Como a Enel conseguiu suspender R$ 260 milhões em multas por falhas no serviço

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A Enel Distribuição São Paulo, concessionária responsável por fornecer energia elétrica para milhões de consumidores no estado de São Paulo, conseguiu, por meio de decisões judiciais, suspender a cobrança de duas multas impostas pela Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), que somam mais de R$ 260 milhões. As informações foram divulgadas em ofício enviado pela agência reguladora ao Ministério de Minas e Energia na semana passada. 

As multas, que totalizavam R$ 95 milhões e R$ 165 milhões, eram resultados de decisões no âmbito de dois processos administrativos – um que data de 2022, e outro de 2023. As decisões de suspensão de multas foram dadas pelo juiz Mateus Benato Pontalti, da 13ª Vara Federal Cível da Seção Judiciária do Distrito Federal (SJDF), em setembro, e pelo juiz Itagiba Catta Preta Neto, da 4ª Vara Federal Cível da SJDF, em março. 

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A suspensão, em ambos os casos, vale até que o mérito das ações seja julgado. Segundo a Aneel, a Enel pagou multas em outros cinco processos administrativos entre 2018 e 2021, que somaram R$ 59.121.750,57. 

A Aneel foi criticada por Alexandre Silveira, ministro de Minas e Energia, depois que um apagão atingiu a região metropolitana de São Paulo no início do mês. “A Aneel bolsonarista não deu andamento ao processo de punição, nem mesmo a uma fiscalização adequada. O MME já avisou que não há qualquer indicativo de renovação da concessão da distribuidora em São Paulo e que a omissão da agência deve ser investigada pelos órgãos de controle”, disse o ministro. Em resposta, a Aneel divulgou ofício com a lista de multas para a Enel.

Em nota à imprensa, a agência “reafirma que seu papel de regulador e fiscalizador é garantir que os consumidores brasileiros tenham acesso a um serviço de energia elétrica de qualidade, contínuo e seguro, e que qualquer tentativa de intervenção ou tutela indevida na atuação da Agência não contribui para a verdadeira solução do problema”. A Aneel ainda afirmou que “caso sejam constatadas falhas graves ou negligência na prestação do serviço, a Agência não hesitará em adotar as medidas sancionatórias previstas em lei”.

Na última segunda-feira, (21/10), a Aneel emitiu Termo de Intimação à Enel “em razão do descumprimento do plano de contingência”, segundo comunicado, para avaliação de recomendação de processo de cassação da concessão da empresa. Nesta terça-feira (22/10), o ministro do MME pediu em ofício que a Aneel abra mais um processo administrativo contra a Enel, para “analisar eventual descumprimento ensejador de intervenção ou recomendação de caducidade para a concessão da ENEL”, segundo informações do g1.

Pandemia

A Enel apresentou uma ação de tutela de urgência para suspender uma multa de R$ 95,8 milhões imposta pela Aneel, no contexto de uma ação sobre a qualidade dos serviços prestados em 2021. A empresa afirma, assim como na outra ação em que conseguiu suspender a multa, que a decisão foi influenciada pelo “evento climático extremo, não gerenciável e superveniente” de novembro de 2023, quando um apagão atingiu diversas regiões da cidade de São Paulo por dias.

A empresa alegou, em petição, que a penalidade era exorbitante e ilegal, citando multas pagas anteriormente. A companhia já havia pago multas menores em circunstâncias similares, como uma aplicada em 2021. “A nova multa, relativa ao ano de 2021, mostrou-se absolutamente desarrazoada, uma vez que penalizou a concessionária em montante mais de 500% (quinhentos por cento) superior ao valor da multa anterior”.

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Além disso, a Enel diz que a multa não reflete a melhora nos indicadores de continuidade (DEC e FEC), e que a sanção foi aplicada sem levar em conta as condições de operação totalmente atípicas por conta da pandemia da Covi-19″ em 2020. “A autora acabou por adimplir substancialmente suas obrigações, tendo atendido às metas relativas aos indicadores de continuidade global e mais de 94% das metas relativas aos indicadores de continuidade de conjuntos de consumidores”, afirma em petição.

Para a Enel, a penalidade deveria ser reduzida, já que, em uma fase inicial, a Aneel havia recomendado o abrandamento da multa em 25% devido à melhoria dos serviços, o que reduziria o valor para R$ 53 milhões, segundo o Memorando nº 42/2023-SFE/ANEEL. Com a solicitação de tutela de urgência, a empresa pedia a suspensão da exigibilidade da multa até o julgamento final do processo, argumentando que a cobrança imediata causaria danos irreparáveis à empresa – o que obteve. 

Direito à defesa

A decisão judicial que suspendeu a multa de R$ 95 milhões foi fundamentada no entendimento de que a penalidade imposta pela Aneel não respeitou o devido processo legal. O juiz Itagiba Catta Preta Neto, da 4ª Vara Federal Cível do Distrito Federal, mencionou que a complexidade técnica das decisões da Aneel demandava uma análise cautelosa. Ele afirmou que o processo administrativo conduzido pela agência apresentou falhas que comprometeram o direito à ampla defesa da concessionária.

