Com mercado bilionário em expansão, medicina psicodélica desafia regulação e Judiciário

  • Categoria do post:JOTA

“Mais do que ter crises de depressão, o meu humor é muito reativo, com pensamentos suicidas e de autoflagelação”, diz Silvia (nome fictício), de 30 anos. Ela foi diagnosticada com transtorno de personalidade borderline e Transtorno do déficit de atenção com hiperatividade (TDAH), depois de ter passado pela hipótese de depressão resistente. Em 2023, Silvia começou o tratamento off-label de cetamina por infusão intravenosa. “Nesse aspecto, a cetamina me ajudou muito a não cair nesse desespero, nesse ponto que pode ser muito perigoso”​.

Originalmente desenvolvida como anestésico na década de 1960, a cetamina tem uso clínico tradicional para anestesia em procedimentos de curta duração, com ação rápida e efeitos dissociativos. Mas sua utilização, assim como de outras substâncias psicodélicas, tem se ampliado para casos como o de Silvia, e vem sendo aplicada off-label no tratamento de transtornos mentais por infusão intravenosa – uma prática que não é regulamentada no Brasil.

A decisão de iniciar o uso off-label de cetamina, sob indicação de seu psiquiatra, se deu após anos de medicação convencional que não surtiu o resultado esperado. Silvia começou fazendo sessões semanais e depois mensais, com injeções durante uma hora sob supervisão de seu médico – um tratamento bem diferente dos antidepressivos tradicionais, que são ingeridos diariamente. “Nessa uma hora eu só fico deitada e não faço absolutamente nada. Você se sente realmente sob efeito de um psicodélico, com muitos pensamentos sobre a vida, a sociedade, tudo. Eu sentia que entrava na Matrix”, conta. “No pós-sessão, a cetamina te deixa num estado de muita tranquilidade, de uma felicidade calma.”

O uso de psicodélicos como a cetamina em tratamentos de saúde mental é relativamente recente. Nas últimas duas décadas, a substância passou a ser estudada em doses sub anestésicas para o tratamento de transtornos psiquiátricos, especialmente depressão resistente, transtorno bipolar e ideação suicida aguda. Além da administração intravenosa, usada por Silvia, o isômero escetamina é aplicado de forma intranasal, como o medicamento Spravato, que obteve registro da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) em 2020. Outros psicodélicos, como os obtidos em cogumelos, por exemplo, vivem outras situações de limbo regulatório.

“O que existe hoje é uma anomia — que é o que acontece quando há uso e não há regulação”, diz Emílio Figueiredo, sócio do escritório Figueiredo, Nemer e Sanches Advocacia Insurgente. Esse uso tende a crescer. Segundo relatório da Spherical Insights de 2023, o mercado global de medicamentos psicodélicos foi estimado em US$ 2,9 bilhões, com projeções de saltar para mais de US$ 8 bilhões até 2033. Esse avanço é impulsionado por uma combinação de fatores, segundo o estudo: aumento dos transtornos de saúde mental, falhas nos tratamentos convencionais, crescimento de startups de biotecnologia e flexibilização regulatória, principalmente em países no Norte Global.

O Brasil, 5º país mais depressivo do mundo, com 12 milhões de brasileiros convivendo com a doença, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), desponta como um mercado atrativo. 

O que diz a ciência

Os estudos sobre substâncias como psilocibina, LSD, DMT (substância presente na ayahuasca) e MDMA vêm se multiplicando, com resultados considerados promissores, especialmente no tratamento da depressão resistente, transtorno do estresse pós-traumático (TEPT), transtornos obsessivo-compulsivos (TOC) e quadros relacionados à finitude da vida, afirma Marcelo Falchi, professor da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e pesquisador do tema há quase uma década, atualmente no Centro Avançado de Medicina Psicodélica. “As substâncias psicodélicas têm uma capacidade de gerar novas conexões cognitivas, a chamada psicoplasticidade, que parecem romper padrões rígidos de pensamento associados a esses transtornos”, afirma.

Assim, os psicodélicos atuam em processos metacognitivos, os chamados pensamentos sobre o próprio pensamento, que, quando desregulados, estão por trás de sintomas como ruminação depressiva e preocupações ansiosas. “O antidepressivo convencional trata os sintomas, mas não a rigidez do pensamento que os causa. Os psicodélicos parecem atuar mais profundamente, no núcleo desses processos”, explica Falchi. Pesquisas apontam que essas substâncias têm se mostrado eficazes mesmo com poucas administrações, diferentemente de tratamentos convencionais contínuos.

