesses; desentendimento entre as partes; falta de identificação com o negócio; mau relacionamento com investidores; tempo de adaptação às mudanças e às necessidades do mercado. Disponível em: https://www.fdc.org.br/conhecimento-site/blog-fdc-site/Documents/Causas_da_mortalidade_das_startups_brasileiras.pdf. Acesso aos: 06/06/2024.

[4] “Fato é que os acordos de acionistas, embora estranhos ao estatuto, podem modificar algumas das regras ali predispostas quanto à sua aplicação às partes acordantes, o que não os transforma em ilegais ou contrários às normas. O resultado nesses casos é apenas a não-produção de efeitos contra terceiros, podendo ser invocados entre as partes e entre estas e a companhia quando devidamente arquivados na sede social. A disciplina é similar àquela das sociedades em que o contrato ainda não tenha sido levado a registro. […].”  (STAJN, Rachel. Acordo de Acionistas. In: SADDI, Jairo (org.) Fusões e Aquisições: Aspectos Jurídicos e Econômicos. São Paulo: IOB Thomsom e IBEMEC Law, 2002. p. 276).

[5] TUTELA DE URGÊNCIA – Societário – Decisão que deferiu o pedido para afastar o agravante da gestão da empresa, procedendo à nomeação de administrador judicial – Probabilidade do direito e perigo de dano evidenciados, de modo a justificar a providência cautelar deferida – Requisitos do art. 300, do CPC, preenchidos – Indícios, ao menos neste momento processual, de que a gestão da sociedade não está sendo devidamente exercida pelo agravante, justificando a excepcionalidade da nomeação de administrador judicial – Alta litigiosidade entre as partes, o que está prejudicando os interesses da sociedade – Decisão mantida – Recurso improvido.” (realce nosso) (TJ-SP – AI: 20884533420238260000 São Paulo, Relator: J. B. Franco de Godoi, Data de Julgamento: 13/07/2023, 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, Data de Publicação: 13/07/2023).

[6] Disponível em https://canalarbitragem.com.br/wp-content/uploads/2023/10/PESQUISA-2023-1010-0000.pdf. Acesso aos 04/06/2024.

[7] A quebra do affectio societatis pode não ser a causa exclusiva para a saída de um sócios, mas certamente contribui muito para a tomada da decisão. “A affectio societatis é hoje entendida como a disposição dos sócios em manter o esforço ou investimento comum (…) Esvaindo a disposição, a sociedade se dissolve, total ou parcialmente. A affectio societatis é a disposição dos sócios em formar e manter a sociedade uns com os outros.” (COELHO, Fábio. Capítulo 28. Constituição da Sociedade Limitada In: COELHO, Fábio. Curso de Direito Comercial: Sociedades. São Paulo (SP):Editora Revista dos Tribunais. 2022).

Enunciado 67 – I Jornada de Direito Civil – A quebra do affectio societatis não é causa para a exclusão do sócio minoritário, mas apenas para dissolução (parcial) da sociedade.

[8] Humberto Theodoro Junior: “Sob tal enfoque, a Lei 13.874/2019, alterou a redação do art. 421 do Código Civil e acrescentou-lhe o art. 421-A, de modo a explicitar a verdadeira ideologia relativamente ao direito dos contratos. Adotou, assim, o princípio da intervenção estatal mínima e da excepcionalidade da revisão contratual, objetivando limitar a atuação de magistrados que, a pretexto de interpretar o contrato, acabam, muitas vezes, por alterar as cláusulas contratuais, distanciando-se da declaração negocial e menosprezando a real intenção dos contratantes manifestada no momento da celebração do negócio.  De fato, prevalece no negócio jurídico a autonomia privada dos contratantes, razão pela qual a intervenção estatal deve ser limitada e excepcional, apenas para evitar abusos e impedir a violação pelas partes de lei de ordem pública, sempre dentro dos casos e parâmetros que a lei aplicável ao contrato prevê e sem discricionariedade do aplicador. Interpretações analógicas e ampliativas também devem ser evitadas, pelo caráter excepcional com que a intervenção judicial é, em princípio, franqueada pelo direito obrigacional privado. Com a explicitação da Lei nº 13.874/2019, fica positivado que integração e revisão contratuais por obra da justiça somente se legitimam dentro das figuras expressamente autorizadas pela legislação, tais como no erro (art. 144, do CC), na lesão (art. 157, § 2º, do CC), na teoria da imprevisão (arts. 317 e 479, do CC), na defesa do consumidor (art. 6º, V, do CDC), na renovação compulsória das locações comerciais (art. 51, da Lei nº 8.245/1991), na revisão periódica de aluguéis (art. 19 da Lei nº 8.245/1991) etc.”. JR., Humberto T. Negócio Jurídico. Pág.142. São Paulo: Grupo GEN, 2020. E-book. ISBN 9788530992835. Disponível em: https://app.minhabiblioteca.com.br/#/books/9788530992835/. Acesso em: 27 mar.2024.

