Colapso da mina 18 em Maceió: um desastre histórico em tempo real

  • Categoria do post:JOTA

Neste início de dezembro de 2023, as mídias nacionais foram tomadas por notícias alarmantes sobre os bairros do Pinheiro, Mutange, Bebedouro e Bom Parto, localizados na cidade de Maceió, em Alagoas. A possibilidade iminente de abertura de cratera por decorrência do colapso da mina 18, resultado da extensa atuação da mineradora Braskem na capital alagoana nos últimos 40 anos, tinha data e horário marcado para acontecer.

Dado os alertas de riscos, os moradores das áreas próximas à mina 18, especialmente do bairro do Mutange, foram removidos de suas residências sob autorização da Justiça Federal no Estado de Alagoas: imóveis foram evacuados e famílias foram enviadas a seis escolas municipais[1]. Medidas similares foram adotadas na região do Bom Parto[2], inserida no Mapa de Linhas e Ações Prioritárias versão 5 da Defesa Civil em Maceió e no programa de realocação da Braskem em 30 de novembro[3], dia do anúncio oficial do colapso iminente da mina 18. As comunidades do Flexal de Baixo e Flexal de Cima, imensamente agredidas socioeconomicamente pelo desastre, também tiveram de deixar suas residências para trás.

Danos coletivos, individuais e sistemáticos decorrentes do desastre não são novidade em Maceió. Apesar de todo contexto midiático apresentar notas alarmantes, a capital vem sofrendo os efeitos da mineração predatória há pelo menos dez anos, como relatado em nota publicada no site da Universidade Federal de Alagoas[4]. Assim, o episódio em Maceió é considerado um desastre em curso que desafia a lógica linear do tempo, rompendo com a ideia tradicional de começo, meio e fim: já aconteceu, ainda acontece no presente e não há previsão para um desfecho, uma vez que continuará a impactar a comunidade local enquanto os efeitos da tragédia forem perceptíveis.

Para isso, cabe à comunidade científica resgatar alguns pontos cruciais da história da cidade. O resgate auxilia a compreensão da forma com que o desastre se desenhou e se desenha atualmente, vez que o momento presente envolve riscos alertados no passado e a constante necessidade do estabelecimento de medidas preventivas ao desastre.

A Salgema, empresa que posteriormente se tornaria Braskem S/A, começou a operar em território alagoano em 1976, no Pontal da Barra[5]. De acordo com estudos técnicos desenvolvidos na região, o desastre consiste em uma consequência de atividades de mineração de sal-gema (minério utilizado na produção de soda cáustica, PVC, cloro e outros produtos) pela petroquímica. São 35 poços de extração dentro de área urbana, próximos à lagoa Mundaú[6].

A lagoa Mundaú, além de ser um dos pontos mais marcantes de memória e história local, essencial para a formação e desenvolvimento da cidade e da identidade maceioense, é fonte de renda para pescadores e marisqueiras, dependentes do sururu de capote[7], molusco de água doce extremamente popular em Alagoas, que hoje está ameaçado de extinção devido à salinização da lagoa[8], também em decorrência do desastre.

O fato crítico que explicitou os problemas envolvendo a atividade minerária e que suscitou investigações que concluíram pelo nexo entre mineração e desastre ocorreu em 2018. Em fevereiro, após fortes chuvas, imóveis e ruas do bairro Pinheiro sofreram com o aparecimento de rachaduras. Em março do mesmo ano, constatou-se a ocorrência de tremor de 2,5 na Escala Richter. Em dezembro, a Prefeitura de Maceió decretou situação de emergência na região[9]. As remoções se intensificaram durante a pandemia da Covid-19, transformando um dos bairros mais conhecidos da capital num “bairro fantasma”.