Estudos da Universidade Johns Hopkins, por exemplo, demonstraram redução sustentada de sintomas depressivos após sessões únicas de psilocibina, com efeitos durando semanas ou meses. Em outros resultados obtidos por pesquisas do MAPS (Multidisciplinary Association for Psychedelic Studies), nos Estados Unidos, pacientes alcançaram mais de 60% de remissão dos sintomas de TEPT após três sessões assistidas com MDMA, em estudo de fase 3 (fase que analisa a eficácia e segurança de tratamentos).

No Brasil, há dois estudos clínicos envolvendo psicodélicos em andamento na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp): um deles busca descobrir a eficácia do uso de DMT no tratamento de dependência de álcool, e outro investiga os efeitos dos cogumelos com psilocibina para pessoas que buscam abandonar o tabagismo.

Além disso, Falchi estuda DMT, e busca desenvolver uma formulação de curta duração mais adequada ao ambiente clínico. “Estamos testando microdoses intravenosas de DMT purificado, com protocolos que assegurem segurança e reprodutibilidade. A duração total do efeito não ultrapassa 30 minutos, o que viabiliza a aplicação ambulatorial”, explica. Os primeiros testes clínicos, segundo ele, indicam melhora significativa do humor em pacientes com quadros graves de depressão, mesmo após poucas sessões.

Com notícias da Anvisa e da ANS, o JOTA PRO Saúde entrega previsibilidade e transparência para empresas do setor

Por outro lado, ainda há questões em aberto sobre o tratamento com psicodélicos – o que reforça a necessidade de regulamentação para condução de mais estudos, que respondam às hipóteses que ainda vão surgir. Por exemplo, uma revisão sistemática publicada no Journal of Psychiatric Research em 2022 apontou que, com exceção de um estudo, todos os demais incluídos tinham tamanhos amostrais reduzidos, o que compromete a precisão estatística dos resultados. Essas restrições metodológicas apontam para a necessidade de estudos mais amplos para validar a eficácia e segurança dessas terapias. 

Além disso, outra questão é o uso de psilocibina e cetamina por indivíduos com predisposição ou condições pré-existentes. Um estudo publicado no American Journal of Psychiatry descreve um caso de mania prolongada, psicose e depressão severa após o uso de psilocibina, ressaltando as implicações do aumento da disponibilidade de drogas psicodélicas. Em relação à cetamina, um relato no Journal of Clinical Psychopharmacology discute um episódio de psicose induzida pela substância em um paciente com histórico de abuso de múltiplas drogas.

Na prática, a teoria é outra

Não é difícil encontrar, apesar da falta de regulamentação em relação às injeções intravenosas de cetamina para casos de saúde mental, profissionais que, assim como o médico de Sílvia, fazem o tratamento – e ficam expostos à insegurança jurídica em torno do tema. No Brasil, profissionais e clínicas, explica Figueiredo, tentam atuar de formas cautelosas para evitar implicações legais. “Um psicólogo ou psiquiatra pode, por exemplo, apenas atender um paciente que chegou sob efeito no seu consultório, mas não está ministrando substância, ele está só ouvindo e registrando”.​ Diversas clínicas apresentam serviços de infusões, e, em algumas delas, é informado que é necessário apenas um pedido médico e um eletrocardiograma para fazer as sessões, que, em São Paulo, podem custar até R$ 2 mil. 

Na internet, profissionais se apresentam como especialistas em terapias psicodélicas – oferecendo sessões e outros tipos de tratamentos para pessoas com depressão, ansiedade e outros transtornos mentais. No entanto, atualmente, não existe no Brasil um curso certificado por órgãos reguladores como o Conselho Federal de Medicina (CFM) ou o Conselho Federal de Psicologia (CFP) que habilite formalmente profissionais para aplicar terapias psicodélicas. Iniciativas privadas oferecem formação em psicoterapia assistida por psicodélicos, mas ainda operam em uma zona cinzenta, já que não têm reconhecimento formal pelos conselhos profissionais​. Apenas no ano passado, o CFP criou um grupo de trabalho sobre o tema, sinalizando possíveis atualizações nesse front.

