Coisa julgada em ações civis públicas

  • Categoria do post:JOTA

Muito se discute sobre os limites do exercício do poder normativo pelas agências reguladoras. Muito se fala sobre o controle judicial sobre esse exercício. Mas pouco se fala, sob o ponto de vista processual, acerca dos efeitos da coisa julgada em matéria de regulação setorial, sobretudo em sede de ações civis públicas.

São as ações civis públicas um instrumento adequado para promover a alteração de normas técnicas editadas por agências reguladoras? E, em o sendo, como compatibilizar a disciplina processual da coisa julgada com os requisitos do devido processo normativo – como a elaboração de análise de impacto regulatório e revisão periódica das normas?

Informações direto ao ponto sobre o que realmente importa: assine gratuitamente a JOTA Principal, a nova newsletter do JOTA

Citamos dois casos bastante relevantes no âmbito da regulação da Anvisa para ilustrar a discussão.

Em 2008, o Ministério Público Federal ajuizou a ação civil pública 0028713.35.2008.4.02.5101/RJ para obter a condenação da Anvisa a editar norma para tornar obrigatória a divulgação de informação, na rotulagem dos produtos de higiene pessoal, cosméticos e perfumes, sobre a sua composição, em língua portuguesa.

Até então a agência apenas exigia a veiculação dessas informações em inglês, em conformidade com o Internacional Nomenclature of Cosmetic Ingredients (INCI). A condenação da Anvisa nesse processo culminou na edição da RDC 432/2020, 12 anos depois do seu ajuizamento.

Em 2005, o MPF ajuizou a ação civil pública 0008841-22-2005.6100, para obter a condenação da Anvisa à edição de ato normativo exigindo que, na rotulagem de produtos alimentícios que contenham o corante amarelo tartrazina, conste a seguinte informação: “Este produto contém o corante amarelo TARTRAZINA, que pode causar reações de natureza alérgica, entre as quais asma brônquica, especialmente em pessoas alérgicas ao Ácido Acetil Salicílico”.

A sentença, nesse último caso, transitou em julgado em 10/11/2022 – ou seja, 17 anos depois do ajuizamento, determinando que a Anvisa editasse, no prazo de 30 dias, norma impondo a obrigatoriedade de veiculação da advertência acima indicada, com o exato texto proposto pelo MPF.

Em ambos os casos, a Anvisa foi condenada a editar atos normativos contendo regra específica de rotulagem estabelecida por decisão judicial. Por isso, também em ambos os casos, houve dificuldades na implementação da coisa julgada, que geraram discussões no âmbito dos respectivos cumprimentos de sentença.

No primeiro caso, por exemplo, a inclusão dos ingredientes em língua portuguesa junto com os mesmos dados em inglês seria inviável em algumas embalagens, por uma restrição de espaço. Em cumprimento de sentença, a Anvisa obteve autorização judicial para prever a possibilidade de inclusão de tais informações via QRcode.

No segundo caso, embora o trânsito em julgado tenha ocorrido em 2022, as partes debatem, até o momento, a viabilidade do cumprimento de sentença.

Em petição recentemente protocolizada pela Anvisa, a agência afirma que “à luz do atual estado da ciência, a manutenção literal da ordem judicial revela-se contrária à finalidade da regulação sanitária e à própria proteção ao consumidor, razão pela qual se requer a adequada modulação do cumprimento do julgado”. Afirma que “atualmente, a regulação internacional, inclusive nos Estados Unidos, bem como a brasileira, é homogênea no sentido de não considerar a tartrazina um alergênico”.

Diante disso, a Anvisa requereu o “reconhecimento da modificação superveniente do estado de fato e de direito que fundamentou a decisão transitada em julgado, com base no art. 505, I, do CPC, em razão da superação científica e normativa da causa de pedir, resultando na perda de eficácia da coisa julgada, de modo a reconhecer a plena atribuição da Anvisa para revisar a regulamentação sobre rotulagem dos principais alimentos alergênicos, conforme estabelecido em sua Agenda Regulatória 2024/2025″.

