Nas palavras de Jean-Baptiste Colbert, “A tributação é a arte de depenar o ganso de modo a obter o máximo de penas com o mínimo de chiado”. No Brasil atual, de tão depenado, o ganso já perdeu o chiado.
Porém, enfim uma medida se descortina como instrumento para obter novas penas, mas, agora, em alívio ao ganso.
A Câmara dos Deputados aprovou e enviou para a sanção presidencial o Projeto de Lei Complementar (PLP) 125/2022, que, além de criar o Código de Defesa do Contribuinte, instituiu a figura do Devedor Contumaz.
A probidade fiscal constitui um dos pilares inegociáveis sobre os quais se ergue a solidez econômica e a justiça social de qualquer nação desenvolvida.
É sabido que o cidadão exige serviços e o Estado exige tributos. Mas, o sistema tributário brasileiro, persistentemente complexo, é prato cheio para o florescer de patologias que, além de drenarem bilhões dos cofres públicos, distorcem os fundamentos da concorrência leal. Falo da figura do devedor contumaz.
Trata-se de um ator econômico que eleva a inadimplência fiscal à categoria de estratégia empresarial, acumulando dívidas tributárias de forma sistemática, volumosa e propositada, ou seja, sem qualquer intenção genuína de regularização.
O PLP 125/2022, originário da Comissão de Juristas do Senado, emerge como um instrumento legislativo transformador nesse contexto. A despeito de ter ficado adormecido por mais de 3 anos no Senado, ganhou tração após eclodir a operação Carbono Oculto. Enviado à Câmara do Deputados, uma vez mais foi temporariamente escanteado, até ser deflagrada a operação Poço de Lobato, caso em que foi novamente revivido.
Aliás, este era um dos raros projetos em que havia convergência de entendimento entre fisco e contribuintes, por representar um jogo de ganha-ganha republicano, razão pela qual não estava sob a luz do dia as razões que o relegaram tanto tempo à escuridão. Só quem perde com esse projeto é o agende violador do ordenamento jurídico.
O PLP 125/2022 não se limita a propor ajustes. Muito além, anuncia uma redefinição substancial na abordagem da inadimplência fiscal sistêmica, estabelecendo um cerco que visa coibir a prática da sonegação reiterada, substancial e injustificada. Trata-se de um marco essencial na reconstrução da ética fiscal e na promoção de um ambiente de negócios mais justo e equitativo no Brasil.
Uma nota a se fazer é quanto à distinção entre o inadimplente pontual e o devedor contumaz. Aquele, em momentos de adversidade econômica ou por falhas pontuais de gestão, pode enfrentar dificuldades no cumprimento de suas obrigações, buscando ativamente mecanismos de regularização, como parcelamentos e negociações; já este, o contumaz, opera sob uma lógica distinta: internaliza a dívida fiscal como um componente estratégico de seu modelo de negócio; suas características são nítidas: a inadimplência é recorrente e substancial, refletindo um padrão deliberado de não recolhimento.
Além disso, diferentemente do inadimplente comum, o contumaz raramente demonstra iniciativa legítima para quitar ou negociar suas dívidas, mesmo diante de opções de parcelamento ou transação. Assim, ao não recolher impostos, o contumaz opera com custos artificialmente reduzidos, capacitando-lhe a praticar preços predatórios ou a reinvestir capital que, por direito, pertenceria à coletividade. Essa distorção, muitas vezes, inviabiliza a concorrência para as empresas que operam dentro da legalidade.
O PLP 125/2022 arma o Estado com um conjunto de ferramentas mais assertivas e coativas no combate à contumácia. Foca-se na prevenção e na desarticulação da estratégia do devedor contumaz.
Uma das inovações mais cruciais é a criação de critérios claros e objetivos para a qualificação contumácia. Isso garante segurança jurídica ao bom pagador de tributos, evitando arbitrariedades e assegurando que apenas os verdadeiros transgressores sejam alvo das medidas mais severas. A qualificação como contumaz considerará o volume da dívida e a frequência da inadimplência, consolidando uma base sólida para a atuação fiscal.