Além dos serviços, são várias as lojas virtuais que vendem, por exemplo, cogumelos mágicos, fungos que contêm compostos psicodélicos, principalmente psilocibina e psilocina, responsáveis por provocar alterações na percepção, no humor e na cognição, com a comodidade entrega em casa. Embora a maioria desses marketplaces não relacionem os seus produtos ao uso terapêutico, focando na possibilidade de utilização recreativa, pelo menos três deles, segundo levantamento do JOTA, associam os produtos a tratamentos psicoterapêuticos. Alguns os recomendam para “psicoterapia assistida” e oferecem suporte para uso via WhatsApp. Outros vendem “protocolos” – ebooks contendo instruções de uso de cogumelos para diversos fins, como tratamento para dependência química. Em um deles, um “curso completo de protocolos para terapeutas” sai por cerca de R$ 1,5 mil. 

Em resposta ao JOTA, a Anvisa afirmou que “avalia casos concretos, assim a submissão de um pedido de registro com qualquer substância vai avaliar os dados e estudos clínicos que dão suporte ao pedido” e que “não regula” o oferecimento de produtos feito por lojas virtuais. 

Do consultório à regulação

O tratamento de Silvia, realizado por cerca de um ano, não foi custeado pelo plano de saúde. Também não houve nenhum outro tipo de apoio. “É um tratamento caro. A decisão de parar foi financeira e clínica: eu já estava estável e quis testar minha evolução sem a cetamina”, diz. “Não compartilhei nada disso com a minha família, principalmente por medo da retaliação. Quando eventualmente falei, houve preconceito, principalmente pela parte da minha mãe, de não entender, de achar perigoso, de desconhecimento mesmo e ignorância sobre o processo”.

Para o advogado Emílio Figueiredo, o estigma é mais determinante para a situação atual do que uma barreira jurídica formal. Ainda que o ordenamento não proíba explicitamente o debate sobre uso terapêutico, a associação dessas substâncias psicodélicas ao uso recreativo impede uma análise mais técnica e baseada em evidências, quando falamos de saúde. “É muito difícil debater isso no Brasil”, diz. Além disso, há fragmentação regulatória em relação aos ativos psicodélicos que faz com que pesquisadores, empresas e investidores interessados no “renascimento psicodélico” enfrentem insegurança jurídica e entraves adicionais à inovação. 

Por exemplo: enquanto a escetanima tem registro sanitário no Brasil em medicamentos como o Spravato, a infusão de cetamina pode ser prescrita por médicos com base em autonomia profissional e evidência científica, como aconteceu com Silvia; por outro lado, não há respaldo regulatório específico para esse uso.

Já a psilocibina, o composto ativo de certos cogumelos, é considerado entorpecente e seu uso recreativo é ilegal. No entanto, embora esse princípio ativo esteja listado como substância controlada, conforme a Lista F2 da Portaria SVS/MS nº 344/1998 da Anvisa, o cogumelo em si não aparece nominalmente no documento, o que é utilizado como argumento por alguns dos vendedores online para respaldar seu negócio. 

Já outra substância, a ayahuasca, tem seu uso religioso autorizado desde 2010 pelo Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas (Conad), exclusivamente para rituais e contextos religiosos. Outra substância, a ibogaína, também não aparece como proibida na Portaria 344/1998. Embora não regulamentada, é frequentemente aplicada por clínicas privadas em tratamentos para dependência química. Já o MDMA tem sido objeto de estudos para tratamento de transtorno pós-traumático fora do país, mas é uma substância proscrita no Brasil, proibida para qualquer finalidade fora da pesquisa científica autorizada. 

Kafka manda lembranças

Se as práticas sem padrões de segurança e eficácia se proliferam rapidamente na internet, a situação é mais vagarosa para instituições de pesquisa e empresas de saúde e biotecnologia que querem trabalhar com medicina psicodélica. Por lidarem com substâncias com certo nível de controle, projetos envolvendo medicina psicodélica necessitam da Autorização Especial de Pesquisa (AEP) da Anvisa, permitindo que instituições possam conduzir estudos com esses ativos.

Para obtê-la, as instituições devem apresentar um projeto de pesquisa detalhado, aprovação de comitê de ética (CEP/Conep), plano de armazenamento e controle da substância, além de comprovar infraestrutura adequada e rastreabilidade do insumo. A AEP não é o registro de um medicamento, mas é pré-requisito para estudos clínicos. Uma vez que uma instituição entra com o pedido de AEP, não há previsão fixada por lei para resposta. 

Após o AEP, o pedido de registro do medicamento só pode ser feito após a conclusão bem-sucedida dos estudos clínicos, que têm três fases, e devem comprovar a segurança, eficácia e qualidade do medicamento. Só então há a submissão à Anvisa do pedido formal de registro sanitário, com base no chamado Dossiê de Desenvolvimento Clínico de Medicamento (DDCM) completo. Esse dossiê inclui resultados de estudos clínicos (em humanos), estudos pré-clínicos (em laboratório e animais), informações sobre fabricação, controle de qualidade e armazenamento. 

