Confiança nas instituições públicas em queda na América Latina

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A confiança pública constitui um elemento estruturante da vida democrática e uma condição essencial para a formulação e implementação eficazes de políticas públicas. Em contextos marcados por desigualdades persistentes, pressões econômicas e tensões políticas, como é característico de grande parte da América Latina e Caribe, a confiança no Estado e em suas instituições assume papel ainda mais central.

Ela opera simultaneamente como um indicador das percepções sociais sobre o desempenho governamental e como um recurso estratégico que facilita a cooperação necessária para sustentar intervenções de interesse público. Dessa forma, compreender a formação, a erosão e a reconstrução da confiança institucional tornam-se imperativo para aprimorar a governança e consolidar a legitimidade democrática.

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O levantamento conduzido pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico entre 2023 e 2025 – o primeiro exercício regional no âmbito do Global Trust Survey Project – fornece um panorama abrangente das percepções de confiança em dez países da América Latina e Caribe.

Seus achados evidenciam tanto convergências quanto divergências em relação aos padrões observados em países da OCDE, revelando que, embora as dinâmicas regionais dialoguem com tendências globais, as particularidades sociopolíticas latino-americanas moldam de forma significativa as avaliações institucionais.

Um dado ilustrativo dessa especificidade é que 60% das pessoas na região apontam crime ou violência como uma das três questões mais prementes de seus países, proporção que corresponde ao dobro do verificado no conjunto da OCDE. Essa preocupação generalizada fornece parte do pano de fundo sobre o qual se constroem percepções de eficácia, integridade e responsividade estatal.

A confiança no governo nacional permanece relativamente baixa: apenas 35% dos entrevistados na América Latina e Caribe expressam confiança alta ou moderadamente alta, enquanto 48% manifestam baixa ou nenhuma confiança. Na OCDE, essa parcela é de 39%, o que demonstra que, mesmo diante de níveis globalmente modestos de confiança, a região enfrenta desafios ainda mais agudos.

Além disso, a distribuição da confiança entre instituições é heterogênea. Assim como nos países da OCDE, instituições de segurança, como polícia e forças armadas, figuram entre as mais confiáveis; já partidos políticos e legislativos tendem a receber avaliações muito inferiores. Os governos locais, por sua vez, registram 37% de confiança na região – número inferior aos 45% observados na OCDE, mas superior à confiança nos governos nacionais.

Entretanto, diferentemente do padrão médio nos países desenvolvidos, a administração pública nacional apresenta níveis de confiança mais baixos do que o governo nacional, alcançando apenas 32%, o que sugere uma percepção crítica quanto à eficiência, previsibilidade e imparcialidade da burocracia estatal.

Entre os fatores que modulam a confiança pública, destacam-se variáveis relacionadas à percepção de agência política, isto é, capacidade de influenciar as decisões. A sensação de possuir voz no processo decisório é particularmente determinante: 66% das pessoas que acreditam que indivíduos semelhantes a elas têm influência nas decisões governamentais confiam no governo nacional, ao passo que entre aquelas que não se sentem ouvidas esse percentual cai para 21%.

Essa discrepância de 45 pontos percentuais demonstra como a exclusão subjetiva dos processos decisórios corrói a legitimidade institucional. Também se observa forte influência do partidarismo: a confiança no governo é 23 pontos percentuais maior entre os que votaram ou votariam em partidos que compõem o governo. Essa diferença estende-se a instituições administrativas, incluindo o serviço civil e o sistema eleitoral, indicando que identidades político-partidárias estruturam percepções mais amplas sobre o Estado.

Embora diferenças demográficas — como gênero ou idade — tenham impacto relativamente reduzido, elas não são irrelevantes. Mulheres confiam 3 pontos percentuais menos no governo do que homens, enquanto jovens de 18 a 29 anos confiam 4 pontos menos do que adultos de 50 anos ou mais.

Tais discrepâncias, contudo, são sensivelmente menores do que as observadas na OCDE, sugerindo que, na América Latina e Caribe, aspectos sociopolíticos e socioeconômicos pesam mais do que fatores demográficos isolados. Nesse sentido, condições de vulnerabilidade exercem papel expressivo: insegurança financeira reduz a confiança em 15 pontos percentuais, o medo do crime em 9 pontos, e a identificação com grupos discriminados, em 7 pontos.

