Com quantos erros se faz um acerto?

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Nos últimos dias, o PL 1388/2023, de autoria do senador Rodrigo Pacheco (PSD-MG) e relatoria do senador Weverton Rocha (PDT-MA), ganhou destaque no Senado. O projeto pretende atualizar a Lei do Impeachment (Lei 1.079/1950) e foi debatido na Comissão de Constituição e Justiça daquela Casa em audiência pública, que contou com a Comissão de Juristas responsável pela elaboração do anteprojeto de lei em que a proposição legislativa está baseada.

A nova proposta traz diversas alterações à legislação atual, dentre as quais destaca-se a ampliação do rol de autoridades sujeitas ao processo de impeachment, a tipificação de novas condutas e a limitação do poder de “engavetamento” de denúncias por crime de responsabilidade pelas autoridades competentes para recebê-las. 

Na justificativa do projeto, Pacheco afirma que a atual Lei do Impeachment é obsoleta, não apenas do ponto de vista contextual, considerando sua elaboração durante a vigência da Constituição de 1946, mas também do ponto de vista normativo-constitucional, na medida em que, supostamente, incorpora “ideias parlamentaristas vencidas na Constituinte”, fazendo-lhe “uma lei lacunosa, incompleta e inadequada”. Essa concepção, inclusive, encontra abrigo no próprio anteprojeto elaborado pela Comissão de Juristas para atualização da Lei 1.079/50.

Embora a reformulação tipológica dos crimes de responsabilidade se justifique por referência à dimensão jurídico-penal do impeachment (de tal modo que não haveria crime sem lei anterior que o defina), consideramos que o ímpeto reformista é sintoma de uma síndrome problemática: o eterno retorno ao sistema de regras positivista, que, por sua vez, denota um grave déficit hermenêutico no processo de interpretação e aplicação do direito.

Como sintoma dessa crise, destacaremos a aposta legislativa na estipulação explícita de um prazo para deliberação sobre o acolhimento da denúncia como instrumento catalisador da segurança jurídica e como garantia do devido processo legal. 

Em seu artigo 29, o projeto determina que a denúncia por crime de responsabilidade deverá ser apresentada à presidência da Casa Legislativa competente e apreciada em até 30 dias úteis. Caso o referido prazo transcorra sem qualquer manifestação da autoridade competente, considerar-se-á ter havido indeferimento tácito da denúncia, cabendo recurso à Mesa Diretora por pelo menos 1/3 dos membros da respectiva Casa.

A justificativa para a inovação legislativa está assentada na suposição de que a ausência de previsão expressa de prazo para que a autoridade competente se manifeste pelo recebimento da denúncia por crime de responsabilidade denotaria a ausência de qualquer constrangimento normativo para que a decisão seja proferida em tempo razoável. 

O Supremo Tribunal Federal (STF) teve a oportunidade de se manifestar sobre a questão no julgamento dos mandados de segurança 38.034 e 38.133, impetrados para que o tribunal determinasse ao presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira, o dever de analisar as denúncias por crime de responsabilidade ofertadas em desfavor do então presidente da República, Jair Bolsonaro, tendo em vista o extenso lapso temporal transcorrido sem qualquer manifestação em relação às denúncias. Distribuídos à relatoria da ministra Cármen Lúcia, os mandados de segurança foram julgados improcedentes ao argumento de que não havia norma legal que contivesse previsão expressa de prazo para que o presidente da Câmara se manifestasse sobre denúncias por crime de responsabilidade contra o presidente da República. 

De certa maneira, o PL 1388 parece atender à lacuna normativa apontada pelo Supremo Tribunal Federal. Contudo, embora a Lei 1.079/50 não estipule prazo para o presidente da Câmara dos Deputados se manifestar sobre denúncia por crime de responsabilidade ofertada em desfavor do presidente da República, daí não decorre a conclusão de que não haja direito à razoável duração do processo, nem que seus rumos possam ficar submetidos aos caprichos dessa autoridade.

O STF possui jurisprudência assentada no sentido da natureza pelo menos em parte jurídico-penal do impeachment, tanto é assim que, de acordo com a Súmula Vinculante 46, compete privativamente à União definir os crimes de responsabilidade e as respectivas normas de processo e julgamento. O tribunal também entende serem aplicáveis ao processo de impeachment do presidente da República todas as garantias decorrentes do princípio do devido processo legal.[1]

O artigo 5º, inciso LXXVIII, da Constituição de 1988, por sua vez, dispõe que a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação. Negar aplicação desse preceito constitucional à tramitação de denúncia por crime de responsabilidade contra o presidente da República implica admitir, por vias transversas, que o devido processo legal do processo de impeachment não abrange a garantia da duração razoável do processo.  

Além disso, conforme os parágrafos 2º e 3º, do artigo 218, do Regimento Interno da Câmara dos Deputados, caso seja recebida pela presidência da Casa, a denúncia deve ser encaminhada para análise da Comissão Especial. Caso seja indeferida, cabe recurso ao plenário para que este decida sobre o arquivamento. Isso indica que a decisão pelo recebimento ou arquivamento da denúncia por crime de responsabilidade contra o presidente da República não é exclusiva do presidente da Casa, de modo que ele não pode privar o colegiado de se manifestar sobre essa questão. 

No entanto, nenhum desses pontos foram levados em consideração pelo tribunal. Agora, o Senado procura responder à lacuna apontada pelo Supremo, mas, ao fazê-lo, ignora a dimensão principiológica do direito e, assim, tolera abusos de direito travestidos de discricionariedades.

Em outras palavras, o ímpeto reformista parece dizer: “os poderes do presidente da Câmara dos Deputados são incontroláveis até que alteremos a legislação”. Com isso, a lógica reformista condiciona o Estado de Direito à existência de uma legislação ordinária semanticamente explícita, sem lidar com o fato de que sistemas jurídicos dependem do dever de fidelidade ao direito para constituírem-se enquanto tal.[2]

O erro fulcral, aqui, tanto do STF quanto do Legislativo, é a redução do direito a um sistema estático de regras que depende de um teste formal de “pedigree” insensível à força de certas normas implícitas de fundo.[3] Esse diagnóstico revela uma intoxicação positivista na medida em que separa a aplicação do direito de sua interpretação, tornando a prática constitucional cega aos princípios sobre os quais ela própria está estruturada. Sendo assim, do que adianta compreender o impeachment como instituto pelo menos em parte jurídico-penal e reconhecer a incidência das garantias do devido processo legal à sua tramitação perante o Congresso Nacional se a prática interpretativa ainda permanece presa ao positivismo jurídico? Será que boa parte das inovações pretendidas já não podem ser extraídas diretamente de uma leitura combinada da normativa do impeachment e da jurisprudência do STF?

É claro que a inovação pretendida pelo artigo 29 do PL 1388/2023 representa um avanço. O problema é a justificativa para a sua adoção e as disfuncionalidades dela decorrentes.

[1]  Para uma recuperação desses entendimentos, cf. MEGALI NETO, Almir. O impeachment de Dilma Rousseff perante o Supremo Tribunal Federal. Belo Horizonte: Expert, 2021.

[2] FULLER, Lon. The Morality of Law. 2. ed. New Haven: Yale University Press, 1969.

[3] DWORKIN, Ronald. Taking Rights Seriously. Cambridge, MA: Harvard University Press, 1978. p. 34-9.