Neste ano de 2024, a Lei Geral de Proteção de Dados completará seis anos de existência. Promulgada em agosto de 2018, e popularmente chamada de “LGPD”, a Lei 13.709 entrou em vigor somente no ano de 2020, após alguma resistência de determinados setores da sociedade. Anteriormente pouco debatida em nosso país, a proteção de dados pessoais passou a ocupar a posição de centralidade no debate público.
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No primeiro ano de vigência da LGPD, o Supremo Tribunal Federal (STF), ao julgar um conjunto de Ações Diretas de Inconstitucionalidade, reconheceu aos dados pessoais a natureza de direito fundamental implícito no texto constitucional, a ser deduzido do art. 5, inciso X, da Constituição Federal de 1988 (“são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”).[1] Dois anos mais tarde, o próprio Congresso Nacional aprovou a Emenda Constitucional 22/2022, inserindo a proteção de dados pessoais no catálogo de direitos fundamentais do artigo 5º da Constituição Federal: “é assegurado, nos termos da lei, o direito à proteção dos dados pessoais, inclusive nos meios digitais” (art. 5º, LXXIX, da Constituição Federal de 1988). Dados pessoais são, portanto, direitos fundamentais. E esta informação parece-nos de suma relevância para o combate à violência contra a mulher.
Não é de hoje que o ambiente virtual vem se mostrado um campo fértil para a prática de atos de violência doméstica contra mulheres e meninas. Uma pesquisa realizada pela ONG Plan Internacional Brasil no ano de 2020, revelou que 77% (setenta e sete) por cento das mulheres do Brasil já sofreram alguma espécie de violência digital.[2] A importância do tema, contudo, vai além das redes sociais e dos crimes praticados no ambiente virtual.
Na opinião deste autor, o sistema de proteção e combate à violência doméstica e familiar contra a mulher parece ainda não ter se conscientizado, tampouco incorporado a cultura protetiva advinda da Lei Geral de Proteção de Dados. Lembremos mais uma vez: dados pessoais são direitos fundamentais, e este deve ser sempre o ponto de partida do intérprete nas discussões acerca do tema.
O primeiro texto deste ano na coluna Direito dos Grupos Vulneráveis apresenta algumas propostas de aprimoramento do combate à violência doméstica e familiar contra a mulher a partir das possibilidades oferecidas pela consciência criada na proteção adequada de dados pessoais após o advento da LGPD em nosso país.
O tratamento dos dados pessoais de mulheres vítimas de violência doméstica pelo sistema de justiça
O primeiro ponto a ser destacado por este autor diz respeito ao tratamento dos dados pessoais de mulheres e meninas vítimas de violência doméstica pelo sistema de Justiça. Segundo o artigo 5º da LGPD, são considerados “dados pessoais” as informações relacionadas a pessoa natural identificada (inciso I). Em processos de fatos ocorridos no contexto de violência doméstica e familiar contra a mulher, dados pessoais tais como o endereço e o número de telefone assumem relevante importância, já que podem permitir o contato com a vítima ou até mesmo levar a sua localização.
Nessa perspectiva, o tema deve ser contextualizado a partir do artigo 7º da Lei 13.709/2018, o qual prevê as hipóteses nas quais é possível o manejo de dados pessoais em território brasileiro. Exige-se, em regra, o consentimento pelo seu titular de forma específica e para determinada finalidade (art. 7º, inciso I) e, ainda, autoriza-se o manejo de dados pessoais sensíveis “para o exercício regular de direitos em processos judiciais” (art. 7º, inciso VI). Chegamos aqui, em um primeiro ponto de contato entre a Lei Geral de Proteção de Dados e a Lei Maria da Penha.
Ao formular um requerimento de Medida Protetiva de Urgência (MPU), a mulher vítima de violência doméstica e familiar fornece ao Estado, além de um resumo acerca dos fatos ocorridos, sua qualificação pessoal (nome, idade, RG, CPF, nome dos pais etc.), além de seu endereço e número de telefone. O mesmo ocorre em processos judiciais cíveis e criminais.