“A imposição, pelo Estado, de penalidade de qualquer natureza, inclusive na esfera administrativa, subordina-se à observância do contraditório, da ampla defesa e do devido processo legal, pena de nulidade do ato administrativo sancionador”, afirma em sua decisão. 

Segundo o juiz, a multa aplicada à Enel no Processo Administrativo Sancionador (PAS 48500.006591/2023-19) estava sendo cobrada antes que houvesse uma decisão judicial final. Além disso, a Aneel poderia adotar medidas coercitivas, como restrições administrativas, para cobrar o valor. Isso, segundo o magistrado, violaria o direito à defesa, já que a empresa ainda não tinha esgotado todas as possibilidades de recorrer. 

Para Catta Preta Neto, outra falha no processo foi a tentativa de inscrever a concessionária no CADIN, uma lista de devedores do setor público, antes do fim do processo, o que traria consequências financeiras e reputacionais para a empresa, mesmo sem uma decisão definitiva sobre a validade da multa.

A decisão também menciona que a concessionária deveria poder emitir uma Certidão Positiva com Efeito de Negativa, um documento que permite que a empresa continue a operar legalmente, mesmo havendo discussões judiciais sobre débitos. A recusa desse documento seria uma violação de direitos, pois limitaria as atividades comerciais da empresa sem um julgamento final.

Evento climático extraordinário

A empresa de energia também ajuizou uma ação anulatória com pedido de tutela antecipada para cancelar uma multa de R$ 165,8 milhões aplicada pela Aneel, relacionada à suposta inadequação e demora  do atendimento da concessionária a emergências climáticas ocorridas em São Paulo em novembro do ano passado. A empresa alega que a sanção foi imposta de maneira arbitrária e desproporcional, e argumenta que a Aneel não respeitou parâmetros regulatórios ao avaliar a prestação de serviço da empresa.

A Enel argumenta que a penalidade foi baseada, em grande parte, no desempenho da empresa durante um evento climático extremo ocorrido em novembro de 2023. Esse fenômeno, que trouxe ventos de mais de 105 km/h para a região metropolitana de São Paulo, derrubou mais de 2 mil árvores e causou extensos danos à rede de distribuição de energia.

A concessionária justificou que as interrupções causadas por esse evento não poderiam ser usadas como critério para a aplicação da multa, já que foram resultado de um fenômeno imprevisível e de extrema magnitude. “A magnitude do Evento Climático foi extraordinária, e isso é fato reconhecido pela própria Aneel em fiscalização, e não pode ser parâmetro único para determinar se a Enel presta um serviço adequado ou não”.

A Enel alega que não havia parâmetros definidos pela Aneel para os indicadores utilizados, como o Tempo Médio de Preparo (TMP) e Tempo Médio de Atendimento a Emergências (TMAE), e que os indicadores mais relevantes usados para medir a qualidade do serviço prestado pelas concessionárias de distribuição de energia, como Duração Equivalente de Interrupção por Unidade Consumidora (DEC) e Frequência Equivalente de Interrupção por Unidade Consumidor (FEC), foram atendidos. “Ao penalizar a Enel, a Aneel usa elementos fáticos e regulatórios sem correlação”, afirma. “A Aneel não demonstrou como os fatos expostos implicariam em violação à norma regulatória”.

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A empresa também sustenta que a multa foi influenciada por questões políticas. “Houve pressão por parte do Prefeito da Cidade de São Paulo, do Governador do Estado de São Paulo, e até mesmo do Ministro de Minas e Energia, para que fosse ‘cancelado o contrato’ outorgado à Enel”, diz. 

Seguro

O juiz  Mateus Benato Pontalti deferiu parcialmente o pedido da Enel. Segundo ele, a empresa apresentou uma apólice de seguro garantia no valor acrescido de 30% da multa, e isso foi considerado suficiente para suspender temporariamente os descontos na Receita Anual Permitida (RAP, montante máximo que uma concessionária pode receber anualmente pelo serviço de transmissão de energia), até que o processo administrativo seja resolvido definitivamente ou haja uma nova decisão judicial.

Segundo o magistrado, de acordo com o artigo 9º, parágrafo 7º da Lei de Execuções Fiscais (LEF), a apresentação do seguro garantia impede a execução do saldo devedor até o trânsito em julgado. Isso foi aplicado no caso, e, assim, foi determinada a suspensão de quaisquer medidas coercitivas para cobrança do débito, garantindo à Enel proteção contra a execução da multa

O juiz também autorizou que a Aneel, caso julgasse o valor da garantia insuficiente ou identificasse irregularidades na caução apresentada, poderia contestar a questão no prazo de cinco dias – o que não foi feito. Além disso, ordenou que a agência se abstenha de inscrever a Enel no Cadastro de Inadimplentes (CADIN), referente ao débito em questão, e permita a emissão da Certidão Positiva com Efeitos de Negativa.

Os processos tramitam com os números 1027713-10.2024.4.01.3400 e 1014492-57.2024.4.01.3400. A Aneel recorreu de ambas as decisões que suspenderam as multas, mas ainda não houve decisão.