Ronald Coase, em seu célebre artigo “The Problem of Social Cost” (1960), partiu de uma provocação simples: imagine um fazendeiro e um lavrador. O primeiro cria bois; o segundo cultiva trigo. Quando os bois atravessam a divisa e destroem parte da lavoura, surge a questão: quem deve arcar com o dano?
A resposta intuitiva seria responsabilizar o fazendeiro, mas Coase mostrou que a realidade é mais complexa. O dano é recíproco: se o lavrador não existisse, não haveria conflito de vizinhança; se o fazendeiro não criasse bois, tampouco haveria prejuízo interpessoal. O problema, portanto, não está em definir um “culpado”, mas em identificar como o Direito pode organizar os incentivos para que a sociedade funcione de modo socialmente eficiente, isto é, com menor custo social.
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No mundo ideal, onde não existem custos de transação, as partes negociariam: se fosse mais barato construir uma cerca do que pagar indenização, o fazendeiro cercaria. Se fosse mais barato o lavrador proteger sua plantação, ele o faria. O equilíbrio seria alcançado espontaneamente.
Mas no mundo real, especialmente em sociedades complexas, negociar custa caro. Há advogados, incerteza, tempo, risco e assimetria de informação. Esses custos de transação explicam por que o direito existe: para substituir a negociação impossível e permitir uma alocação minimamente eficiente dos recursos.
O processo é o “boi”: quando vira abusivo?
O exemplo de Coase ajuda a compreender fenômenos cada vez mais visíveis no foro: o uso do processo judicial como estratégia econômica de mercado, a partir dos incentivos comportamentais postos pelas regras processuais ou substanciais (sejam elas legais, ou jurisprudenciais). O conflito é inerente à sociedade e ele deve ser resolvido por meio de diversos mecanismos, sendo o Poder Judiciário a última porta, seja pelo seu custo elevado, seja pela impossibilidade das cortes funcionarem como sistema de consulta às partes ou um “drive thru”.
Há um número socialmente ótimo de processos que corresponde aos casos em que efetivamente haja uma disputa que não possa ser resolvida de outra forma e que merece atenção do Estado, que deve pacificar o conflito, ao mesmo tempo em que orienta a conduta esperada em casos futuros, criando uma infra estrutura jurídica para tomada de decisões dos indivíduos em suas iniciativas. Claro, processo envolve diferentes interpretações do texto e estratégias a ele relacionados, mas há limites como no xadrez, o jogo estratégico por excelência, para garantir a própria fluência do jogo.
Quando ultrapassamos esse limite, a sociedade, por meio de impostos, subsidia litígios que não deveriam ocorrer, criando-se incentivos para um mercado de litigância, no qual a lógica não é mais estritamente jurídica de um conflito de interesses não solucionado por outro meio distinto que não pelo Judiciário.
Não por outro motivo, o Código de Ética da OAB estabelece uma série de deveres deontológicos relacionados à prevenção aos litígios, que vão desde um controle substancial da publicidade, a um dever de orientação à parte, sendo o advogado o “primeiro juiz da causa”.
Compreendamos então o mercado da litigância. Substituamos metaforicamente os bois de Coase por ações judiciais. Cada processo representa um “boi” que gera lucro para quem litiga (seja por retardar pagamentos, represar valores ou desgastar reputacionalmente o adversário). Nesse ambiente, enquanto o ganho marginal de litigar for maior que o custo marginal da litigância, a parte (seja ela autora, ou ré) continuará “aumentando o rebanho” de processos.
A litigância abusiva, portanto, é o uso do processo para além da sua função essencial que resolver uma disputa real, um conflito de interesses tutelado pelo sistema jurídico a partir da lei (somos um país de civil law, em que a lei é a fonte primária do Direito). Trata-se, como na pesquisa que fizemos, do “uso do processo como uma indústria, como um negócio e que, como tal, visa lucro”[1].