[9] PROCESSUAL CIVIL. Ofensa ao princípio da dialeticidade que não se identifica na espécie. Cerceamento de defesa que não se verifica. Magistrado que expôs satisfatoriamente as razões do seu convencimento. Hipótese em que as provas materiais dispensavam o prolongamento da instrução. Princípio constitucional que impõe a razoável duração do processo. Art. 5º, LXXVIII, da CF. Julgamento antecipado que, nessas circunstâncias, é dever do Juiz, não mera faculdade. CONTRATO. Ajuste que prevê expressamente a possibilidade de denúncia unilateral imotivada. Coligação dos contratos que não importa ao deslinde da quaestio. Interpretação da cláusula contratual na sua integralidade. Renovação que exigia comunicação por escrito. Meras intenções informais que, à míngua de outros elementos criadores de efetiva expectativa, não vinculam. Intenção de renovar que não se confunde com o ato renovatório em si. Denúncia que antecedeu a renovação em cerca de 04 meses. Liberdade contratual e previsão de denúncia mediante aviso prévio de 90 dias e multa pela extinção prematura que elidem as teses de abuso de direito e de afronta à boa-fé objetiva. Art. 421, par. ún., do CC. Prevalência do pacta sunt servanda. Sentença mantida. Recurso desprovido. (TJSP; Apelação Cível 1005250-62.2020.8.26.0562; Relator (a): Ferreira da Cruz; Órgão Julgador: 28ª Câmara de Direito Privado; Foro de Santos – 8ª Vara Cível; Data do Julgamento: 07/06/2022; Data de Registro: 08/06/2022). Do acórdão em questão, extrai-se o seguinte trecho: “No mais, à luz do pacta sunt servanda e da liberdade contratual, o negócio jurídico de fls. 42/60, voluntariamente celebrado e com previsão de denúncia mediante aviso prévio de 90 dias e multa pela extinção prematura, ambos cumpridos (inexistindo pedido nesse sentido fls. 18), elidem as teses de abuso de direito e de afronta à boa-fé objetiva”.

[10] Artigo 1.029, caput, do Código Civil: Além dos casos previstos na lei ou no contrato, qualquer sócio pode retirar-se da sociedade; se de prazo indeterminado, mediante notificação aos demais sócios, com antecedência mínima de sessenta dias; se de prazo determinado, provando judicialmente justa causa.

[11] Artigo 1.077 do Código Civil: Quando houver modificação do contrato, fusão da sociedade, incorporação de outra, ou dela por outra, terá o sócio que dissentiu o direito de retirar-se da sociedade, nos trinta dias subseqüentes à reunião, aplicando-se, no silêncio do contrato social antes vigente, o disposto no art. 1.031.

[12] Artigo 1.031 do Código Civil: Art. 1.031. Nos casos em que a sociedade se resolver em relação a um sócio, o valor da sua quota, considerada pelo montante efetivamente realizado, liquidar-se-á, salvo disposição contratual em contrário, com base na situação patrimonial da sociedade, à data da resolução, verificada em balanço especialmente levantado. E,

Art. 1.085 do Código Civil: Art. 1.085. Ressalvado o disposto no art. 1.030, quando a maioria dos sócios, representativa de mais da metade do capital social, entender que um ou mais sócios estão pondo em risco a continuidade da empresa, em virtude de atos de inegável gravidade, poderá excluí-los da sociedade, mediante alteração do contrato social, desde que prevista neste a exclusão por justa causa.

[13] Art. 884, CC. Aquele que, sem justa causa, se enriquecer à custa de outrem, será obrigado a restituir o indevidamente auferido, feita a atualização dos valores monetários.