Uma vez enquadrado como tal, o devedor contumaz será submetido a um regime de restrições que progressivamente inviabilizará sua operação ilegal, a exemplo de: a) Regimes Especiais de Fiscalização: a empresa será alvo de um escrutínio fiscal intensivo, com auditorias constantes, monitoramento rigoroso de suas movimentações financeiras, emissão de notas fiscais e fluxo de mercadorias. Tal nível de vigilância inibirá qualquer tentativa de perpetuar a sonegação; b) Exclusão de Incentivos e Benefícios Fiscais: a perda de regimes tributários especiais, isenções ou reduções de alíquotas compromete a sustentabilidade financeira de empresas que já operavam à margem da lei, eliminando uma de suas principais vantagens competitivas; c) Impedimento de Participação em Licitações Públicas: para muitas organizações, o acesso ao mercado governamental é vital. A proibição de participar de processos licitatórios públicos representa um significativo entrave comercial; d) Restrições e Suspensão de Documentos Fiscais: a capacidade de emitir notas fiscais é o oxigênio de qualquer empresa. Restringir ou suspender essa prerrogativa equivale a um bloqueio operacional, inviabilizando a continuidade das atividades comerciais; e, e) Inscrição em Cadastros Restritivos: a inclusão em bancos de dados de devedores fiscais prejudica a reputação da empresa, seu acesso a linhas de crédito e a sua credibilidade junto a fornecedores e clientes, isolando-a no mercado.
Há, ainda, outros mecanismos de combate, como a desconsideração da personalidade jurídica – atingindo a pessoa física – e a aceleração da responsabilização criminal, solidificando a mensagem de que a impunidade fiscal é uma era finda.
A implementação do PLP 125/2022, portanto, não se limita à mera recuperação de créditos fiscais. Seus impactos ressoam em múltiplas dimensões da vida econômica e social do país, como a promoção da concorrência leal, fortalecimento do caixa público, melhoria do ambiente de negócios e atração de investimentos e restauração da confiança social e nas instituições de fiscalização.
A esperança é que a caçada ao devedor contumaz promova recuperação de valores vultosos anteriormente perdidos, o que é fundamental para o financiamento de políticas públicas essenciais. Cada real arrecadado do devedor contumaz é um real que pode ser investido na melhoria da qualidade de vida dos cidadãos. E, quando o Estado demonstra eficácia no combate à fraude e à sonegação sistêmica, a confiança da sociedade nas suas instituições e no sistema tributário é fortalecida, incentivando a conformidade e a participação cívica.
O PLP 125/2022, portanto, transcende a função de uma simples inovação legal. Ele representa um reforço da fibra moral e econômica do país. É o alvorecer de uma nova era de responsabilidade fiscal, onde a cultura da transgressão cede lugar à retidão, e a legalidade se impõe como baluarte inabalável da prosperidade coletiva.
Receba de graça todas as sextas-feiras um resumo da semana tributária no seu email
Ele materializa um avanço legislativo de magnitude inquestionável no ordenamento jurídico brasileiro. Ao definir com clareza o devedor contumaz e ao municiar os órgãos fiscalizadores com um conjunto de ferramentas robustas, o projeto pavimenta o caminho para um combate mais eficaz e sistemático à inadimplência fiscal “estratégica”. Ele não apenas endereça uma lacuna legal preexistente, mas também envia uma mensagem inequívoca: a era da impunidade fiscal e da concorrência desleal está chegando ao seu fim.
Este novo panorama exige das empresas um compromisso ainda maior com a conformidade e a ética. A observância deste instituto não é apenas uma obrigação legal, mas uma oportunidade para fortalecer a reputação e a sustentabilidade dos negócios. O PLP 125/2022 é, em última análise, um convite à ação – para o Estado, para as empresas e para a sociedade como um todo – na construção de um futuro fiscal mais justo e equilibrado para o Brasil.