Comunidade garifuna requer acesso a território e denuncia ameaças em Honduras

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Um dia depois de ouvir descendentes do povo indígena Manta Wankavika, na comunidade de Salango, no Equador, a Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) realizou audiência sobre mais um caso relacionado a direitos coletivos, desta vez envolvendo a comunidade garifuna de Cayos Cochinos contra o Estado de Honduras. Em sessão no último dia 21/5, representantes garifunas, povo fruto da miscigenação entre indígenas aruaques, caribenhos e africanos escravizados, afirmaram sofrer ameaças e restrições por parte da fundação privada que administra o território, e reclamaram reconhecimento das terras ancestrais.

Trata-se de uma área protegida, em Cayos East End, Bolaños e Chachahuate, um arquipélago hondurenho, atualmente administrada por uma organização privada, a Fundação Cayos Cochinos. Segundo representantes da comunidade garifuna, que habita a região há mais de 200 anos, a organização está por trás de intimidações e desaparecimentos de integrantes locais, além do desmatamento e exploração da região.

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Esse é o quarto caso de uma comunidade garifuna hondurenha que chega à Corte Interamericana de Direitos Humanos. A audiência em questão foi realizada excepcionalmente na Cidade da Guatemala, capital guatemalteca, como parte do 176º Período de Sessões da Corte IDH.

“A presença garifuna data de 1797, desde antes que Honduras fosse um Estado”, explicou aos juízes da Corte IDH uma de suas representantes, Ana Mabel Ávila Robledo. “O território de Cayos Cochinos representa nossa cosmovisão, nossa fonte de recursos econômicos, nossa relação com o mar e nossa espiritualidade”, afirmou aos juízes.

Ela disse ainda que não houve nenhum tipo de consulta à comunidade pelos planos de manejo e gestão na região. Segundo Ana Mabel, a fundação não aplica conhecimentos tradicionais, e a área é gerida ainda pelas Forças Armadas e a organização Ecológica S.A., com “os 47 empresários mais poderosos de Honduras”.

“A comunidade não participa”, disse. “A fundação não conserva, ela destrói a área. Em teoria é uma coisa, na prática é outra”, completou.

Mais de dez programas de realities shows já foram gravados no local, denunciam representantes garifunas. “Pescadores são proibidos de sair, e a comunidade não pode passar. Se é uma área protegida, por que deixam filmar realities shows ali?”, indagou.

Ainda segundo Ana Mabel, a comunidade já enviou petições ao Congresso, ao Tribunal Superior de Contas e até à Presidência para que seja realizada uma auditoria na fundação, que cobra tarifas aos turistas para entrar na ilha.

“Já fizemos todas as denúncias pertinentes, mas até hoje não recebemos nenhuma resposta”, disse ela.

Perguntada sobre como acredita que a Corte IDH poderia garantir o direito à posse ancestral das terras, a representante afirmou:

“Devolvendo nossas terras, a posse do arquipélago e tirando a Fundação Cayos Cochinos. Não somos contra a conservação, mas a fundação não está conservando a região, está lucrando com ela. E que garantam nossa soberania alimentar”.

Também representante da comunidade garifuna, Silvinio Córdoba García, pescador desde os 9 anos, afirmou que o mar é “um patrimônio de vida”. E que, desde que a fundação assumiu a administração da área, enfrenta uma série de restrições para realizar a atividade que aprendeu dos pais e avós. Relatou, ainda, uma série de ameaças sofridas por ele e seus colegas.

“Militares me tiraram da minha embarcação, me jogaram em alto-mar, com um companheiro. Fomos resgatados por outros pescadores que estavam por ali e nos levaram à terra firme”, contou. “Eram militares, andavam armados e numa lancha da fundação Cayos Cochinos”.

Ele afirmou que nunca recuperou sua embarcação. Apesar de ter denunciado o ocorrido, diz que nada aconteceu. “São pessoas poderosas”, contou.

‘Convivência não é pacífica’

Em 2002, o Instituto Nacional Agrário (INA) emitiu três títulos de propriedade em favor dos garifunas, que deveriam ser registrados no Registro de Terras das Ilhas da Baía. Mas o pedido foi negado. Após múltiplas ações de reivindicação, entre 2006 e 2007 a comunidade garifuna obteve os títulos de propriedade do território de Cayos Cochinos. Mas até hoje, afirmaram representantes garifunas, a documentação não é suficiente para garantir “uma convivência pacífica” na região.

Para a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, o Estado hondurenho é responsável pela falta de saneamento das terras e territórios ancestrais e pela ausência de uma consulta prévia, livre e informada à comunidade garifuna. Tampouco foram realizados estudos ambientais e sociais, como estabelecem os estândares americanos.

“A região foi declarada área natural protegida em 1993, e depois monumento natural marinho em 2003, quando a administração foi outorgada à fundação, sem nenhum tipo de participação da comunidade, afetando seu uso da propriedade e dos recursos coletivos”, afirmaram membros da CIDH.

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Ainda de acordo com a Comissão Interamericana, as restrições adversas a áreas do território afetaram a pesca artesanal, assim como as atividades de turismo e filmagens de TV não levaram em conta as práticas de subsistência local, afetando o gozo de seus direitos territoriais, cultura e alimentação, a forma como a comunidade se organiza e funciona, com seus costumes ancestrais, e gerou uma situação de temor, ansiedade e insegurança.

“As ameaças, intimidações e outros atos de violência por agentes estatais no âmbito da criação da área natural e posterior monumento natural marinho seguem sem investigação até hoje”, disseram na audiência representantes da CIDH.

Assim, afirmaram, o Estado hondurenho violou o direito à propriedade coletiva e à consulta prévia, livre e informada e aos direitos culturais da comunidade garifuna e seus membros. Além disso, a falta de recursos efetivos para remediar essas afetações vulnerou o direito às garantias judiciais e proteção judicial, assim como o direito à integridade pessoal dos membros da comunidade.

“O caso coloca questões de ordem pública interamericana que permitirão a este Tribunal referir-se às obrigações estatais diante da criação e manutenção de reservas naturais dentro de terras e territórios reivindicados por povos indígenas e tribais, assim como as medidas que os Estados devem tomar para garantir que desfrutem efetivamente da propriedade e recursos naturais frente a atividades empresariais, turísticas e de entretenimento”, afirmaram integrantes da CIDH.

O Estado hondurenho, por sua vez, nega as violações e afirma que não há elementos que provem a participação estatal. Representantes do Estado afirmaram que a participação das Forças Armadas no patrulhamento de Cayos Cochinos atende à legislação hondurenha, que permite presença militar para proteção de reservas naturais. Ao mesmo tempo, a criação do Monumento Natural Marinho teve como objetivo preservar um ecossistema, afirmaram, não restringir direitos.

Segundo o procurador-geral da República de Honduras, Manuel Antonio Diaz Galeas, parte da comunidade garifuna de Cayos Cochinos está de acordo com a gestão da Fundação de Cayos Cochinos. Afirmou ainda que foi formada uma comissão para abordar o caso, e reforçou que existe interesse do governo hondurenho em resolver a questão.

As partes envolvidas no caso têm até o dia 23 de junho para enviar suas alegações finais por escrito. Depois, os juízes emitirão a sentença.