Como o crime organizado se infiltra no mercado imobiliário no Brasil

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O mercado imobiliário é peça-chave da economia global, mas sua relevância econômica vem acompanhada de uma vulnerabilidade estrutural: a infiltração de capitais ilícitos e práticas de lavagem de dinheiro. A opacidade de transações imobiliárias e dos registros de proprietários de imóveis tornam o setor imobiliário extremamente atrativo para organizações criminosas.

Ao redor do mundo, de modo semelhante a políticos e empresários corruptos, grupos de crime organizado — como máfias, cartéis de drogas, milícias, facções prisionais, redes de tráfico humano, contrabandistas e outras entidades criminosas — têm se aproveitado das mesmas vulnerabilidades do sistema legal para lavar recursos de origem ilícita através de operações que frequentemente transcendem fronteiras.

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A lavagem de dinheiro permite que recursos de origem ilícita sejam reintroduzidos na economia formal, possibilitando não só que sejam reinvestidos em outras atividades – lícitas e ilícitas – mas também que os criminosos continuem evadindo as autoridades e aproveitem os lucros da sua empreitada, não raro com mansões de luxo em locais paradisíacos.

Esses ativos também funcionam como reserva de valor, permanecendo desocupados e distorcendo o mercado imobiliário, o que aumenta a crise de habitação em muitas cidades. Transações em dinheiro, empresas de fachada e manipulação de preços são os mecanismos mais frequentemente empregados nessas operações fraudulentas.

A opacidade de transações imobiliárias permite, ainda, que se ocultem doações ilegais e transferências de vantagens indevidas a agentes públicos, viabilizando esquemas de corrupção e clientelismo eleitoral. Em regiões específicas do país, a lavagem de dinheiro ainda contribui para que essas organizações atuem diretamente na dinâmica fundiária do país, promovendo a grilagem, a expulsão de moradores e a construção irregular, assim como diferentes tipos de crimes ambientais.

A Transparência Internacional e o Anti-Corruption Data Collective desenvolveram um índice inédito que expôs deficiências de transparência e fragilidades nas regulamentações antilavagem de dinheiro no setor imobiliário em escala global. O Opacity of Real Estate Ownership Index (OREO, na sigla em inglês) avaliou 24 jurisdições – incluindo os países do G20 – atribuindo notas de 0 (mais opaco) a 10 (mais resiliente) e medindo o risco de lavagem de dinheiro com base em dois pilares: (i) transparência e acessibilidade dos dados imobiliários e (ii) robustez do arcabouço legal antilavagem aplicado ao setor.

Segundo o OREO Index, lançado no primeiro semestre, nenhum país obteve a pontuação máxima e a média global foi 5,52, o que reflete o cenário de vulnerabilidades generalizadas. O Brasil ficou na 13ª posição do ranking, obtendo nota 5,13 no índice geral – abaixo da média global. No eixo da transparência, há avanços pontuais, mas os dados seguem dispersos entre cartórios estaduais e municipais.

No eixo legal, o Brasil apresenta lacunas significativas. Advogados não são obrigados a reportar operações suspeitas mesmo quando atuam como intermediários imobiliários, enquanto corretores, cartórios e notários não estão plenamente sujeitos à legislação antilavagem, e a fiscalização de corretores é descentralizada – sem autoridade nacional com poder sancionatório. Além disso, não há exigência legal de identificação do beneficiário final em transações imobiliárias.

O resultado demonstra um ambiente de baixa transparência e lacunas legais altamente funcional para redes criminosas sofisticadas. Um levantamento nos cartórios do estado de São Paulo revelou que, entre 1993 e 2020, o Primeiro Comando da Capital (PCC) movimentou ao menos R$ 100 milhões em imóveis com valores subfaturados e registros em nome de terceiros.

Investigações recentes revelaram que a facção lavou dezenas de milhões de reais em imóveis por meio de contratos fictícios, empresas de fachada e laranjas, com valores mascarados em escrituras e transações realizadas com apoio direto de corretores e advogados.

No Rio de Janeiro, a expansão imobiliária tornou-se um dos principais pilares financeiros das milícias, promovendo grilagem, a verticalização irregular em comunidades periféricas, a remoção de moradores à força e o controle de todas as etapas da cadeia imobiliária – da construção clandestina à corretagem.

A atuação destas organizações inclui, ainda, o uso de imóveis tomados do programa Minha Casa, Minha Vida, a apropriação de condomínios inteiros e a violência contra opositores, inclusive no contexto político – como no caso da vereadora Marielle Franco, assassinada após se opor a interesses imobiliários da milícia.

Na Amazônia, a lavagem de dinheiro tem papel central na degradação ambiental e na consolidação territorial do crime organizado. Facções como o Comando Vermelho e o PCC financiam suas operações com recursos ilícitos, utilizando empresas de fachada, laranjas, dinheiro em espécie e falsificação documental para legalizar imóveis rurais e produtos extraídos ilegalmente.

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A fragilidade da governança fundiária e a ausência de controles eficazes apenas favorecem a lavagem de ativos ambientais ilícitos. Nesse contexto, além da baixa transparência nos registros fundiários, advogados, corretores e titulares de cartórios são facilitadores-chave que viabilizam essas operações ilícitas.

O cenário descrito pelo OREO Index é claro: a ausência de transparência e regulamentação adequada é um paraíso para o crime organizado. Sem reformas direcionadas a suprir essas lacunas no setor imobiliário, continuaremos vulneráveis a infiltração do crime organizado em um dos nossos setores mais relevantes do país, com sérias consequências políticas, econômicas e sociais.