Complexidades de uma reforma tributária simplificadora

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A Emenda Constitucional 132, de 20 de dezembro de 2023, estabeleceu um marco histórico para o Brasil. Além de ter alterado o modelo de tributação sobre o consumo e alguns importantes aspectos da tributação sobre o patrimônio no país, ainda introduziu expressamente, no texto constitucional, os princípios da simplicidade, da transparência, da justiça tributária, da cooperação e da defesa do meio ambiente (art. 145, § 3º), os quais passaram a reger todo o Sistema Tributário Nacional.

Dentre esses princípios, o primeiro é o que interessa nesta breve reflexão: o princípio da simplicidade.

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O Brasil é considerado um dos países que apresenta um dos sistemas tributários mais complexos e onerosos do mundo. Estima-se que uma empresa leva em torno de 1.500 horas para calcular e pagar impostos no nosso país[1], o que equivaleria a aproximadamente 180 dias trabalhados por ano.

Logo, é perfeitamente justificável que, além de ser o primeiro princípio elencado no novo texto constitucional, a “simplicidade” tenha sido o valor central que orientou a PEC 45/2019, do deputado Baleia Rossi, a qual culminou na reforma do texto constitucional, e das PECs 110/2019 e 46/2022, as quais fomentaram o debate no Congresso Nacional.        

Baseada no modelo proposto pelo Centro de Cidadania Fiscal, a PEC aprovada visou a “simplificar radicalmente o sistema tributário brasileiro”, conforme se lê na exposição de motivos. Basicamente, a ideia era descomplicar o Sistema Tributário Nacional e gerar crescimento econômico por meio da diminuição do número de tributos existentes.

 O paradoxo é que, ao final da tramitação da PEC, acabaram sendo incorporadas mais de trinta novas páginas no texto constitucional (e algumas centenas ou milhares de páginas de textos normativos infraconstitucionais ainda serão necessárias para regulamentar essas novas disposições). Temos, então, um texto constitucional que se diz simples, mas que é, de fato, bastante complexo.

Por exemplo, foi estabelecida uma longa transição para os contribuintes, que vai de 2026 a 2032. Nesse período, cinco tributos sobre o consumo preexistentes (ICMS, ISS, PIS, Cofins e IPI) serão paulatinamente substituídos por quatro novos tributos sobre o consumo (IBS, CBS, IS, IPI-ZFM).

Considerando que a reforma constitucional ocorreu em 2023, temos quase uma década de transição. E não há margem para interpretação diversa. Até o final de 2032, os contribuintes, os advogados e os contabilistas precisarão lidar com velhos conhecidos regimes tributários enquanto aprendem a lidar com quatro novos tributos.

Ademais, passaremos dos três regimes de não cumulatividade atuais (ICMS, IPI e PIS/Cofins) para dois regimes em 2033 (IBS/CBS e IPI-ZFM). Mas, até lá, teremos quatro regimes em 2026 (ICMS, IPI, PIS/Cofins e IBS/CBS) e três regimes entre 2027 e 2032 (ICMS, IPI-ZFM e IBS/CBS).

Portanto, se houver alguma simplificação com a reforma, será daqui dez anos, sendo que, nesse ínterim, os contribuintes terão de conviver com todos os velhos e os novos desafios, concomitantemente.

A respeito dos novos desafios atinentes à não cumulatividade do IBS e da CBS, importa destacar que o sistema dual de tributação sobre o valor agregado instituído pela EC 132/2023 pretende ser amplo (mas certamente não é ilimitado) e, como contrapartida, foi estabelecido o “princípio da neutralidade”.

Todavia, esse regime de não cumulatividade do IBS e da CBS comporta complexidades inerentes ao próprio sistema. Uma das questões típicas é a criação de mecanismos para evitar a distribuição disfarçada de lucros (basicamente, quando a empresa adquire bens com menor tributação e distribui para sócios e empregados de modo menos oneroso do que o mercado).

Por isso, a própria Constituição Federal prevê que operações com bens, direitos e serviços consideradas de “uso ou consumo pessoal” não darão direito a creditamento. Aqui aparecem problemas interpretativos interessantes. O que será considerado como “uso ou consumo pessoal” nesse contexto?