Hoje, estima-se que 60 mil pessoas tenham sido removidas das suas regiões de convívio, afeto e memória. Relatórios como o da Comissão de Direitos Humanos da OAB de Alagoas[10] evidenciam as falhas nesse processo, que vão desde os valores insuficientes das indenizações já pagas à localização inadequada das casas para as quais as pessoas estão sendo reassentadas.

Soma-se a afetação de diversas políticas públicas locais que implicam violações de direitos fundamentais da população. Exemplifica-se dando destaque aos efeitos do desastre, desde 2018, na educação de Maceió. Notícia de dezembro de 2022[11] trabalha dados que relatam os impactos do desastre na educação da capital e a percepção das afetadas, crianças e professoras, diante da compulsoriedade dos encaminhamentos tomados. O panorama se desenhava da seguinte forma: 18 escolas (13 estaduais e 5 municipais) tinham sido afetadas pela instabilidade do solo, o que impactou a vida de 7.000 estudantes, dentre realocações, ensino à distância e prédios mantidos em observação pela Defesa Civil. Como pode-se observar, as realocações atuais englobaram abrigamentos em escolas, o que certamente tem afetado a rotina das comunidades escolares.

Esses impactos não deixaram de existir, pelo contrário, são agudizados e revividos pela população local. Tal contexto implica processos complexos de vulnerabilização e deflagram sentimentos coletivos e pessoais de angústia e impactos psicológicos profundos pelos riscos imediatos e iminentes.

A partir da leitura da Ação Civil Pública conhecida como ACP dos moradores[12], é possível perceber que as indenizações não contaram com assessoria técnica que partisse de um processo decisório em conjunto com os atingidos. Em Maceió, a mineradora causou o dano, definiu quem seriam as vítimas do desastre aptas a serem indenizadas e qual valor iriam receber, cabendo às vítimas apenas aceitar ou não o valor proposto.

A independência das assessorias técnicas[13] contratadas é ponto crucial para auxiliar a reparação e mitigação dos efeitos do desastre. Não há sinalização de assistência técnica aos atingidos antes dos delineamentos do próprio acordo, de forma a assegurar meios técnicos e jurídicos para que as vítimas tivessem participação ativa nas tratativas[14].

Conscientes sobre o papel do sistema de justiça na gestão de riscos de desastres e das dificuldades enfrentadas nesses cenários, o Grupo Acesso à Justiça, Desastres e Mudanças Climáticas, da FGV Direito SP, confeccionou o Protocolo Acesso à Justiça e Desastres, com o objetivo de auxiliar os órgãos públicos no enfrentamento de desastres.

Um dos principais propósitos do protocolo é colaborar na construção de pontes entre os atingidos e o sistema de justiça, em seu mais amplo sentido. É necessário que, no contexto atual do país, os caminhos da justiça estejam atentos às demandas das populações vulnerabilizadas por desastres, e que essas não mais sejam sujeitas a decisões unilaterais, como os acordos de adesão que ocorreram em Maceió.

A Recomendação 35 do Protocolo concentra-se em cinco pontos principais para o estabelecimento de mecanismos de incidência e participação das pessoas atingidas nas negociações, acordos e demais processos reparatórios: 35.1) criar formas de diálogo e escuta com a população atingida; 35.2) assegurar acesso à informação confiável e de qualidade; 35.3) promover acesso à justiça; 35.4) garantir o protagonismo das pessoas atingidas na tomada de decisão; 35.5) direito à consulta prévia, livre e informada[15].

Nesse contexto, observar as medidas mais recentes que estão sendo adotadas em resposta à iminência de afundamento – remoção forçada e previsão de inclusão das famílias removidas no Programa de Compensação Financeira e Apoio à Realocação da Braskem, por exemplo[16] – é testemunhar a processualidade deste desastre. Medidas de prevenção, mitigação e compensação são necessárias de forma concomitante e não linear, pois o desastre não segue uma linearidade na qual primeiro se tenta prevenir, depois se corre para responder e mitigar os danos, e por fim se repara. Assim como em 2018, é necessário prevenir, mitigar e reparar, tudo ao mesmo tempo.

