A tragédia socioclimática que se abate sobre o Rio Grande do Sul marcará a história do Brasil. E pode ser pior, caso derive em tragédia institucional, a exemplo de Mariana e muitas outras relacionadas a enchentes e deslizamentos. São casos em que há comoção, mobilização, aporte de recursos e poucos resultados.
Não é trivial lidar com situações de crise, mesmo com métodos avançados de gestão de crises, protocolos operacionais de salvamento, declarações de apoio político, financeiro etc. As pessoas e autoridades agem como podem diante das emergências. O instinto natural de sobrevivência não gera uma situação de salve-se quem puder, mas gera muita solidariedade, que é manifestada em resgates, acolhimento e doações.
A questão essencial agora é: como buscar coordenar múltiplas ações para otimizar o enfrentamento do momento emergencial e promover a reconstrução do Rio Grande do Sul? Como promover o bom aproveitamento dos recursos, evitando desvios e desperdícios? Como evitar conflitos, disputas, impasses, lacunas, omissões, sobreposições desnecessárias?
Já sabemos muitas coisas que dão errado nestes momentos, como atrasos, omissões e múltiplas falhas de reconstrução, como ocorreu no caso do furacão Katrina, nos Estados Unidos. Burocracia de múltiplos comitês e impasses decisórios como no desastre nuclear de Fukushima, no Japão. Incapacidade operacional como no caso do terremoto em Marraquexe, no Marrocos. Problemas de governança, judicialização ferina e atuação obstrutora de órgãos de controle como em Mariana.
Sabemos que não se enfrenta uma situação destas de outra forma que não seja colaborativa. É preciso multiplicar esforços dos governos, da sociedade (indivíduos e organizações não governamentais) e do setor privado. A ação colaborativa é deliberada e orientada para finalidades comuns.
Mas governos são estruturas hierárquicas. Agem de acordo com seus mandatos, regras, jurisdições. E são entes federados com autonomia. Incluem-se aí os Três Poderes e o Ministério Público, dentre outros. Como conjugar as lógicas colaborativa e hierárquica? Os mecanismos e narrativas de apoio atuais não dão conta desta magnitude de destruição. Comitês de crise ou outros comitês, promessas de ajuda e os sistemas administrativos correntes não serão suficientes. É inescapável enfrentar esta complexidade institucional com inovação e consciência cívica.
Mas é claro que a atuação colaborativa é desafiadora. Pesquisa recente da Fundação Dom Cabral relativa à tragédia de Mariana revelou vários problemas de atuação colaborativa: agendas paralelas, falta de legitimidade e representatividade deliberativas, implementação fragmentada e desviante dos planos, mau aproveitamento de recursos (incluindo doações perdidas) etc. Tudo isto contribui para atrasos, omissões, desperdícios e, sobretudo, ausência de resultados satisfatórios. Mas a única alternativa é fazer a colaboração coordenada funcionar junto com a atuação hierárquica dos governos.
Quais seriam os requisitos de uma ação colaborativa integrada, coordenada, orientada para resultados? Primeiro, é preciso planejamento, direcionamento, priorização. Isto é muito difícil nos desdobramentos iniciais porque simplesmente não se sabe o que está acontecendo e a extensão da tragédia. Mas vencida a etapa inicial emergencial de resgate e salvamento, logo será possível avaliar danos e necessidades e contrastar isto com os recursos disponíveis, ou dimensionar os recursos necessários.
Em todo caso, planejar é visualizar uma situação ideal e definir o que fazer para chegar lá. Implica priorizar. Haverá milhares de demandas importantes. Mas o que será feito primeiro, quando, com quem? Se isto não estiver minimamente claro, e de forma célere, haverá resultados insatisfatórios e recursos mal aproveitados. Em suma, é necessário que se construa uma agenda estratégica da reconstrução.
Segundo, é preciso capacidade de ação articulada. Isto requer capacidades colaborativas, de estabelecer boas parcerias, e de receber e alocar recursos de forma ágil e proba no que foi planejado. As capacidades governamentais são limitadas pelo arcabouço regulamentar que limitam a recepção de recursos de doação, dificultam as aquisições, transferências e parcerias.
Como estabelecer arranjos colaborativos público-público, público-privado (empresas e organizações da sociedade civil) e privado-privado para executar o que foi planejado? Como receber e alocar recursos de forma célere e transparente? Como coordenar, monitorar, avaliar, corrigir uma complexa rede de atuações? Há muitas lições sobre estas questões que devem ser aproveitadas para uma modelagem colaborativa efetiva.
Terceiro, requer uma liderança central, facilitadora, transformadora, compartilhada com muitas outras lideranças. Não se trata simplesmente de um componente hierárquico, porque o líder não é alguém que ocupa uma posição formal de autoridade, mas alguém com capacidade de mobilizar, de influenciar, de negociar, de gerir. E se requer um líder que atue num ambiente decisório plural, sensível, com abertura ao debate. É preciso construir mecanismos deliberativos plurais e legítimos, mas que sejam céleres e embasados tecnicamente. É preciso fortalecer a autoridade executiva estadual para assegurar uma coordenação efetiva.
Os arranjos usuais disponíveis no nosso ordenamento jurídico e na conformação administrativa dos governos não permitem que estes requisitos se cumpram satisfatoriamente. Temos que pensar fora da caixa, com exercícios propositivos. Urge, portanto, no calor deste triste momento, que pensemos, por exemplo, um regime interfederativo emergencial que congregue o Rio Grande do Sul e seus municípios num arranjo colaborativo com regras administrativas próprias para gerir recursos, contratos, parcerias e quadros, mediante robustos mecanismos de governança (aí incluídos direcionamento, liderança e controle).
Não se trata de usurpar o poder político e a autonomia municipal, que seguem como baluartes da federação. Trata-se de sobrepor ao desenho federativo atual um arranjo de integração para efeito de deliberação coletiva e atuação sistêmica sob a liderança do governo do estado.
Também não se trata de criar estruturas paralelas de execução, senão coordenar estruturas existentes nos governos estadual e municipais dentro e fora da administração pública. Não se trata de limitar a atuação dos poderes judiciário, do Ministério Público e dos órgãos de controle, mas de trazê-los para os arranjos colaborativos, modulando sua atuação num sentido positivo.
A extensão da tragédia socioambiental durará décadas e afetará o Brasil como um todo. Repetir as fórmulas tradicionais de enfrentamento à crise gerará uma imensa dissipação de recursos e resultados débeis, terminando em tragédia institucional. Será preciso não apenas reconstruir, mas reinventar o Rio Grande do Sul. Esta experiência poderá servir de modelo para muitos outros grandes desafios que já estão no horizonte. Precisamos agir já! Não podemos perder esta janela de desafio e de aprendizado.