A superprodução de processos movida por incentivos econômicos distorcidos no “mercado de litigância” é socialmente ineficiente pois permite um resultado da interação entre as partes custoso, ao mesmo tempo em que onera o contribuinte para além do “ponto ótimo”, fazendo com que gastemos quase 1,5% do PIB e destinemos mais recursos orçamentários ao Judiciário do que saneamento básico. Em vez de buscar a solução do conflito, a parte utiliza o próprio litígio como instrumento econômico de ganhos ou de geração de danos, explorando os incentivos postos.
É o que se vê, por exemplo, em disputas trabalhistas com elevada concentração no mercado na oferta de serviços a empregados, disputas empresariais nas quais grupos bilionários multiplicam ações, resistem indevidamente direitos, compram direitos no mercado de créditos judiciais, promovem recuperações judiciais para fins diversos daqueles a que a lei se propunha (recuperação propriamente dita) ou se valem de consignações artificiais para paralisar o caixa de fornecedores menores.
O processo, que deveria aperfeiçoar o sistema jurídico, diminuindo incertezas e oferecendo previsibilidade para os empreendedores que inovam e tomam risco, reduzindo assim custos de transação, passa a criar novos custos, invertendo a lógica institucional que o justifica.
A função coasiana do juiz
Nesse contexto, o magistrado assume papel essencial. Em termos coasianos, ele é o regulador de incentivos a partir do Direito Posto. Cada decisão que incentiva economicamente um novo processo (pense-se na concessão indiscriminada do benefício da AJG, ou que atua em claro ativismo judicial[2]), permite ou ignora o abuso processual, acabando por aumentar o custo social da litigância e gera ineficiência econômica, prejudicando inovação e subdesenvolvimento.
Nessa toada, quando a morosidade e a formalidade excessiva (há sim um mínimo de forma ao Direito que conforma o devido processo legal[3]) são tratadas como virtudes, o direito passa a premiar a ineficiência. O litigante estratégico e mesmo poderoso economicamente do ponto de vista de participação de mercado da litigância (“marketshare”[4]) percebe que é mais vantajoso litigar do que cumprir o contrato e o Judiciário, inadvertidamente, se torna parte da estratégia empresarial.
Eficiência, justiça e reciprocidade do dano
Coase jamais defendeu que a eficiência substituísse a justiça. O que ele mostrou é que toda decisão jurídica cria incentivos econômicos e ignorar essa dimensão equivale a agir inconsequentemente e, por via de consequência, a gerar externalidades negativas.
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No caso do fazendeiro e do lavrador, a questão não é apenas quem tem razão, mas quem pode evitar o dano a menor custo. E na relação com a sociedade, deve-se pensar na solução com menor custo social, levando em conta os custos tributários para financiar a máquina judicial. No caso do litigante e de seu adversário, não se trata apenas de quem tem o melhor argumento de acordo com o texto legal ou contratual, mas também quem está usando o processo de forma socialmente desejável.
A boa decisão judicial é, assim, aquela que evita o ativismo ideológico, que tem consciência democrática e fiscal e que alinha os incentivos: obriga quem gera o custo a internalizá-lo, impede a exploração da demora e devolve ao processo sua função pública de resolver, e não criar, conflitos e lucros em um mercado da litigância, aperfeiçoando o sistema jurídico e contribuindo com o desenvolvimento econômico.
[1] https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2011/02/relat_pesquisa_pucrs_edital1_2009.pdf
[2] https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/direito-economia-mercado/reflexoes-sobre-o-ativismo-judicial.
[3] https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/direito-economia-mercado/afinal-processo-e-forma-ou-instrumento
[4] Note-se que mesmo em litígios relacionados a pessoas alegadamente vulneráveis como empregados no âmbito da Justiça do Trabalho, há elevada concentração em alguns mercados advocatícios como demonstrado em. https://www.jota.info/trabalho/parecer-aponta-indicios-de-litigancia-predatoria-contra-industria-farmaceutica-no-trt4