Casos como esse trazem à tona reflexões importantes sobre o cabimento de ações civis públicas para o controle de atos normativos exarados pela administração pública e a imutabilidade ou insindicabilidade de decisões judiciais exaradas em matéria regulatória.

Em se considerando o princípio constitucional da inafastabilidade do controle do Poder Judiciário, não vemos como afastar o cabimento do controle sobre esse tipo de ato administrativo. Por outro lado, é possível questionar, à luz do princípio da separação de poderes, a condenação de agências reguladoras a editar normas e replicar textos impostos pela decisão judicial – como no caso do amarelo de tartrazina.

Uma coisa é determinar que a agência edite uma norma sobre um assunto, após o devido processo normativo, análise de impacto regulatório, consultas e audiências públicas – como ocorreu, vale lembrar, no precedente do Superior Tribunal de Justiça a respeito do plantio da cannabis em território nacional – Resp 2024250/PR. Nesse caso, o Judiciário apontou uma omissão e uma direção a ser seguida pela agência, mas não predeterminou o conteúdo da norma. Outra é a predefinição do texto da norma a ser editada.

Decisões judiciais que determinam o texto do ato normativo a ser editado pela agência reguladora, a nosso ver, têm alto potencial de violação ao princípio da separação de poderes. Embora seja possível, em tese, imaginar situações de violação à lei em que poderia o Poder Judiciário determinar que a agência editasse norma para atender aos ditames legais, na vida real, via de regra, essa análise não é tão simples. Pré-determinar o conteúdo da norma regulatória por decisão judicial pode significar o descarte de alternativas viáveis que poderiam ser discutidas no bojo da análise de impacto regulatório.

Outra relevante discussão atrelada a esse tema reside na possibilidade de, após a edição da norma publicada tão somente para cumprir comando exarado pelo Poder Judiciário, a referida norma ser revista, e até mesmo revogada, em sede de Análise de Resultado Regulatório (ARR).

Seria necessária, nesse caso, uma autorização judicial específica? Ou bastaria que a agência reguladora observasse o rito comum para a edição de novos atos normativos?

Perceba-se que são muitas as discussões atreladas a ações como a ora analisada. Recomendamos aos interessados no assunto que fiquem atentos à resposta que será dada pelo Poder Judiciário ao pleito recém apresentado pela Anvisa, bem como à postura que será adotada pela agência reguladora na hipótese do seu pedido não ser acolhido.

Vale lembrar que a coisa julgada é um consectário de um princípio maior sobre o qual se sustenta o Estado Democrático de Direito: o princípio da segurança jurídica. Ocorre que uma sociedade complexa, e em constante mutação, não comporta uma concepção de segurança jurídica fundada na absoluta estabilidade ou inalterabilidade de atos estatais.

Não por outra razão, a doutrina mais moderna já não mais atrela o conceito de segurança à imutabilidade, mas à continuidade. Antônio Cabral esclarece que “a segurança jurídica atual pressupõe a continuidade jurídica, protegendo os interesses humanos de estabilidade e permanência, mas viabilizando também a alteração das posições jurídicas estáveis[1].

É justamente uma situação como a que ora se apresenta que o conceito de continuidade da coisa julgada visa salvaguardar: a possibilidade de se requerer a alteração da coisa julgada em razão de uma nova realidade que se impôs, nesse caso, fruto do desenvolvimento científico e tecnológico.


[1] CABRAL, Antonio do Passo. Coisa julgada e preclusões dinâmicas: Entre continuidade, mudança e transição de posições processuais estáveis. 2ª ed., Salvador: Juspodivm, 2014.

Disponível em: https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/3935491/mod_resource/content/0/Antonio%20do%20Passo%20Cabral%20-%20Coisa%20julgada%20e%20preclus%C3%B5es%20din%C3%A2micas%20-%20cap.%204.pdf

Acesso em 29/04/2025