“Se não sabe para onde ir, qualquer caminho serve”[1], disse o Gato de Cheshire a Alice, quando ela estava perdida na encruzilhada e não sabia por qual caminho avançar.
(A seguir, assim como Alice e “seu” País das Maravilhas, nos encontraremos em nossas encruzilhadas tributárias e, evitando nos perder, buscaremos os caminhos simples, racionais e transparentes para os quais elas possam nos levar.
Até 2022, o modelo de tributação de combustíveis era complexo, irracional e obscuro. E isso, em especial no que se refere ao hoje moribundo ICMS, com suas substituições tributárias, complementos e restituições de fim e de meio de cadeia, cargas distintas por produto e por estado, entre outros.
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Tratava-se de complexidade, irracionalidade e obscuridade não apenas para o cidadão que abastece seu carro nos mais de 40 mil postos espalhados pelo país. Mas também para profissionais como o que aqui se coloca por detrás destas letras, até então envergonhado por não ter conseguido colaborar para a construção de um regime mais simples, racional e transparente em segmento essencial para as economias pública e privada e, no fim, para toda a sociedade.
No entanto, as nuvens escuras e o sentimento de autopiedade começaram a se dissipar justamente naquele ano de 2022, com a publicação da LC 192, de 11 de março. Foi quando, enfim, ao menos para cinco produtos – diesel, biodiesel, gasolina, álcool anidro e GLP – o modelo de tributação dos combustíveis, pelo ICMS, começou a deixar o caos no passado, seguindo as luzes da simplicidade, da racionalidade e da transparência. E isso, por conta do resgate de uma ideia, de um conceito que estava adormecido na nossa Constituição há mais de 20 anos, desde a edição da Emenda 33, do ano de 2001: o regime monofásico.
Na encruzilhada, caminhamos adiante.
Caminhos (feitos) adiante
Simplicidade, porque passou a ser prevista a chamada “incidência monofásica” para o ICMS desses cinco produtos, com uma única hipótese de incidência, um único fato gerador, um único contribuinte (produtor ou importador) para toda a cadeia econômico-produtiva.
No modelo anterior, plurifásico, era adotada a chamada substituição tributária para alguns desses produtos. Assim, um contribuinte substituto recolhia o tributo para si (ICMS “próprio”) e, por presunção, para outros (ICMS “ST”), potencializando a necessidade de maiores controles por parte dos Estados, no dever de fiscalização, e mesmo por parte dos próprios contribuintes, para se manterem em conformidade fiscal.
Com a incidência monofásica o modelo se tornou mais simples, com menos contribuintes e regras de conformidade. Foi retirada parcela dos recursos (dinheiro) das mãos de quem teria tributo a recolher, mas se escondia nas sombras da complexidade para não o fazer.
Na encruzilhada, caminhamos adiante.
Racionalidade, porque, em decorrência da publicação da LC 192/22, passou a ser prevista a chamada “alíquota única e uniforme”, em todo o Brasil, para o ICMS desses cinco produtos.
No modelo anterior, cada Estado poderia deliberar sobre sua alíquota para cada um desses combustíveis. Como resultado, complementos e restituições eram regra, não só no fim – resultado do julgado pelo STF, em 2016, quando da análise do Tema 201 –, mas também no meio da cadeia econômico-produtiva, em metodologia irracional.
Com a adoção de alíquotas únicas e uniformes o modelo se tornou mais racional, sem tais ajustes, com a equiparação das alíquotas em todo o Brasil. E, sem complementos e restituições, Estados e contribuintes passaram a dispor de imediato dos seus recursos, podendo utilizá-los tanto na economia pública, quanto na privada.
Na encruzilhada, caminhamos adiante.
Transparência, porque passou a ser prevista a chamada “alíquota específica” (ou ad rem) para o ICMS desses produtos. Ou seja, foi adotado um valor fixo, aplicado sobre uma unidade de medida, possibilitando que cidadão possa saber quanto paga de ICMS em qualquer posto do país.
No modelo anterior, uma alíquota percentual (ad valorem) era calculada sob bases constantemente alteradas (preços médios ponderados finais/PMPFs e margens de valor agregado/MVAs). Não à toa, essa variação tornava obscuros e quase abstratos, aos contribuintes, os valores de ICMS suportados em cada transação.
Com as alíquotas ad rem, o “intangível” regime deu lugar a modelo no qual toda a sociedade é informada sobre o custo tributário assumido nas mercadorias adquiridas.
Na encruzilhada, caminhamos adiante.
Foi esse modelo mais simples, racional e transparente que foi replicado pela reforma, por meio da EC 132/23 (IBS e CBS). Na verdade, aperfeiçoado, com a inclusão de produtos no rol de sujeitos ao regime – como o etanol hidratado, o “álcool da bomba” –, que ainda hoje permanece no modelo de substituição.
Além disso, o respeito à neutralidade também foi aprofundado, com a garantia a créditos a todas as operações e prestações que não estejam na própria cadeia de comercialização, distribuição e revenda em si, mas a ela estejam vinculadas.
Na encruzilhada, caminhamos (e assim seguimos) adiante.
