Como a limitação da eleição de foro pode prejudicar negócios internacionais

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Na acepção de sistema normativo, o Direito se constitui de regras entretecidas em uma delicada rede de coerência. Como nos implantes médicos, ao se enxertar ou extrair um órgão, é mister precaver-se contra impactos em todo o organismo; a alteração de regras legais deve atentar para seu impacto sobre outros dispositivos e, particularmente, sobre a manutenção da segurança e da justiça como os fluídos que circulam de modo a manter o corpus jurídico vivo. Nesse sentido, sempre merecerão críticas aquelas modificações empreendidas pelo Legislador sem uma cuidadosa atenção à boa técnica jurídica.

A recente modificação na redação do Artigo 63 do Código de Processo Civil pela Lei nº 14.879/2024 se enquadra nessas circunstâncias indesejáveis e pode gerar importantes impactos nos negócios internacionais. Embora o dispositivo esteja situado no capítulo que cuida das modificações da competência interna, suas alterações muito provavelmente afetarão os contratos internacionais por força da remissão existente no § 2º do Artigo 25 do CPC. 

Em linhas gerais, a alteração realizada limitou a eleição do foro pelas partes. Na redação anterior do § 1º do Artigo 63 do CPC, que estabelece as condições de eficácia da cláusula de eleição de foro, já se exigia forma escrita e alusão expressa a negócio jurídico determinado.

Na nova redação, a eleição de foro precisará também guardar pertinência com (a) o domicílio ou a residência de uma das partes ou (b) o local da obrigação. Em paralelo, o legislador introduziu um novo § 5º na redação do Artigo 63 do CPC para estabelecer que uma escolha diferente pelas partes – com “ajuizamento da ação em juízo aleatório” – representa prática abusiva e deve gerar, portanto, o declínio ex officio de competência pelo juiz. Nesse aspecto específico, é pertinente debater se o § 5º deverá ser aplicado aos contratos internacionais, posto não haver sido referido expressamente no § 2º do Artigo 25 do CPC.

Por si só, é disposição que implica inúmeros inconvenientes para a boa prestação jurisdicional e o respeito à autonomia privada. No campo das operações econômicas internacionais, porém, as patologias são mais graves. Ocorre que, no âmbito dos negócios internacionais, é comum as partes escolherem foros estrangeiros como Nova York, Delaware ou Londres em razão de sua especialização e de vantagens em termos de tecnicidade e celeridade. Isso mesmo sem conexão objetiva ou subjetiva com o caso. E se trata de casos avidamente disputados por essas jurisdições estrangeiras.

O legislador brasileiro, porém, ao restringir a autonomia privada na escolha da jurisdição competente, amputa a possibilidade de fazer escolhas estratégicas de foros neutros ou especializados. Disso decorre insegurança e incremento dos custos para as partes no litígio.

O ponto é que, naqueles casos em que as partes em contratos internacionais quiserem afastar a jurisdição brasileira, o efeito negativo do pacto de jurisdição foi, potencialmente, ferido severamente. O efeito de derrogação da jurisdição brasileira decorrente da eleição de foro exclusivo estrangeiro em contratos internacionais, conforme consagrado pelo Artigo 25 do CPC, esbarrará nas novas exigências de conexão subjetiva, fundada no domicílio ou residência, ou objetiva, a partir do lugar da obrigação.

Nesse sentido, tal alteração legislativa produz, desde logo, grave insegurança jurídica. Em primeiro lugar porque ainda não se sabe se o bom senso, com auxílio de construções doutrinárias sofisticadas, poderá afastar o alcance da novel alteração do campo da jurisdição internacional. Gera-se incerteza inclusive para os contratos firmados antes dessa alteração.

Em segundo lugar, mas não com menor importância, implica arritmias no organismo homologatório de sentenças estrangeiras, pois, variando conforme a anatomia do caso, é alegável a denegação de reconhecimento de sentença estrangeira desconforme com as novas exigências legais.

Por fim, considerando a regra do Artigo 24 do CPC, conforme a qual a propositura de ação no exterior não pode ser oposta ao exercício da jurisdição brasileira em ação idêntica ou conexa, cria-se um ambiente tóxico para qualquer estratégia de redução de contingências judiciais.

Há, também, problemas de interpretação e aplicação da própria norma. Em primeiro lugar, o legislador optou pela expressão “local da obrigação” no § 1º, mas preferiu a noção de vinculação com o “negócio jurídico” no § 5º. Como se ensina no primeiro ou segundo ano do bacharelado, obrigação é uma coisa, negócio jurídico, outra. O lugar da obrigação é, normalmente, considerado como o de seu cumprimento, ao passo que o lugar do negócio jurídico é o de sua celebração. No final das contas, o que deve ser levado em conta?

Não bastasse isso, se a parte mudar de domicílio durante a vigência de um contrato, valeria o do momento da celebração ou o da propositura da ação? E um domicílio intermediário? Não é o caso de detalhar a intrincada dogmática dessas questões, mas, por assim dizer, a única certeza aqui é, também, a própria incerteza.

Em relação ao critério do domicílio ou da residência de uma das partes, também se deve questionar se, nos casos de contratos internacionais, a interpretação será a de fixar a competência na comarca do domicílio da parte ou se bastará que a parte tenha domicílio no Brasil.

Em outras palavras, em contrato internacional envolvendo uma parte domiciliada em Xangai e outra em Igarapé-Açu, seria possível eleger o foro de São Paulo para a solução do litígio? É razoável presumir, considerando a exposição de motivos do projeto de lei, que a intenção do legislador foi a de impedir essa escolha, obrigando as partes a litigar, se desejarem fazê-lo no Brasil, necessariamente na comarca de Igarapé-Açu, o que pode não ser a escolha desejada pelas partes. 

Ao cabo, dada a conexão fisiológica dos vários tecidos que compõem o Direito, a enfermidade debelada pela intenção de restringir a autonomia privada e incrementar a ineficiência da prestação jurisdicional no campo nacional parece alcançar as regras sobre a extensão internacional da jurisdição brasileira sem que esta fosse vacinada, ou pudesse desenvolver anticorpos, contra os agentes infectantes.

Um efeito prático da incerteza gerada pela alteração legislativa será a escolha, sempre que possível, da arbitragem para que as partes mantenham algum grau de segurança jurídica sobre a solução do litígio. Espera-se que os tribunais tenham sensibilidade para lidar com as especificidades de contratos internacionais. Do contrário, as alterações podem prolongar a resolução do litígio, comprometendo a eficiência dos processos judiciais e a previsibilidade dos negócios internacionais.