Como as fusões no mercado da saúde afetam a vida do cidadão comum

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O conceito de saúde mais aceito nos dias atuais é resultado de um entendimento que começou a ser forjado lá pelos anos 1950, com a criação da Organização Mundial da Saúde (OMS), que a definia como “o completo bem-estar físico, mental e social” do indivíduo.

O zeitgeist do momento assim demandava: quanto mais ambicioso fosse o objetivo traçado, melhores seriam os resultados. Não parecia haver, então, qualquer problema nesta maneira dominante de pensar. Inspirado nesta utopia, o movimento sanitarista brasileiro cravou na nossa Constituição, alguns anos depois: saúde é um direito de todos e um dever do Estado. Esse parágrafo não para por aí, mas pouca gente lembra do que vem em seguida.

O sistema de saúde foi se construindo, em sua larga maioria, na lógica do que chamamos “pagamento por serviço”. Ou, para ficar no anglicismo prevalente, “fee-for-service”. Neste modelo, o cidadão (A) contrata um seguro de saúde (B) e este seguro de saúde (que pode ser o SUS) contrata aqueles que vão fornecer o serviço (C), quando seu cliente precisar.

“A”, eventualmente, orientado por “C”, com a discordância de “B”, busca a ajuda do sistema judiciário, que chamaremos de “D”, mas vamos deixar esta peculiaridade bem brasileira para um outro momento. Quem decide se “A” precisa ou não de um determinado serviço é “C”, que vai ser remunerado por isso (com o aval de “B”, é verdade).

Ou, de maneira mais direta: um cidadão procura, por exemplo, um cirurgião para saber se precisa ou não ser operado. O cirurgião, se decidir que o indivíduo não tem necessidade de cirurgia, recebe o valor da consulta. Se decidir pela intervenção, vai ser remunerado pelo procedimento. E esta remuneração não está ligada à qualidade do serviço prestado. É assim que o sistema majoritariamente, atualmente.

Não se está sugerindo que todo cirurgião vai operar todos os pacientes que entrarem em seus consultórios. Bem longe disso. Mas este, digamos, exagero, além de plausível, teve sua ocorrência comprovada[1] há bastante tempo[2].

Vamos descrever uma situação hipotética (e suas consequências) uma vez que o leitor, que não é da área, provavelmente nunca pensou nesta possibilidade como sendo real: um paciente é internado em um hospital qualquer para uma apendicectomia. É operado por um cirurgião hábil e tem alta no dia seguinte.

O hospital é remunerado com uma quantidade “X” de dinheiros. Caso o cirurgião não seja assim tão hábil, ocorra uma infecção da ferida cirúrgica e o paciente precise ficar internado na UTI para tratar o choque séptico que dela decorreu, esse cirurgião vai receber a mesma quantidade de dinheiros e o hospital vai ganhar muito mais. Mesmo que o paciente venha, pasmem, a morrer. Excluídas as raras situações em que estas fatalidades, infelizmente, acontecem, e não podem ser caracterizadas como imperícia, trata-se de uma aberração.

Michael Porter, renomado professor da Harvard Business School, descreve em seu Redefining Health Care outro exemplo pitoresco, ocorrido em um sistema de saúde no estado de Utah, nos Estados Unidos: o hospital identificou uma variabilidade significativa na forma como diferentes médicos tratavam pacientes com pneumonia.

Antes da intervenção, os médicos utilizavam uma gama enorme de medicamentos e abordagens terapêuticas, muitas vezes baseadas em preferências pessoais, em vez de diretrizes, baseadas em evidências. Foi implementado, então, um conjunto de diretrizes clínicas, em comum acordo. Houve, ao final de um tempo, uma melhora dos resultados clínicos, incluindo redução nas taxas de complicações e de internações hospitalares. Os pacientes passaram a viver mais e com mais qualidade. Por outro lado, houve também expressiva diminuição no faturamento do hospital (17,5%), levando a um inevitável cancelamento do programa[3].