Reconhecer essa repetição reforça a necessidade de levar em conta os aspectos psicológicos deste desastre que é vivido desde 2018. Para além do fornecimento de apoio psicológico como medida de reparação e mitigação, é necessário considerar as condições psicológicas que a população tem para, em um momento tão crítico, firmar acordos nos quais abrem mão de direitos e danos que sequer são completamente compreendidos. Esse cuidado não implica em deixar de indenizar danos que já sejam evidentes – o que deve ser feito com urgência –, mas é relevante para delimitar a extensão das cláusulas de quitação que podem ser assinadas, por exemplo.

No mesmo sentido, a participação das pessoas atingidas, não apenas como uma formalidade em audiências públicas, mas de forma efetiva na tomada de decisão sobre quais ações são prioritárias, em medidas como o diagnóstico dos danos socioeconômicos causados pelo desastre e no monitoramento das ações de reparação, é premissa para garantir uma reparação integral. Contudo, a participação efetiva demanda uma abordagem que leve em consideração o sofrimento social e os traumas pelos quais a população atingida passa, especialmente em momentos críticos como os de novembro e dezembro de 2023.

Por fim, constatada a repetição de eventos e medidas, impõe-se também questionar: até quando as mesmas falhas, identificadas e questionadas pela sociedade civil, serão repetidas?

Autoras:

Danielle Zoega Rosim, Danieli Rocha Chiuzuli, Larissa Cerqueira de Oliveira, Luísa Martins de Arruda Câmara, Maria Cecília de Araujo Asperti e Nayra Beatriz Souza de Miranda – Integrantes do Grupo de Estudos Acesso à Justiça, Desastres e Mudanças Climáticas do Núcleo de Acesso à Justiça, Processo e Meios de Solução de Conflitos da FGV Direito SP

[1] Sobre a questão das escolas em Maceió, situação crítica que já estende há anos na região, indicamos as recomendações 1, 26, 27 e 28 sobre educação e abrigamento provisórios em escola do Protocolo de Acesso à Justiça do Grupo de Estudos Acesso à Justiça, Desastres e Mudanças Climáticas da FGV Direito SP. Disponível em: https://repositorio.fgv.br/items/616abe6c-b517-41de-be38-3023be78e7ad.

[2] Portal G1. ‘A gente não sabe o que fazer’, diz morador após justiça liberar polícia para esvaziar bairro vizinho que pode afundar em Maceió. Disponível em: https://g1.globo.com/al/alagoas/noticia/2023/12/01/a-gente-nao-sabe-o-que-vai-fazer-dizem-moradores-obrigados-a-sair-as-pressas-do-bom-parto-em-maceio.ghtml. Acesso: 6 dez. 2023.

[3] Prefeitura de Maceió. Prefeitura de Maceió atualiza mapa de risco e Justiça Federal inclui Bom Parto em realocação. Disponível em: https://maceio.al.gov.br/noticias/defesacivil/prefeitura-de-maceio-atualiza-mapa-de-risco-e-justica-federal-inclui-bom-parto-em-realocacao. Acesso: 6 dez. 2023.

[4] Universidade Federal de Alagoas. Pesquisas de alerta para riscos de afundamento aumentaram nos últimos anos. Disponível em: https://ufal.br/servidor/noticias/2023/11/pesquisadores-da-ufal-alertavam-para-riscos-de-afundamento-em-maceio-desde-2010. Acesso: 6 dez. 2023.

[5] Braskem. Linha do tempo. Disponível em: https://www.braskem.com.br/linha-do-tempo-alagoas. Acesso em: 6 dez. 2023.

