“As pessoas enlouqueceram?”. Começava assim a coluna de um articulista tão indignado quanto eu com as reações ideológicas dos ditos grupos de esquerda e direita frente aos conflitos em Israel e Palestina. A mesma dúvida me motivou a escrever sobre críticas que tenho colhido a respeito de formas de atuação no campo da filantropia.
O combate à pobreza e à desigualdade deve ser um compromisso universal. Penso inequívoco afirmar que esforços pela minoração das extremas desigualdades é bem-vindo. Qualquer esforço. Há dois fundamentalismos aparentemente antagônicos, mas convergentes, que se opõem aos esforços de redução da desigualdade de oportunidades, renda e dignidade. De um lado, os dogmatistas liberais extremados que confundem a mão invisível com a invisibilização da pobreza. De outro, os revolucionários bem acomodados na internet que apostam no aprofundamento da desigualdade como húmus da revolução libertadora. Ambos se aproximam na inconsequência e na irresponsabilidade social. São duas vertentes do anti-humanismo.
Num país de profundas desigualdades, enorme carência e déficit de direitos, a filantropia é uma promissora via para uma sociedade mais sustentável e menos desigual. Simplificando, classificaria em dois os tipos de filantropia venturosas: a de assistência, voltada às necessidades imediatas e de curto prazo; e a de cunho estratégico, que busca a efetivação de direitos difusos e coletivos, com a redução de desigualdades estruturais. São caminhos que se cruzam e se complementam no combate à pobreza e às desigualdades de toda espécie – nosso mal maior. Nesta trilha, em que todos os esforços devem se somar, o purismo filantrópico é outro nome para a irresponsabilidade social.
Entre o curto e o longo prazo, entre o emergencial e o estratégico, o Brasil não pode se dar ao luxo de estigmatizar esforços filantrópicos, como se houvesse uma filantropia “do bem”, acolhida e necessária, e uma filantropia “do mal”, repugnante pois financiada com recursos ou estratégias maculados de origem.
Pode soar estranho, mas é o que acontece em alguns setores da sociedade civil. Num ambiente estereotipado e também polarizado na lógica de apartar o mundo entre pessoas boas e pessoas más, assistimos estranhamente emergirem preconceitos dirigidos a iniciativas que conseguem sensibilizar, mobilizar e atrair recursos de uma parcela abastada da sociedade brasileira.
Pouco importam as nominadas filantrópicas. O que preocupa é a existência de movimentos que tentam descredenciar a capacidade de captação milionária de recursos por parte de empreendedores sociais. Seu pecado: atrair empresas, empresários e filantropos com um discurso que bem poderia ter saído de uma startup do Leblon ou de um fundo de investimento da Faria Lima. Usando métodos inusuais no mundo da filantropia e das organizações da sociedade civil tradicionais, fora da estética e dos parâmetros tradicionais do terceiro setor, esses empreendedores alcançam resultados surpreendentes. E por isso são destinatários de ataques ferozes. Mas a reação vai além da diagnose de Tom Jobim, que já alertava ser o sucesso, no Brasil, ofensa pessoal. O sucesso destas iniciativas, para além de tomada como ofensa pessoal, não sofre apenas de esforços de deslegitimação. Mais grave, tem sido objeto de iniciativas de criminalização de seus meios e seus fins.
Seja numa campanha de mobilização de recursos para apoiar emergencialmente vítimas de desastres naturais, seja em eventos promovidos para captar recursos do Brasil rico a serem investidos em mudanças mais permanentes, iniciativas que atraem milhões e milhões de reais de diversos doadores privados são vistas como suspeita de “má conduta”. Num só evento recente, uma destas entidades chegou a captar nada menos do que R$ 34 milhões para seu trabalho voltado ao impacto social nas favelas. Naquela mesma semana, as notícias davam conta que o governo federal, com grande esforço diplomático de diversos ministérios, conseguiu do governo da Dinamarca R$ 100 milhões para o Fundo Amazônia. Ou seja, numa noite, um empreendedor social conseguiu do setor privado aproximadamente 1/3 do que o governo brasileiro atraiu de doação de um país europeu interessado em estreitar a cooperação pela transição energética.
Algo dessa magnitude, com sua energia mobilizadora e capacidade de transformação social (pontual ou estrutural, não importa), deveria ser aplaudido, incentivado, replicado. E o que se vê como reação em alguns setores? O olhar torto, silenciosamente condenatório, e palavras ácidas. Na mira desses críticos, o questionamento sobre os métodos, o discurso e, claro, a condenação do perfil ideológico dos empresários atraídos. Tudo porque sua abordagem não se encaixa na semiótica mais familiar desse campo.
Quem se prende à taxonomia ideológica da filantropia esquece o fundamental: os objetivos imperativos a que ela deve perseguir. Dos filantropos progressistas ou do centro liberal aos empresários classificados à direita do espectro ideológico-partidário, ou do centro conservador, as soluções de que precisamos exigem um esforço coletivo, e urgente, que não nos permite ceder a distrações desse tipo.
Volto ao Antonio Prata: “Os rótulos, a serem colados em quem desvie um milímetro dos dogmas do grupo, têm efeito duplo. Negam qualquer dignidade ao rotulado, ao mesmo tempo em que produzem uma total paralisia no raciocínio de quem os aplica. Se a doença acometesse apenas o cérebro, menos mal, mas também ataca o coração, que, todos sabem, é um órgão diretamente ligado à visão.”.
A filantropia não substitui a ação dos governos. Sua missão é complementar políticas públicas, é trabalhar para que as leis e a ação do Estado cheguem cada vez mais, e de forma mais eficiente, a quem mais precisa, é contribuir para que governos sejam mais responsáveis e eficientes. Naquilo que cabe à filantropia, não há por que restringirmos sua agenda diante da pobreza e da desigualdade ao universo progressista ou da esquerda. Que venham discursos e abordagens diferentes. Que métodos “de mercado” se somem ao padrão tradicional das organizações do terceiro setor. Que mais exemplos de empreendedores sociais se convertam em líderes midiáticos e potenciais transformadores de uma realidade que desejamos ver convertida.
Combater a desigualdade deve ser um dever moral e uma conduta pragmática de todos nós. Não se faz a revolução pela filantropia, é fato. Como também não se reduz a desigualdade e a pobreza com estereótipos e preconceitos. Os menos favorecidos não têm tempo a esperar pela revolução. Nem pela unção ideológica.