O tema da remuneração médica é bastante complexo e, até hoje, não se chegou à solução perfeita. Talvez este seja o principal motivo pelo qual ainda vivamos sob a égide do pagamento por serviços, apesar das distorções acima (há muitas mais).

Mas algumas alternativas têm sido testadas. Uma das que mais tem dado certo (e, como parâmetro de sucesso, restringimo-nos ao argumento econômico) é o que se conhece por “verticalização”. Planos verticalizados são aqueles que, além de dispor de seus próprios hospitais, orientam seus clientes a utilizá-los quando necessitam, reduzindo a liberdade de escolha. Aqui, “B” controla mais diretamente “C”.

Como evidência deste sucesso (econômico), basta olhar para o mercado brasileiro. Houve uma vasta abertura de serviços próprios em várias Unimeds espalhados pelo país; o plano Hapvida, recentemente fundido à Notre-Dame Intermédica, adquiriu uma enormidade de planos menores, atingindo abrangência nacional; a Rede D’Or e a Bradesco Seguros firmaram uma associação recentemente, depois de a primeira já ter adquirido, há dois anos, a SulAmérica Saúde.

Enquanto isso, a Oncoclínicas firmou parceria com a Unimed para construção de um Cancer Center em São Paulo (além de outros acordos espalhados pelo país), e a Dasa assinou um acordo de associação com a Amil, criando uma outra joint-venture, para ficar em alguns exemplos mais difundidos pela mídia, recentemente. “B” está cada vez mais “próximo” e controla “C”. Estão escasseando as grandes operadoras sem um hospital para chamar de seu.

Qual é o problema desse fenômeno? Conforme Porter & Kaplan, o principal risco, quando o estímulo se inverte (e não há pagamento por serviços), é, obviamente, o inverso daquilo que se observava anteriormente. Enquanto no “fee-for-service” o principal problema é o tratamento exagerado (overtreatment), na verticalização o risco teórico é o de não se aplicar o tratamento mais caro (undertreatment), uma vez que já se recebeu do paciente a mensalidade e há que se pagar o fornecedor. A diferença entre estes dois fatores é o lucro. A economia passa a ser um benefício direto para aquele que presta o cuidado[4].

Como saber se estamos recebendo o tratamento mais adequado, e não necessariamente o mais lucrativo, quando há acionistas exigindo retorno dos seus investimentos? Hoje já fica mais claro que considerar o completo bem-estar físico, mental e social um direito do cidadão e um dever do Estado pode estar um tantinho exagerado, e leva a algumas distorções, que acabam não sendo boas para o paciente, ao contrário do que pensavam os teóricos lá do início do texto.

Não porque esta “saúde total” não seja desejável, mas porque nós, como sociedade, não temos todo este recurso para distribuir entre todos os nossos concidadãos, e de maneira que seja justa e equânime.

Não há uma saída fácil para este problema. Não há uma bala de prata. Mas algumas possíveis soluções começam a ser construídas. Nenhuma delas, adianta-se, envolve saídas simples (e, normalmente, erradas) para problemas complexos, como este, que temos diante de nós. Nenhuma delas envolve projetos de leis populistas, obrigando o malvado da vez a pagar por aquilo que não gostaria de fazê-lo, porque é mal-intencionado. Qualquer detalhamento inicial deste ideário demandaria, pelo menos, um outro texto, tão ou mais longo do que este. Voltaremos, portanto, a este assunto oportunamente.

[1] Santos M, Solbakk JH, Garrafa V. The rise of reimbursement-based medicine: the case of bone metastasis radiation treatment. J Med Ethics. 2018;44(3):171-3.

[2] Coca-Pelaz A, Rodrigo JP, Shah JP, Nixon IJ, Hartl DM, Robbins KT, et al. Recurrent Differentiated Thyroid Cancer: The Current Treatment Options. Cancers (Basel). 2023;15(10).

[3] Porter ME, Teisberg EO. Redefining health care: creating value-based competition on results: Harvard business press; 2006.

[4] Porter ME, Kaplan RS. How to pay for health care. Harv Bus Rev. 2016;94(7-8):88-98.