Condições análogas à escravidão: impactos de novas regras

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Há mais de 20 anos a Lei 10.803/2003 introduziu no Código Penal[1] o primeiro conceito de trabalho análogo à escravidão, impondo pena de 2 a 8 anos ao empregador condenado pela prática desse crime, aumentada de metade quando praticado contra criança ou adolescente, ou por motivo de preconceito de raça, cor, etnia, religião ou origem. 

Além disso, o Brasil é signatário das Convenções 29 e 105 da OIT (Organização Internacional do Trabalho), e de outras normas que tratam sobre trabalho forçado, e assumiu o compromisso de erradicar formas modernas de escravidão conforme Objetivo de Desenvolvimento Sustentável 8.7 da Agenda 2030 da ONU[2].

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No entanto, ainda precisamos avançar muito em relação a este tema. Relatório do Ministério do Trabalho revelou que 248 empregadores foram incluídos em 2024 no Cadastro de Empregadores por terem submetido trabalhadores a condições análogas à de escravidão – número recorde já computado.[3]

Neste contexto de violação de direitos humanos foi recentemente publicada a Portaria Interministerial 15/2024, do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) e do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC), que estabelece regras para o cadastro de empregadores que tenham submetido trabalhadores a condições análogas à escravidão.

Segundo a Portaria, o conceito de trabalho análogo à escravidão (art.19, V)[4] pouco difere do exposto no Código Penal (art. 149), que contempla sujeitar pessoa a trabalhos forçados, jornada exaustiva, condições degradantes de trabalho ou servidão por dívidas. No local de trabalho condutas como vigilância ostensiva, cerceamento de uso de meio de transporte ou apreensão de documentos ou objetos pessoais para reter a pessoa no lugar também configuram o ilícito.

O destaque da Portaria é ter reconhecido expressamente a submissão de trabalhadores à condição análoga à escravidão como forma de violação de direitos humanos e trabalhistas, da função social da organização e da transparência, passível de penalidades no âmbito do Poder Executivo (art. 1º).

A inclusão de empregadores no cadastro decorre de decisão administrativa irrecorrível de procedência de auto de infração, lavrado em ação que constate a exploração de trabalho em condições análogas à escravidão. Cabe ao MTE, por meio da Secretaria e Inspeção do Trabalho e de seus Auditores Fiscais do Trabalho, fiscalizar em âmbito nacional o cumprimento da legislação trabalhista.[5]

A exclusão do cadastro pode se dar via celebração de TAC – Termo de Ajustamento de Conduta, com a participação do MTE e do MDHC, com o fim de reparar danos causados, sanear irregularidades e adotar medidas preventivas e promocionais para evitar futuras ocorrências de trabalho análogo à escravidão.

A celebração de TAC é acompanhada de pagamento de eventuais débitos trabalhistas (inclusive FGTS), débitos previdenciários, ressarcimento do valor do seguro-desemprego à União e outras medidas de reparação individual aos trabalhadores em no mínimo 2% do faturamento bruto do empregador.

Celebrado TAC ou acordo judicial o empregador passa a integrar o CEAC – Cadastro de Empregadores em Ajustamento de Conduta por 2 anos, contados da inclusão. Neste período a fiscalização irá monitorar a regularidade das condições de trabalho. Verificada reincidência, pode seguir inscrito por mais 2 anos após decisão irrecorrível de procedência de novo auto de infração.

A Portaria impôs ainda medida preventiva a ser adotada por empregador que celebrou TAC ou acordo judicial – a “elaboração e implementação de monitoramento continuado do respeito aos direitos humanos e trabalhistas na cadeia de valor do empregador, incluídos todos os trabalhadores que lhe prestem serviço, sejam eles contratados direta ou indiretamente, e que tenha por objetivo não somente eliminar as piores formas de exploração, como o trabalho análogo à escravidão, mas promover o trabalho decente” (art. 7º , inciso VI).

Em seu anexo, traz diretrizes e requisitos mínimos para a elaboração e implementação de Programa de Gerenciamento de Riscos e Resposta a Violações de Direitos Humanos e Trabalhistas (PGRVDHT), abrangendo toda a cadeia de valor, ou seja, todos os produtos e serviços de uma organização e todas as etapas necessárias à sua fabricação e distribuição, desde a extração de matérias primas até a entrega ao cliente final.

A maioria dos casos de identificados na lista de violadores tem como pano de fundo ambientes rurais e grandes infraestruturas de obras. Olhando para a Portaria, esta se refere a empresas ao tratar de empregador, mas como a CLT – Consolidação das Leis do Trabalho em seu artigo 2º, §1º[6] equipara para fins trabalhistas a empregador profissionais liberais e entidades sem fins lucrativos, entendemos que a Portaria a eles também se aplica quando admitem trabalhadores como empregados. Portanto, todos aqueles que empregam estão sujeitos à fiscalização – inclusive quem emprega no âmbito doméstico.