[6] MAPA DE CONFLITOS. Conflito de extrema complexidade entre população de Maceió e mina de Sal-gema da Braskem envolve danos irreparáveis, nov. 2020. Disponível em: https://mapadeconflitos.ensp.fiocruz.br/conflito/conflito-de-extrema-complexidade-entre-populacao-de-maceio-e-mina-de-sal-gema-da-braskem-envolve-danos-irreparaveis/. Acesso em: 6 dez. 2023.

[7]Devido ao medo desse afundamento (da mina 18 da Braskem), a capitania botou uma nota impedindo de circular ali, naquela área. Mas ali a gente não circula, a gente trabalha. É diferente de interditar uma via, porque ao interditar uma via, sempre se arruma outra alternativa. E a gente não, não pode interditar onde é trabalho. Ali não é passeio, é o trabalho da gente lá”, diz Mauro”. Agência Brasil. Peixe na água e rede vazia: desastre da Braskem atinge pescadores. Tráfego na Lagoa Mundaú foi proibido por risco de desabamento. Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2023-12/peixe-na-agua-e-rede-vazia-desastre-da-braskem-atinge-pescadores. Acesso em: 6 dez. 2023.

[8] Portal G1. Sururu pode ser extinto da lagoa Mundaú após colapso em mina em Maceió, diz especialista. Disponível em: https://g1.globo.com/al/alagoas/noticia/2023/12/06/sururu-pode-ser-extinto-da-lagoa-mundau-apos-colapso-de-mina-em-maceio-diz-especialista.ghtml. Acesso em: 6 dez. 2023.

[9] A linha do tempo detalhada do caso pode ser acessada: MAPA DE CONFLITOS. Conflito de extrema complexidade entre população de Maceió e mina de Sal-gema da Braskem envolve danos irreparáveis, nov. 2020. Disponível em: https://mapadeconflitos.ensp.fiocruz.br/conflito/conflito-de-extrema-complexidade-entre-populacao-de-maceio-e-mina-de-sal-gema-da-braskem-envolve-danos-irreparaveis/.

[10] COMISSÃO DE DEFESA DE DIREITOS HUMANOS DA OAB ALAGOAS. Relatório de inspeção. Disponível em: <https://www.oab-al.org.br/app/uploads/2023/08/Relatorio-de-Inspecao-Comissao-de-Direitos-Humanos.pdf>. Acesso em: 6 dez. 2023.

[11] COSTA, G.; ALBUQUERQUE, J. “Quando alguém fala a palavra Braskem, dá vontade de chorar”: o impacto do crime da Braskem na educação de Maceió. Observatório da Mineração. Atualizado em 19 jan. 2023. Disponível em: https://observatoriodamineracao.com.br/quando-alguem-fala-a-palavra-braskem-da-vontade-de-chorar-o-impacto-do-crime-da-braskem-na-educacao-de-maceio/.

[12] Ação Civil Pública 0803836-61.2019.4.05.8000.

[13] Com relação às Assessorias Técnicas Independentes, indicamos a recomendação 32  do Protocolo de Acesso à Justiça do Grupo de Estudos Acesso à Justiça, Desastres e Mudanças Climáticas da FGV Direito SP. Disponível em: https://repositorio.fgv.br/items/616abe6c-b517-41de-be38-3023be78e7ad.

[14] Tal desequilíbrio revelou uma sistemática de acordos por adesão, em detrimento de um modelo resolutivo e participativo, na contramão de instrumentos que visam aperfeiçoar o acesso direto dos envolvidos nos danos, tais como os previstos na Resolução nº 05/2020, que trata das Diretrizes Nacionais para uma Política Pública sobre Direitos Humanos e Empresas.

[15] FGV Direito SP. Protocolo Acesso à Justiça e Desastres: recomendações elaboradas para o sistema de justiça para atuação em casos de desastres. Disponível em: https://repositorio.fgv.br/items/616abe6c-b517-41de-be38-3023be78e7ad. Acesso em: 6 dez. 2023.

[16] Decisão de 30 de novembro de 2023, PJE 0813725-97.2023.4.05.8000.