Assine gratuitamente a newsletter Últimas Notícias e receba as principais notícias jurídicas e políticas do dia no seu email

A Anvisa analisa se os dados apresentados seguem os padrões internacionais de Boas Práticas Clínicas e se o perfil benefício-risco do medicamento é favorável. Durante a análise, a agência pode emitir exigências técnicas complementares antes de aprovar o registro. Após a aprovação, a autorização é publicada no Diário Oficial da União, e o produto pode ser comercializado no Brasil conforme as indicações aprovadas. Para substâncias psicodélicas que estão em listas de controle especial (como psilocibina ou MDMA), há requisitos adicionais, como autorização prévia para estudos clínicos e transporte, e observância da Portaria 344/98. Em resposta ao JOTA, a Anvisa afirmou que “não foi identificado nenhum pedido de autorização de pesquisa clínica envolvendo substâncias psicodélicas até o momento”. 

O Instituto Phaneros, fundado em 2011 pelo neurocientista Eduardo Schenberg e focado em pesquisa e ensino sobre psicoterapia assistida com psicodélicos, tenta desde 2022 obter autorização da Anvisa para realizar um estudo clínico com psilocibina. O estudo obteve a aprovação ética dos comitês CEP e Conep e firmou parcerias com instituições hospitalares como o Hospital Santa Mônica (SP) e o Hospital Psiquiátrico São Pedro (RS). O objetivo é investigar os efeitos da psilocibina em pacientes com depressão resistente, sob supervisão clínica, e prevê sessões com uso da substância em ambiente hospitalar, com acompanhamento de psiquiatras, psicólogos e equipe multidisciplinar. A quantidade da substância requerida é menos de 1 quilograma, suficiente para um número limitado de voluntários, e com controle de armazenamento e descarte, conforme descrito nos autos do processo 1077800-38.2022.4.01.3400, que corre na 13ª Vara Federal da Justiça Federal do Distrito Federal. 

Em 2022, o Instituto iniciou tratativas com a Anvisa para obtenção de uma Autorização Especial (AE),uma licença para quem quer pesquisar com fins comerciais, conforme orientação inicial da própria agência. No entanto, após meses de tramitação, a Anvisa passou a alegar que o tipo correto de autorização seria a Autorização Especial para Pesquisa (AEP). O Phaneros então protocolou novo pedido de AEP, que também foi indeferido sob o argumento de que os requisitos não estavam preenchidos. Esse impasse regulatório levou o Instituto a ajuizar ação contra a Anvisa.

Em abril de 2024, a 13ª Vara Federal Cível da SJDF proferiu sentença favorável ao Phaneros, reconhecendo que houve contradição administrativa e determinando que a Anvisa analisasse o mérito do pedido de AEP com base na finalidade científica da proposta. A decisão ainda exigia que a agência se abstivesse de indeferir o pleito com base no tipo de autorização. Contudo, segundo Beatriz Kestener, advogada que representa o Insituto no processo, a Anvisa não cumpriu integralmente a sentença, mantendo exigências desproporcionais, como exigência de certificações comerciais e contratos prévios à aprovação da pesquisa.

“É uma inversão da lógica regulatória. Exigem documentos que só fazem sentido em contextos de importação comercial, não de pesquisa científica”, afirma Beatriz. Para Eduardo Schenberg, o caso se encaixa em um contexto maior de dificuldades de financiamento e fomento à ciência, mas com particularidades. “Estamos alinhados às melhores práticas clínicas, com base nos estudos de fase 2 e 3 realizados nos EUA e na Europa. Mas aqui enfrentamos uma mistura de estigma e burocracia”. A ação judicial segue em fase de cumprimento de sentença, mas o projeto clínico permanece paralisado, à espera de posicionamento definitivo da Anvisa.

Em resposta ao JOTA, a Anvisa afirmou que “somente pesquisas clínicas para fins de registro de medicamentos estão sujeitas à análise e autorização da Anvisa, portanto, as pesquisas clínicas acadêmicas e outros fins não regulatórios não são submetidos para análise” da agência. Sobre o processo de autorização para pesquisas clínicas, a agência disse que “informações ou evidências ou provas adicionais podem ser necessárias a depender das características de cada substância, especialmente no que se refere ao seu perfil de segurança”. “A Anvisa é uma agência reguladora e como tal atua na definição de parâmetros técnicos para a avaliação de eficácia e segurança dos medicamentos. O fomento à pesquisa é atribuição de outras instâncias”, disse por e-mail.