Passos para frente e retrocessos
De toda forma, há alguns passos que ainda precisam ser dados. E isso, em especial quando pensamos em seguir nessa caminhada rumo à efetivação dos, agora, “explícitos” princípios da simplicidade e da transparência, previstos no novo § 3º do artigo 145 da Constituição.
Dentre esses, é importante a adoção imediata do monofasia para o hidratado, assim como para as chamadas “correntes” – produtos que não são classificados como combustíveis derivados de petróleo, mas que como tal podem ser utilizados –, como as naftas.
Em ambos os casos, seja por conta da manutenção de regime complexo (etanol), seja como decorrência de carga menos gravosa (naftas), trata-se de distorções que fomentam a competição desleal e o mercado irregular, mas que deveriam ser ajustadas com a adoção da monofasia.
Na encruzilhada, precisamos seguir caminhando adiante.
Notem que, nesta caminhada, até aqui não tratamos da Lei Complementar 214/25, aquela mesma que regulamenta parte relevante da reforma introduzida no ordenamento pela EC 132/23. Isso foi proposital.
Aqui, encontramos o risonho Gato de Cheshire.
Na (nova) encruzilhada, paremos para refletir.
Reflexões e privilégios
Se até aqui a atenção foi para “passos adiante” – sejam os já dados, sejam os que podemos e precisamos dar ainda –, é essencial fazer uma pausa para lembrar-se por quais caminhos se quer seguir. Do contrário, pode-se ingenuamente achar que “qualquer caminho serve”, já que todos seriam “adiante”, considerando a realidade de um “novo” sistema “País das Maravilhas”, com suas simplicidade, transparência, justiça tributária, cooperação, defesa do meio ambiente (§ 3º do artigo 145 da CF/88).
Não, nem todo “caminho serve”. A alínea “e”, do artigo 441, da LC 214/25 deixa claro que o país (ainda não) é das maravilhas e que nas encruzilhadas sempre vai haver caminhos que apenas aparentam ser para frente.
Na encruzilhada, parados, reflitamos: não, nem todo “caminho serve”.
Por trás dos “novos” princípios e de todos os passos adiante dados desde a LC 192/22, passando pela EC 132/23 e regulamentados pela própria LC 214/25, esconde-se num beco escuro e mal iluminado um atalho, cujo destino é um privilégio tributário – mais que reles “benefício” –, ornamentado por “flores de plástico” bem no coração da Amazônia. Um privilégio que contraria não somente o que há décadas foi recepcionado pela CF/88, mas também decisão recente do STF e, pior, a reforma que mal foi editada.
Desde 1967, com a edição do DL 288, estão regulamentados os benefícios fiscais concedidos à região chamada Zona Franca de Manaus. Todavia, as operações de importação e exportação de alguns produtos – como combustíveis líquidos e gasosos derivados de petróleo – sempre foram exceção a esses incentivos.
Na encruzilhada, parados, reflitamos: “sempre”.
Não à toa, assim foram recepcionados pela Constituição de 1988; esclarecidos pela Lei 14.183/21; interpretados pelo STF – recentíssimo julgamento da ADI 7239 –; mantidos pela EC 132/23, em participar no artigo 92-B do ADCT.
Na encruzilhada, parados, reflitamos: “recepcionados; esclarecidos; interpretados; mantidos.”
Se assim o é – com destaque para o verbo “manter” do artigo 92-B do ADCT –, é gramaticalmente evidente que qualquer redação que vá além do “recepcionado” (pela CF), “esclarecido” (pela Lei 14.183/21), “interpretado” (pelo STF) e “mantido” (pela EC 132/23), está fora de todos esses (basta lembrar do “aposto”, da época do colégio, concretizado pelo estrondoso “exceto” que abre a frase do novo e inconstitucional privilégio). Portanto, juridicamente, contrário a esses mesmos.
Aqui, Alice não teria dúvidas do caminho e, assim, não ouviria do gato risonho que “qualquer caminho serve”.
Na encruzilhada, privilégio apenas é voltarmos a caminhar.
Caminhos (a seguir) adiante
Na construção de um modelo de tributação de combustíveis, caminhamos (e muito) adiante. Desde 2022, nas encruzilhadas tributárias, escolhemos os caminhos da simplicidade, da racionalidade e da transparência, mesmo quando esses ainda não estavam explícitos como princípios constitucionais.
Aprendemos a identificar caminhos de oportunidade e caminhos do oportunismo.
Aprendemos a distinguir caminhos adiante e becos escuros e mal iluminados.
Aprendemos que caminhos queremos tomar, cientes de que nem todo caminho serve.
Voltemos à encruzilhada e ao encontro com o Gato de Cheshire.
Nesta nova encruzilhada, de mãos dadas, somos mais de 210 milhões de Alices, juntos e conscientes de quais caminhos queremos seguir na construção de um novo sistema tributário para nosso país (cheio) de maravilhas.
Não, nem todo caminho serve.
Sim, sabemos que caminho seguir.
[1] CARROLL, Lewis. As Aventuras de Alice no País das Maravilhas. São Paulo: Companhia Editora Nacional.