Como ficam os crimes tributários após a reforma?

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Em 20 de dezembro de 2023, foi promulgada a Emenda Constitucional 132, que introduz a primeira etapa da reforma tributária. A tributação é o centro da eterna queda de braço entre setor público e privado. De um lado, o Estado obrigado ao cumprimento de uma série de tarefas e funções da máxima importância para o Estado social e democrático. De outro, o contribuinte onerado com o pagamento de tributos, o cumprimento de obrigações regulatórias e a justa expectativa de que a receita fiscal seja efetivamente empregada no cumprimento dessas tarefas e funções.

No caso brasileiro, foi a complexidade do sistema tributário que viabilizou um consenso, conciliando-se interesses dentro do Parlamento, com a ativa participação dos Poderes Executivo e Judiciário. Essa primeira empreitada legislativa – que substituiu PIS, Cofins, IPI, ICMS e ISS por dois tributos de valor adicionado, a Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS), de competência federal, e o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), de competência de estados e municípios – busca a estimular o crescimento da economia, a cooperação federativa, a transparência do sistema e a maior participação comunitária (art. 145, §3º da CF).

Normativamente, a reforma alterou diversos dispositivos constitucionais e depende de regulamentação por Lei(s) Complementar(es). Não há dúvida, portanto, que a análise concreta dos impactos das alterações, no âmbito penal, só poderá ser feita uma vez editadas tais regulamentações. Todavia, já é possível antever alguns possíveis impactos no âmbito dos crimes tributários, decorrentes do espírito de simplificação da cobrança e facilitação da fiscalização que permeia o novo modelo.

A CBS está prevista no artigo 195, V, da Constituição Federal, enquanto o IBS está previsto no artigo 156-A, CF, no qual também foram alocadas regras de cobrança que se aplicam a ambos (por expressa remissão do §16º do artigo 195, CF). Assim, é possível fazer uma análise geral dos possíveis efeitos das alterações sobre os crimes tributários com base no detalhamento dos incisos e parágrafos do artigo 156-A, CF.

Antes de aprofundar o exame das possíveis alterações na sistemática da incidência, cobrança e sistemática de fiscalização de declarações e pagamentos, cabe destacar que os crimes tributários integram o chamado Direito Penal Econômico e da Empresa e, por conseguinte, têm sua definição condicionada a normas de naturezas diversas. Essa realidade é denominada de acessoriedade administrativa.

Naturalmente, os crimes tributários pressupõem a existência, ainda que potencial, da obrigação de pagar tributo. Isso institui uma relação de dependência entre a norma penal e a norma tributária, demandando, desta forma, que a análise do tipo penal inclua também a análise dos preceitos tributários.

De forma bastante simplificada: a estrutura típica do caput do artigo 1º da Lei 8.137/90 se compõe de uma conduta fraudulenta que causa um dano patrimonial ao Estado. A fraude, em geral, consiste na omissão ou prestação de informação falsa à administração tributária, mantendo-a em estado de ignorância quanto à ocorrência do fato gerador, atrasando ou evitando o lançamento do tributo e demandando, assim, um esforço da administração tributária para a descoberta e lançamento de ofício do tributo.

Pois bem. Essa estrutura típica bem funcionava para estabelecer a reprovabilidade da conduta de evitar que o fisco tomasse conhecimento do surgimento da obrigação tributária, viabilizando cadeias de operações sem o cumprimento das obrigações acessórias (emissão de documentos fiscais ou declarações de rendimentos) em que muitas etapas antecedem a chegada do produto ao consumidor final.

Ocorre que a EC 132 propõe uma alteração na lógica da cobrança ao eleger como fato gerador tanto da contribuição quanto do imposto os bens e serviços. Nessa nova conjuntura, a incidência dá-se apenas na “ponta” da cadeia de consumo, diminuindo as possibilidades de ocultar fatos da administração tributária e (dis)simular operações. Esse novo sistema, por si só, diminui a possibilidade de fraude à administração tributária, pela mera simplificação da escrituração.

Contudo, os novos dispositivos constitucionais anunciam uma possibilidade diversa: a alteração do próprio sujeito passivo da obrigação tributária, o que pode transformar a conduta reprovável que afeta bens jurídicos relevantes e, portanto, o tipo penal cabível.

O §3º do artigo 156-A anuncia que Lei Complementar poderá definir como sujeito passivo quem concorrer para a realização, execução ou pagamento da operação. Ainda, o inciso IV do mesmo dispositivo trata das diversas possibilidades de definição do que seria “destino” da operação”, abrindo um leque de opções para o legislador. Será possível, portanto, que o consumidor que vier a efetuar o pagamento venha a ser considerado o sujeito passivo da operação, afetando a definição do potencial sujeito ativo do crime tributário.

Caso aquele que efetua o pagamento da operação vier a ser definido como sujeito passivo tributário, deverá haver uma dissociação entre contribuinte (que possui conexão com o fato gerador) e responsável pelo recolhimento (que deverá fazer chegar os valores aos cofres públicos). Nesse caso, eventual descumprimento do dever de repasse do valor destacado em nota como CBS ou IBS ensejará a violação de um dever de fidúcia e, portanto, aproximar-se-ia da ideia de apropriação indébita[1].

Significa que o tipo penal aplicável seria não o previsto no artigo 1º, da Lei 8.137/90, mas sim aquele inscrito no inciso II do artigo 2º da, cuja pena é bastante inferior àquela do artigo 1º. Por outro lado, na hipótese de haver identidade entre contribuinte e responsável pelo pagamento, elegendo-se como sujeito passivo o estabelecimento comercial que interage diretamente com o consumidor, a possibilidade de sonegar do fisco informações sobre as operações continuará existindo e o artigo 1º da Lei 8.137/90 continuará tendo relevância.

Como anunciamos, essas são considerações ainda bastante preliminares; os impactos de desafios que a reforma tributária trarão ao âmbito dos crimes tributários deverão ser continuamente mapeados ao longo dos próximos anos. O que pretendemos, neste momento, é propor uma primeira rota de exploração desses possíveis impactos da legislação vindoura, mas também escancarar a necessidade de uma maior sistematização e coerência da legislação criminal tributária, sobretudo diante da nova realidade normativa tributária.[2]

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Os autores agradecem à professora Heloisa Estellita pela leitura prévia do texto e sugestões

[1] ESTELLITA, Heloisa e CAVALI, Marcelo Costenaro. Apropriação indébita’ previdenciária: crime formal ou material? (parte 2). In Revista Conjur, 17 de novembro de 2023. Disponível em:  https://www.conjur.com.br/2023-nov-17/estelitta-cavali-apropriacao-indebita-previdenciaria-crime-formal-ou-material-parte-2/. Acesso em: 8 de janeiro de 2024.

[2] Nessa direção, o Grupo de Pesquisas em Direito Penal Econômico e da Empresa da FGV Direito SP, está conduzindo uma pesquisa cujo objetivo é produzir uma proposta de reforma legislativa para o tratamento penal e processual penal dos crimes tributários. Cf. GDPEE. Evasão fiscal: uma proposta legislativa para debate. Disponível em: https://direitosp.fgv.br/projetos-de-pesquisa/evasao-fiscal-uma-proposta-legislativa-para-debate.