Como atrair investidores?

Empresas também têm interesse em trabalhar com substâncias psicodélicas. A Scirama, uma startup de biotecnologia focada em psicodélicos, tem como objetivo apresentar cápsulas de psilocibina e sprays nasais de DMT (a substância presente na ayahuasca) para a Anvisa. Fundada em 2020, a empresa desenvolve seus projetos com base em parcerias com instituições como UFRJ, Unicamp, PUC-Rio e o IDOR (Instituto D’Or), utilizando mecanismos da Lei de Inovação Tecnológica. 

“Para cápsulas de psilocibina, prevemos entrar e finalizar na fase 1 dos estudos clínicos em dois anos”, diz Clarice Pires, uma das fundadoras de Scirama. O projeto, desenvolvido em parceria com a UFRJ, foi submetido e aprovado por uma unidade da Embrapii (Empresa Brasileira de Pesquisa e Inovação Industrial), que financiou metade do custo da pesquisa — a outra metade será captada com investidores privados. A Scirama já conseguiu atrair investidores relevantes, como um family office da família Villela Marino (ligada ao Itaú), que aportou capital desde o início da startup. Posteriormente, a empresa também captou recursos de investidores internacionais, por meio de uma parceria com uma farmacêutica canadense. 

Ainda assim, Pires diz  que os entraves regulatórios e a ausência de uma política clara para o setor tornam o financiamento um “exercício de ginástica”. Segundo ela, além das dificuldades típicas de startups de biotecnologia, como a necessidade de convencer investidores a aguardar retornos de longo prazo (geralmente de 5 a 6 anos), há o agravante de trabalhar com substâncias proibidas ou altamente reguladas. “Você está dizendo que, para entrar no mercado com qualquer projeto que você está desenvolvendo, vai precisar viver um DDCM, o Dossiê de Desenvolvimento Clínico de Medicamento para a Anvisa. Eu não enxergo hoje no mercado brasileiro muitas empresas com esse fôlego para viver essas etapas”, diz. 

Um caminho para dar mais chances para companhias brasileiras na onda da medicina psicodélica seria a criação de vias regulatórias facilitadas, dada a natureza e o risco diferenciado dessas moléculas em comparação a outras substâncias controladas. “Não se trata de liberalização sem critério, mas de regulamentar o que já existe na prática social, com rigor técnico”, diz Pires, e cita como exemplo a Resolução RDC 327/2019 da Anvisa, que criou um modelo específico para produtos à base de cannabis medicinal, dispensando o registro sanitário com uma autorização simplificada. A resolução conta, por exemplo, com previsão de processo de análise para concessão da autorização sanitária mais rápido e menos burocrático do que o registro de medicamentos tradicionais, além de receitas médicas especiais para pacientes, evitando a judicialização ou a importação individual. 

Primeiros passos no Judiciário

A ausência de um marco regulatório claro para substâncias psicodélicas em terapias no Brasil força pacientes, médicos e pesquisadores a operarem em uma zona de insegurança jurídica, o que frequentemente leva à judicialização – o que repete o padrão visto na regulação de canabidiol em terapias diversas. Assim como ocorreu com a cannabis medicinal, as decisões favoráveis em primeira e segunda instâncias vêm pavimentando o caminho para futuros normativos mais abrangentes. Para Emílio Figueiredo, a via judicial continuará sendo usada enquanto o Estado não se posicionar. “O Judiciário está servindo como ponte entre a realidade clínica e a lentidão institucional”, diz. “Os psicodélicos estão hoje como a cannabis estava em 2013. A coisa está acontecendo e em breve devemos ter casos demonstrando claramente de alívio da dor e do sofrimento através do uso dessas substâncias, como foi com a cannabis enquanto uma ferramenta terapêutica”. 

Inscreva-se no canal de notícias do JOTA no WhatsApp e fique por dentro das principais discussões do país!  

A jurisprudência brasileira sobre o uso terapêutico de psicodélicos gira em torno principalmente da cetamina e da escetamina. Segundo levantamento do JOTA que analisou 19 decisões proferidas a partir de 2024 (veja lista completa ao final), há tendência de acolhimento das demandas por parte de pacientes com depressão resistente, seja para fornecimento pelo SUS ou por planos de saúde. 