A lei complementar instituidora do IBS e da CBS deverá especificar o conteúdo e alcance destes termos, “uso ou consumo pessoal”. Todavia, o Projeto de Lei Complementar 68/2024, que tramita no Congresso Nacional visando à instituição desses novos tributos, prevê não apenas restrições ao direito de crédito em razão de bens, direitos e serviços de “uso ou consumo pessoal” (art. 30), mas também a incidência do IBS e da CBS sobre operações não onerosas ou inferiores ao valor de mercado de bens, direitos ou serviços de “uso ou consumo pessoal” (art. 39). 

Sem adentrar nos pormenores do PLP 68/2024, percebe-se, mesmo em uma leitura superficial, que o desenho constitucional dos tributos difere das disposições legais que poderão ser instituídas. Enquanto a EC 132/2023 estabeleceu a incidência do IBS e da CBS sobre o desenvolvimento habitual de atividade econômica onerosa por parte do sujeito passivo, o PLP 68/2024 pretende que os novos tributos incidam sobre “operações não onerosas” com bens, direitos ou serviços de “uso ou consumo pessoal” (conceito este que, segundo a Constituição, deveria limitar o direito ao crédito, apenas). 

Ao fim e ao cabo, as instâncias administrativa e judicial competentes acabarão sendo responsáveis por definir tudo isto: o que são bens, direitos ou serviços de “uso ou consumo pessoal”; se são válidas as incidências de IBS e de CBS sobre operações não onerosas de “uso ou consumo pessoal”; se haverá conformidade das disposições constitucionais com as disposições infraconstitucionais etc.; mas sequer os próprios caminhos para a solução desses litígios foram definidos claramente até o momento.

Nem mesmo o regime do Simples Nacional ficou alheio a “simplificações” duvidosas. As micro e pequenas empresas terão de passar a investir em planejamento tributário para decidirem se irão apurar o IBS e a CBS por dentro ou por fora do Simples. A avaliação de cada caso concreto será fundamental para determinar a opção mais vantajosa.

O grande problema que se avizinha diz respeito, principalmente, às empresas na posição de fornecedores ou em posições intermediárias na cadeia produtiva que optarem por recolher o IBS e a CBS dentro do Simples Nacional para pagarem menos tributos e para terem as benesses da simplificação do regime. Como ônus de tal escolha, essas empresas gerarão diminutos créditos para seus clientes e parceiros comerciais (apenas darão crédito proporcional ao recolhimento por dentro).

Sendo assim, tais empresas estarão em clara desvantagem concorrencial, porquanto seus parceiros negociais decerto optarão por negociar com aquele concorrente que recolheu o IBS e a CBS por fora do Simples Nacional, pois isso lhe daria mais créditos (embora isso signifique um aumento de carga tributária às empresas que recolhem “por fora”). Veja a complexidade da situação, para os sujeitos de um regime simplificado de uma reforma simplificadora!

Dentre tantos outros pontos possíveis de serem destacados, todos esses desafios elencados precisam nos lembrar de que a realização do direito ou da justiça não é algo fácil: requer estruturas normativas e institucionais coerentes e isonômicas aliadas a um bom juízo prático dos aplicadores das normas. Caso contrário, qualquer novo sistema apenas repetirá os vícios anteriores ou criará problemas, de modo que a iniciativa reformista não será mais do que um ideal quixotesco que sucumbe ante a realidade.

A reforma tributária ainda está acontecendo no Congresso e apenas terá sucesso se a sua iniciativa de simplificação olhar constantemente para a realidade dos contribuintes e se realmente tiver como consequência o crescimento econômico do país. Caso contrário, poderemos acabar como o Cavaleiro da Triste Figura em seu retorno a La Mancha: estropiados depois de muitas batalhas vazias, e com pouquíssimas conquistas reais para contar.

[1] Conforme Relatório Doing Business Subnacional Brasil 2021, disponível em https://portugues.doingbusiness.org/content/dam/doingBusiness/media/Subnational/DB2021_SNDB_Brazil_Full-report_Portuguese.pdf.