As interações cotidianas com o Estado também desempenham papel decisivo. Ainda que serviços administrativos obtenham níveis relativamente altos de satisfação — 55% dos usuários se declaram satisfeitos —, serviços essenciais revelam avaliações mais baixas: apenas 50% estão satisfeitos com a educação e 40% com a saúde. Tais resultados evidenciam déficits estruturais na provisão de bens públicos essenciais, afetando a percepção de capacidade estatal.

Acresce-se a isso um quadro preocupante relacionado a justiça e integridade administrativas: somente 36% acreditam que pedidos de benefícios governamentais seriam tratados de forma justa, e apenas 31% consideram provável que servidores recusariam subornos. Essas percepções não apenas deterioram a confiança na administração pública, mas também reforçam sentimentos de vulnerabilidade e desigualdade de tratamento.

Apesar dessas fragilidades, há indícios de capacidade institucional responsiva: 43% dos entrevistados consideram provável que serviços públicos melhorem após reclamações, sugerindo que uma parcela significativa da população identifica potencial para ajustes e correções por parte do Estado.

Esse dado é particularmente relevante porque a satisfação com serviços administrativos é identificada como o principal determinante da confiança na burocracia nacional e o segundo mais influente para explicar a confiança em governos locais, perdendo apenas para a percepção de capacidade de influenciar decisões comunitárias.

A confiança também é moldada pela percepção da capacidade governamental de lidar com questões complexas, incluindo desafios de longo prazo. A crença de que governos equilibram interesses entre gerações é compartilhada por 46% dos entrevistados, proporção superior à média da OCDE, embora persista ceticismo quanto à preparação para emergências e à utilização sistemática de evidências científicas na formulação de políticas.

Essas percepções influenciam diretamente o nível de confiança tanto no governo nacional quanto na administração pública, indicando que aprimoramentos nos processos de planejamento, análise técnica e transparência podem exercer impacto significativo na legitimação estatal.

A forma como cidadãos acessam e interpretam informações também condiciona seus níveis de confiança. Notavelmente, 42% dos latino-americanos e caribenhos confiam na mídia — valor superior à confiança no governo nacional. Além disso, 72% utilizam redes sociais para obter informações políticas, índice muito acima dos 49% médios da OCDE.

Essa dependência de plataformas digitais, em combinação com a menor confiança nas estatísticas oficiais — menos de um quarto considera tais dados confiáveis ou facilmente acessíveis —, amplia riscos associados à desinformação e limita a capacidade estatal de comunicar reformas e escolhas de política pública. Apenas 36% acreditam que os governos explicam claramente como reformas impactam suas vidas, o que enfraquece a compreensão pública e alimenta ceticismo.

A partir desse diagnóstico, emergem diretrizes para fortalecer a confiança pública. Aprimorar a qualidade das interações cotidianas com o Estado é essencial, com ênfase na ampliação da equidade, velocidade e responsividade dos serviços. Investimentos em digitalização acompanhada de proteção adequada de dados e transformação administrativa orientada por integridade podem gerar ganhos substantivos.

Da mesma forma, o fortalecimento da capacidade estatal de formular políticas baseadas em evidências, de planejar para o longo prazo e de preparar-se para emergências tem potencial claro para consolidar a confiança no governo nacional e na administração pública.

A ampliação da accountability e da participação política é igualmente crucial. Quando cidadãos percebem independência dos poderes, fiscalização legislativa efetiva e oportunidades reais de engajamento, tendem a atribuir maior legitimidade às instituições. Por fim, a promoção de um ambiente midiático saudável e a comunicação governamental transparente são indispensáveis para assegurar que a população compreenda políticas e serviços, reduzindo incertezas e fortalecendo o vínculo entre governantes e governados.

A confiança pública, portanto, não é apenas reflexo de avaliações conjunturais, mas um componente orgânico de uma governança democrática robusta. Os resultados do levantamento revelam uma região que enfrenta desafios significativos, mas que dispõe de bases promissoras para reconstruir e ampliar a confiança institucional.