A análise das decisões revela um padrão de argumentos acolhidos pelo Judiciário, como a prescrição médica fundamentada como elemento central e a urgência e risco de suicídio em pacientes com depressão grave, além do reconhecimento da eficácia terapêutica com base em evidência científica e recomendações do FDA. No levantamento do JOTA, foram identificadas decisões que obrigavam operadoras de planos de saúde a custear sessões de cetamina e escetamina, além de outras que determinavam que estados e municípios deveriam fornecer os tratamentos. 

Isso não se repete para todas as substâncias com propriedades psicodélicas. Quanto à ibogaína, por exemplo, a jurisprudência segue restritiva. Em acórdãos como o da Apelação 1049692-20.2022.8.26.0053, o Tribunal de Justiça de São Paulo reafirmou a vedação à manipulação e uso terapêutico da substância. Os fundamentos incluem a ausência de registro sanitário, a inexistência de comprovação científica, o risco de morte e o desrespeito a normas da vigilância sanitária.

As decisões judiciais no Brasil também seguem o caminho trilhado por experiências internacionais, nas quais o Judiciário foi chamado a garantir o direito de pacientes a tratamentos ainda não amplamente disponíveis no sistema de saúde. Essa judicialização do acesso, embora criticada por gerar desigualdades e sobrecarga, tem sido um vetor de inovação regulatória .

​Nos Estados Unidos, a FDA concedeu à psilocibina o status de “Breakthrough Therapy” para depressão resistente ao tratamento em 2019. Já o MDMA recebeu essa designação para o tratamento do transtorno de estresse pós-traumático (TEPT) em 2017. No entanto, em agosto de 2024, a FDA negou a aprovação de um tratamento baseado em MDMA para TEPT, desenvolvido pela Lykos Therapeutics. A agência solicitou a realização de um estudo adicional de Fase 3 para avaliar melhor a eficácia e segurança do tratamento.

No estado norte-americano do Oregon, a legislação estadual permite o uso controlado de psilocibina para fins terapêuticos, mesmo fora de ambientes hospitalares. A Austrália, por sua vez, já autorizou o uso de MDMA e psilocibina sob prescrição médica para transtornos psiquiátricos graves desde julho de 2023.

Para Emílio Figueiredo, o Brasil precisa construir um modelo próprio de regulamentação, que vá além da mera importação de normas estrangeiras. “Temos uma tradição de uso ritualístico e religioso que precisa ser levada em conta. A regulamentação não pode ignorar os saberes tradicionais nem a liberdade cognitiva dos indivíduos. É preciso incluir as pessoas nesse debate”, defende.

O Ministério da Saúde foi procurado pela reportagem, e prometeu responder às questões propostas por essa matéria até o deadline de publicação. No entanto, não retornou aos contatos subsequentes feitos pelo JOTA. O espaço segue aberto. 

Os casos na Justiça

  1. Processo: 1062222-75.2023.8.26.0100
    Tribunal: Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJSP)
  2. Processo: 2124950-13.2024.8.26.0000
    Tribunal: TJSP
  3. Processo: 3002571-53.2024.8.26.0000
    Tribunal: TJSP
  4. Processo: 2058740-77.2024.8.26.0000
    Tribunal: TJSP
  5. Processo: 1057425-56.2023.8.26.0100
    Tribunal: TJSP
  6. Processo: 1009860-67.2021.8.26.0100
    Tribunal: TJSP
  7. Processo: 2397073-25.2024.8.26.0000
    Tribunal: TJSP
  8. Processo: 1000410-67.2024.8.26.0368
    Tribunal: TJSP
  9. Processo: 1001521-19.2024.8.26.0358
    Tribunal: TJSP
  10. Processo: 1057561-11.2023.8.26.0114
    Tribunal: TJSP
  11. Processo: 2383384-11.2024.8.26.0000
    Tribunal: TJSP
  12. Processo: 1019979-92.2023.8.26.0011
    Tribunal: TJSP
  13. Processo: 1017850-07.2024.8.26.0003
    Tribunal: TJSP
  14. Processo: 1004560-21.2024.8.26.0068
    Tribunal: TJSP
  15. Processo: 1001777-58.2015.8.26.0428
    Tribunal: TJSP 
  16. Processo: 2246466-05.2021.8.26.0000
    Tribunal: TJSP​
  17. Processo: 1049692-20.2022.8.26.0053
    Tribunal: TJSP​
  18. Processo: 1012289-13.2023.8.26.0625
    Tribunal: TJSP​