Monitorar a cadeia de valor, processos produtivos e estratégicos para identificar e evitar riscos de violações de direitos humanos e trabalhistas[7] é para além de uma medida preventiva, boa prática que se recomenda. Realizar diagnóstico prévio a partir das diretrizes do PGRVDHT, analisando e aprimorando o conjunto de políticas internas e externas, contratos e processos para que estejam em conformidade com as normas aplicáveis é medida preventiva e de grande relevância.

Mesmo sendo o PGRVDHT obrigação imposta unicamente a quem já foi autuado por submeter trabalhadores à condição análoga à escravidão ou que firmaram TAC ou acordo judicial, medidas de identificação do nível de risco e gravidade da violação de direitos, ações preventivas e de ajuste de procedimentos com relação à própria atuação, como de fornecedores e prestadores de serviços, são um guia para que empregadores evitem violações e atuem na proteção de direitos humanos e trabalhistas.

A Portaria Interministerial 15/2024 é marco importante na luta contra o trabalho escravo no Brasil, diante do que não poderíamos deixar de destacar o relevante papel histórico de organizações da sociedade civil na luta pela criação da lista que expõe os violadores de direito, antes mesmo que esta se tornasse uma política pública.

As organizações também têm atuado com primazia em iniciativas para acolhimento e reabilitação de vítimas de trabalho escravo em diversos ambientes, inclusive em espaços domésticos e na denúncia de situações de violação. Mas qualquer pessoa pode de forma anônima denunciar trabalho análogo à escravidão pelo Sistema Ipê. Detalhar informações ajuda na atuação da fiscalização do trabalho.

Normas já existem e medidas de fiscalização e penalização vem sendo adotadas em território brasileiro, mas como vimos, ainda há muito o que se fazer.

Erradicar o trabalho forçado e acabar com a escravidão moderna são objetivos do desenvolvimento sustentável. Contribuir para que se concretizem é dever do Estado, das organizações e de todos nós.  Previna e denuncie!

[1] Art. 149. Reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto:  Pena – reclusão, de dois a oito anos, e multa, além da pena correspondente à violência.  § 1º Nas mesmas penas incorre quem: I – cerceia o uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho;  II – mantém vigilância ostensiva no local de trabalho ou se apodera de documentos ou objetos pessoais do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho.  § 2º A pena é aumentada de metade, se o crime é cometido: I – contra criança ou adolescente;  II – por motivo de preconceito de raça, cor, etnia, religião ou origem. 

[2] Disponível em https://www.unodc.org/lpo-brazil/pt/frontpage/2019/05/ods-8–sobre-trabalho-decente-e-crescimento-econmico—um-dos-objetivos-do-ms-em-maio.html#:~:text=Objetivo%208%20%2D%20Promover%20o%20crescimento,decente%20para%20todas%20e%20todos. Último acesso: 01/09/2024.

[3] Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2024-04/trabalho-escravo-governo-inclui-248-empregadores-em-lista-suja. Último acesso: 01/09/2024.

[4] Art. 19. Considera-se risco a direitos humanos e trabalhistas uma situação na qual, devido a circunstâncias fáticas, há possibilidade de violação:

(…)

V – à proibição de submissão de trabalhador a condição análoga à escravidão, seja, alternativamente, por meio de sua submissão a trabalhos forçados, a jornada exaustiva, a condições degradantes de trabalho, a servidão por dívidas, a manutenção de vigilância ostensiva no local de trabalho, a cerceamento do uso de qualquer meio de transporte ou a apoderamento de documentos ou objetos pessoais com o fim de reter o trabalhador no local de trabalho;

(…).”

[6] Art. 2º – Considera-se empregador a empresa, individual ou coletiva, que, assumindo os riscos da atividade econômica, admite, assalaria e dirige a prestação pessoal de serviço.

1º – Equiparam-se ao empregador, para os efeitos exclusivos da relação de emprego, os profissionais liberais, as instituições de beneficência, as associações recreativas ou outras instituições sem fins lucrativos, que admitirem trabalhadores como empregados.

[7] 2. O monitoramento e a responsabilidade pelo saneamento e pela reparação de violações a direitos humanos e trabalhistas abrangerão os trabalhadores diretamente contratados pela empresa e os trabalhadores contratados:

I – por prestadora de serviço terceirizado; e

II – por fornecedor direto cuja atividade esteja vinculada à confecção ou distribuição dos produtos ou à prestação dos serviços explorados economicamente pelo empregador.

2.1. A empresa deverá monitorar, sanear e reparar as violações a direitos humanos e trabalhistas tanto dos trabalhadores contratados diretamente quanto dos trabalhadores terceirizados por fornecedor direto e, ainda, dos trabalhadores quarteirizados por prestadora de serviço terceirizado.