Em um cenário de rápidas transformações sociais e tecnológicas, consolidar relações de confiança entre Estado e sociedade é não apenas desejável, mas essencial para promover estabilidade, inclusão social ativa e desenvolvimento sustentável na região.

O Brasil está melhor, mas não muito.

Em comparação com os demais países da América Latina e, em certos aspectos, com as economias da OCDE, o Brasil apresenta pontos de desempenho relativamente fortes que o colocam como exceção positiva na região. A confiança no sistema eleitoral é o exemplo mais evidente: com 48% dos brasileiros demonstrando confiança, o país supera amplamente seus vizinhos latino-americanos e aproxima-se dos patamares observados em países mais desenvolvidos.

Da mesma forma, a percepção de justiça no tratamento de benefícios sociais — também em 48% — coloca o Brasil bem acima da média regional, sugerindo a consolidação de políticas públicas eficazes, como o Bolsa Família. Além disso, o Brasil se destaca por manter níveis de confiança na administração pública que não ficam abaixo da confiança no governo nacional, algo incomum na região.

Esses indicadores, somados à confiança relativamente maior nas Forças Armadas e à percepção positiva sobre respostas administrativas após reclamações, contribuem para elevar a média latino-americana em métricas de confiança institucional.

Por outro lado, o Brasil ainda enfrenta fragilidades expressivas quando comparado tanto à América Latina quanto à OCDE. A percepção de tratamento igualitário por parte dos servidores públicos é inferior à média regional e muito distante dos padrões observados em países desenvolvidos, evidenciando um problema estrutural de imparcialidade administrativa.

A satisfação com serviços essenciais, como saúde e educação, tende a se situar apenas na média ou ligeiramente abaixo dela, reforçando a sensação de insuficiência na capacidade estatal de entrega. Mais amplamente, o país opera em um cenário de baixa confiança institucional, no qual o governo nacional frequentemente não alcança nem a média regional e permanece aquém dos níveis da OCDE.

Questões relacionadas à integridade, corrupção e falta de independência judicial aprofundam esse quadro, indicando desafios persistentes para o fortalecimento da credibilidade do Estado e para o alinhamento do Brasil aos padrões de confiança das economias mais avançadas.

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Em síntese, o diagnóstico regional e a posição do Brasil dentro dele deixam claro que avanços relevantes na construção da confiança pública dependem diretamente de melhorias estruturais nos padrões de planejamento governamental e na qualidade da avaliação de políticas públicas.

A percepção de que governos não explicam suficientemente suas escolhas, de que serviços essenciais permanecem aquém das necessidades e de que decisões nem sempre se baseiam em evidências reforça a urgência de institucionalizar mecanismos mais robustos de análise, monitoramento e transparência.

Em um contexto no qual a confiança é profundamente influenciada pela capacidade de o Estado demonstrar coerência, previsibilidade e preparo para desafios de longo prazo, aprimorar processos de planejamento estratégico — incorporando avaliação de impacto, uso sistemático de dados e comunicação clara — torna-se condição indispensável para elevar padrões de governança.

Embora o Brasil se destaque positivamente em domínios como confiança no sistema eleitoral e justiça distributiva de benefícios sociais, esses pontos fortes não neutralizam as fragilidades persistentes ligadas à desigualdade de tratamento, à percepção de corrupção e ao desempenho insuficiente em serviços essenciais.

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Para transformar esses desafios em oportunidades de fortalecimento institucional, o país precisa avançar rumo a uma cultura governamental que valorize avaliação contínua, aprendizado institucional e accountability.

O aprimoramento do planejamento governamental e da avaliação de políticas não é apenas uma demanda técnica, mas um vetor decisivo para reconstruir a legitimidade democrática, reduzir incertezas e consolidar uma relação de confiança mais sólida e duradoura entre Estado e sociedade.


OECD (2025), OECD Survey on Drivers of Trust in Public Institutions in Latin America and the Caribbean 2025 Results, OECD Publishing, Paris, https://doi.org/10.1787/ea3385cf-en.