Pois bem. Em regra, e este autor pode falar a partir da experiência de quem vivencia o combate à violência doméstica e familiar contra a mulher no seu dia a dia como Promotor de Justiça, não há sigilo decretado ou restrição de visualização em relação aos endereços e contatos telefônicos de mulheres e meninas vítimas de violência doméstica, ressalvados casos excepcionais (v.g., crimes contra a dignidade sexual ou ações de família). O endereço da mulher vítima de violência e seu número de telefone fica à disposição de quem queira acessá-lo. E isso inclui o próprio agressor e seu advogado. A questão não pode ser tratada de forma tão primária.
Não pretende este autor defender a decretação do sigilo de todo e qualquer processo envolvendo a temática – até porque esta alternativa não soluciona o problema –, mas apenas o tratamento adequado de dados pessoais, objetivando o aprimoramento protetivo do sistema de justiça[3]. Ao final, todos buscam um único objetivo: a proteção de sua integridade física e psicológica de mulheres e meninas vítimas. Deixar à disposição de qualquer pessoa, dados sensíveis, e que indicam a localização e o número de telefone de uma vítima de feminicídio tentado, de stalking ou cyberstalking, ou ainda de outra infração penal cometida no contexto da Lei Maria da Penha, vai de encontro ao próprio reconhecimento da proteção de dados pessoais como direito fundamental.
É tempo – já passou da hora, em verdade – de todos os Tribunais de Justiça do país possuírem um campo possibilitando a inserção de dados que possam trazer risco à mulher vítima de violência doméstica. Incorporando o espírito da LGPD, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJSP) incorporou em seu sistema de gestão processual, a possibilidade de inserção de dados das vítimas em campos não disponíveis público em geral do ano de 2019.[4]
Embora a providência sugerida seja necessária, a sua simples adoção não resolve a questão. É necessária a implementação de uma cultura de proteção de dados em matéria de combate à violência doméstica e familiar contra a mulher. A começar pelos atores da rede de proteção da mulher. Vejamos algumas situações práticas que devem ser aperfeiçoadas.
Situação prática 1
Imaginemos que uma mulher em situação de violência doméstica se dirige até a Delegacia de Polícia para formular requerimento de medida protetiva de urgência. Neste caso, sugere-se que a autoridade policial questione a vítima sobre o desejo em ter seu número de telefone e endereço ocultado no processo. Possivelmente um número significativo de mulheres responderá de forma positiva.
Situação prática 2
Suponhamos que a autoridade policial não indagou a vítima a respeito do interesse em manter seu endereço e número de telefone ocultos no processo. Pode o membro do Ministério Público, ao exarar parecer acerca do requerimento de MPU formulado, antevendo uma situação de perigosidade e com base no artigo 19 da Lei Maria da Penha – além de valer-se da aplicação do princípio da precaução – formular o referido pedido ao juízo.
Em ambas as hipóteses ilustradas, o pedido da ocultação do endereço e contato telefônico pode, na compreensão deste autor, ser inclusive concebido e deferido como medida protetiva de urgência inominada em favor da ofendida, em razão da natureza exemplificativa do rol de MPUs disponíveis em favor da vítima, conforme artigo 23, caput, da Lei 11.340/2006.
Situação prática 3
Por fim, imaginemos que não foram tomadas as referidas providências pela autoridade policial ou pelo parquet. Nada impede que o magistrado, ao deferir o requerimento de medidas protetivas de urgência em favor da vítima, determine ao Oficial de Justiça que, no momento de proceder à intimação da mulher em situação de violência doméstica, questione-a acerca do interesse em ter seu endereço e contato telefônico ocultado nos autos. Em caso de resposta afirmativa, poderá o Poder Judiciário conhecer do “pedido” como medida protetiva de urgência inominada.
Todas as sugestões caracterizam pequenos ajustes atitudinais dos atores do sistema de justiça, mas que, se incorporados, elevam o grau de proteção das mulheres e meninas em território brasileiro, prevenindo de novos atos de violência doméstica e familiar por parte de potenciais feminicídas, stalkers etc. É necessária uma postura ativa por parte do Estado no acautelamento das referidas informações. Esperar que mulheres vítimas farão o pedido por iniciativa própria é ignorar a vulnerabilidade jurídica e informacional a que estão submetidas.
