Parece que a pandemia da Covid-19 e o colapso das cadeias globais não foram suficientes para que as empresas aprendessem sobre a necessidade de conciliar eficiência com outros propósitos, tais como adaptabilidade e resiliência. O recente episódio da CrowdStrike é mais um exemplo dessa dificuldade, pois revelou que a falha de atualização de apenas um software – que atingiu menos de 1% de todos os computadores e servidores que usam o Windows – foi suficiente para causar um verdadeiro caos no planeta, especialmente em aeroportos, hospitais e instituições financeiras, com prejuízos na casa dos bilhões de dólares.
Como bem explica Claudio Garcia, em recente artigo publicado no jornal Valor Econômico, “adaptabilidade e eficiência andam em direções opostas na grande maioria das decisões empresariais, mas não de maneira proporcional”. Afinal, quanto mais enxutas e eficientes são as organizações, mais são incapazes de responder a situações inesperadas ou de anormalidade. Daí a sua conclusão de que “eficiência se tornou onipresente no ambiente empresarial, e pouco consideramos suas implicações e, ainda menos, distorções que causa”.
Acontece que essa cultura empresarial tem raízes muito bem estabelecidas na teoria econômica predominante, apresentando repercussões que vão muito além da gestão e envolvem a própria compreensão de como a economia funciona ou deveria funcionar. Por todos esses aspectos, é preciso repensar o papel da eficiência na economia como um todo, tal como defendeu o Prêmio Nobel de Economia Angus Deaton em recente trabalho.
Com efeito, em seu instigante ensaio – Rethinking my Economics –, o autor propõe uma crítica à teoria econômica tradicional que, apesar de todos os seus progressos, não foi capaz de prever a crise financeira e, o que é pior, pode até ter contribuído para ela. Tudo isso ocorreu em razão da crença excessiva na eficiência dos mercados, mesmo quando as estruturas e implicações dos mercados financeiros são mais complexas do que o nosso entendimento.
É nesse contexto que Deaton confessa que, após mais de meio século de atuação como economista, a exemplo de diversos de seus colegas, recentemente mudou o seu pensamento sobre vários dos pilares da teoria econômica tradicional, destacando as seguintes propostas:
Introdução do poder na reflexão econômica = A ênfase excessiva nas virtudes dos mercados livres e competitivos pode nos desviar da importância do poder na fixação de preços e salários, na escolha da direção das mudanças tecnológicas e na influência da política a fim de mudar as regras do jogo em favor dos mais poderosos. Consequentemente, sem a análise do poder, não temos como entender nem a desigualdade nem muito do que se passa no capitalismo moderno.
Valorização do bem-estar humano a partir do resgate da reflexão baseada na filosofia e da ética = É preciso reverter o processo pelo qual os economistas pararam de pensar sobre a ética e o bem-estar humano em sentido mais abrangente, tornando-se tecnocratas que apenas focam na eficiência, com pouco treinamento sobre os fins da teoria econômica, o significado amplo de bem-estar ou o que os filósofos entendem por igualdade. O recurso ao utilitarismo, normalmente confundindo bem-estar com dinheiro ou consumo, negligencia muito do que realmente importa para as pessoas, assim como pensar apenas no indivíduo também eclipsa as relações entre as pessoas em famílias ou comunidades.
Readequação do papel da eficiência = Por mais que eficiência seja importante, acaba sendo ultravalorizada pelos economistas em detrimento de outras finalidades, que são deixadas com políticos e administradores. Mesmo quando estas não se materializam, ainda assim a eficiência tende a prevalecer sobre juízos redistributivos, tornando a justiça social subserviente ao mercado. Para Deaton, há que se lembrar de Keynes, ao defender que o problema da economia é reconciliar eficiência econômica, justiça social e liberdade individual.
Reconhecimento das limitações dos métodos empíricos e abertura para a multidisciplinaridade = A revolução da econometria foi uma reação compreensível diante das tentativas de identificar mecanismos causais por asserções. Porém, há que se reconhecer que historiadores, que entendem sobre contingências e sobre causalidades múltiplas e multidirecionais, normalmente fazem um melhor trabalho do que economistas ao identificarem importantes questões que são plausíveis, interessantes e que merecem ser pensadas, mesmo quando não se encaixam aos standards inferenciais da economia contemporânea aplicada.
Maior humildade = Economistas normalmente acreditam que estão certos e, por mais que tenham boas ferramentas para respostas mais bem definidas (clear-cut), estas obviamente exigem premissas que não são válidas em todas as circunstâncias. Assim, é bom reconhecer que sempre há outras explicações possíveis e aprender como escolher entre elas.
Após estabelecer essas propostas, Deaton explora alguns de seus desdobramentos, tal como a importância dos sindicatos, o que implica uma mudança do seu entendimento anterior diante da constatação de que, na atualidade, as corporações têm muito poder. Logo, na medida em que podem trazer aumentos de salários para membros e não membros, os sindicatos devem ser considerados importante parte do capital social em muitos lugares, trazendo poder político para as classes trabalhadoras não somente no local de trabalho, mas também perante os governos.
Nesse sentido, Deaton passa a reconhecer que o declínio dos sindicatos está associado ao decréscimo dos salários, à perda da importância proporcional dos salários na renda total, ao aumento crescente da diferença de pagamento entre executivos e trabalhadores, à destruição de comunidades e ao aumento do populismo.
Outro assunto importante explorado por Deaton diz respeito à tecnologia, assunto em relação ao qual ressalta o trabalho de Acemoglu e Johnson, na parte em que demonstraram que a direção da mudança tecnológica depende de quem tem o poder de decidir, razão pela qual os sindicatos precisam estar na mesa para as decisões sobre inteligência artificial.
O autor também assume ser agora mais cético tanto sobre os benefícios do livre comércio para os trabalhadores americanos como sobre a tese de que a globalização foi responsável pela vasta redução da pobreza global nos últimos 30 anos. Também deixa claro que não defende mais a ideia de que os danos trazidos aos trabalhadores americanos pela globalização seria um preço razoável a pagar pela redução da pobreza global, pois acredita que a redução da pobreza tem pouco a ver com o comércio mundial e que os trabalhadores nacionais precisam de proteções diferenciadas.
A conclusão final do seu ensaio é um convite à multidisciplinaridade, oportunidade em que Deaton afirma que os economistas poderiam se beneficiar grandemente com ideias de filósofos, historiadores e sociológos, tal como Adam Smith fez um dia, assim como esses outros cientistas aprenderiam com os economistas.
Em suma, o ensaio de Deaton mostra que colocar a eficiência no seu devido lugar é um problema que vai muito além da busca de novas balizas para a gestão empresarial, de que são exemplos a adaptabilidade e a resiliência, tal como se extrai do caso Crowdstrike. Trata-se de incorporar uma nova visão de economia e de reestruturar a própria teoria econômica, reintroduzindo no seu escopo preocupações com a ética, a multidisciplinaridade, o poder, o bem-estar efetivo das pessoas, as liberdades individuais, a justiça social e as questões distributivas.