Servidoras públicas vítimas de violência doméstica e divulgação de dados pessoais em portal da transparência
Outro ponto de sensível intersecção entre a LGPD e o sistema de combate à violência doméstica e familiar contra a mulher concerne à divulgação de dados pessoais de servidoras públicas nos portais da transparência dos respectivos entes federados. Desde o advento da Lei 12.527/2011, diploma legal popularmente conhecido como “Lei de Acesso à Informação”, União, Estados, Distrito Federal e Municípios possuem a obrigação de divulgar, por iniciativa própria e independente de requerimento, uma série de informações de interesse público. Trata-se da chamada “obrigação de transparência ativa” por parte do Estado.
Dentre o conjunto de informações a serem disponibilizadas no contexto mencionado, estão o nome de cada um dos servidores ligados ao respectivo órgão, cargo em exercício, local de lotação etc. A Lei de Acesso à Informação não impõe ao Estado a disponibilização de dados pessoais de seus servidores, tais como RG, CPF, endereço e número particular de telefone. Contudo, havendo no órgão, servidoras públicas vítimas de violência doméstica e familiar, a obrigação de transparência ativa deve ser implementada a partir de uma perspectiva de gênero.
E neste aspecto, verifica-se no estado do Rio de Janeiro um exemplo a ser seguido. Entrou em vigor no dia 25 de março de 2022, a Lei Estadual 9.606. O diploma contém uma única, porém muito importante determinação: “a exclusão das informações obrigatórias constantes nos portais de transparência de todos os Poderes, órgãos e entidades da Administração Pública Direta e Indireta do Estado do Rio de Janeiro, aquelas relativas à lotação de servidoras do Estado que estejam sob o alcance de medidas protetivas determinadas pelo Poder Judiciário em função da Lei Federal 11.340, de 7 de agosto de 2006”. A iniciativa do legislador fluminense é digna de efusivos elogios, uma vez que incorpora – de forma pioneira – a cultura da proteção de dados pessoais a partir das lentes de gênero.
Não é incomum – infelizmente – que servidoras públicas também sejam vítimas de violência doméstica. Nestes casos, a simples publicação da repartição na qual a servidora desempenha suas funções, ou mesmo a vinculação do endereço profissional do órgão ao seu nome pode vir a representar um risco à sua integridade física ou psicológica.
É necessária a realização uma avaliação de risco em tais casos, sempre em conjunto com a servidora pública, e a partir de verificação com base em informações concretas (v.g., a existência de medidas protetivas de urgência em vigor, ação penal contra o agressor em tramitação etc.). Concluindo-se pela existência de risco, os dados acerca do local de lotação da servidora devem ser ocultados com fulcro na Lei Geral de Proteção de Dados. Haverá, neste caso, uma ponderação entre o direito fundamental ao acesso à informação – que continuará disponível à sociedade de maneira geral, restringindo-se apenas a publicidade acerca da repartição na qual a servidora vítima de violência doméstica desempenha suas funções – e o direito fundamental à integridade da mulher.
Espero que tenham gostado. Um ótimo 2024 a todos.
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[1] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADIs 6387, 6389, 6390 e 6393> Rel. Min. Rosa Weber, j. 07/05/2020.
[2] Liberdade Online. Plan Internacional Brasil. Disponível em: https://cdn.plan.org.br/wp-content/uploads/2020/10/LIBERDADE-ON-LINE-20201002.pdf. Acesso em: 19/12/23.
[3] Em agosto de 2023, a Comissão da Mulher da Câmara dos Deputados aprovou projeto que prevê absoluto sigilo para as informações constantes nos boletins de ocorrência e autos de processos judiciais reveladores da identidade da vítima no caso de denúncia de violência doméstica. Trata-se do substitutivo ao projeto de lei nº 3333/20, que segue em tramitação perante outras comissões da referida casa legislativa.
[4] CONJUR. TJ-SP protegerá dados pessoais de vítimas de violência doméstica. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2019-dez-7/tj-sp-protegera-dados-pessoais-vitimas-violencia-domestica/