Coase, big techs e o sonho de Lênin

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A questão central de Ronald Coase em seu famoso artigo “The Nature of the Firm” (1937) é aparentemente simples, mas revolucionária. Coase via as empresas – com um controlador, empregados com salário tabelado, estoque e plano plurianual de produção – como ilhas de planejamento central no oceano descentralizado do sistema de preços do mercado.

Por que essas ilhas surgem e quais forças econômicas governam esse equilíbrio entre empresa e mercado? Sua resposta abriu caminho para uma nova compreensão da economia, ao introduzir os conceitos de custos de transação e de custo de agência como explicação para a existência e o tamanho das empresas.

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Coase observou que o uso do mercado não era gratuito e que para operar no sistema de preços os agentes incorriam em custos de transação. Custos de transação representam as despesas associadas com a utilização do mercado, como os custos buscar informações, negociar contratos e assegurar seu cumprimento.

Quando os custos de contratar no mercado produtos e serviços se tornam relativamente elevados, os empresários podem internalizar esses contratos em uma estrutura hierárquica de planejamento, que passa a funcionar como uma pequena economia centralizada. Em vez de contratar sucessivamente no mercado e incorrer nesses custos transacionais, o empresário internaliza essas relações em um plexo de contratos de longo prazo chamado empresa.

Ao mesmo tempo, Coase apontou que planejar e coordenar as atividades dentro da empresa também tem um custo. São os custos de agência, ligados à construção de uma burocracia interna voltada para planejar, executar e fiscalizar a atividade. À medida que cresce, a firma enfrenta custos de agência marginalmente crescentes. O tamanho ótimo da firma ocorre quando o custo marginal de coordenar internamente mais uma atividade é igual ao custo de transação para contratação sucessiva no mercado.

Na visão de Coase, não existe na economia um antagonismo entre planejamento e livre mercado. Ambos convivem em todo mercado em proporções definidas por esse equilibro dinâmico entre custos de transação e custos de agência.

Com o avanço da tecnologia digital, especialmente a partir da web2 e agora da web3, esse equilíbrio entre custos foi profundamente alterado. De um lado, as plataformas de comércio diminuíram drasticamente os custos de transação, de acesso a informação e celebração de contratos, o que explica a migração de muitos indivíduos que antes seriam empregados e para a posição de empresários individuais.

Antes da web2, a criação de uma empresa demandava a mobilização de um capital inicial considerável para alugar um imóvel, estoque, pagar condomínio, IPTU, eletricidade, água, manutenção básica, móveis e ao menos uma pessoa para supervisão.

Hoje um estabelecimento digital é criado em segundos a custo próximo de zero em qualquer rede social. Uma conta online pode vender produtos ou serviços internacionalmente, terceirizando logística (Correios, DHL), pagamentos (PayPal, Pix) e até atendimento (chatbots), algo que antes só empresas com maior capital de execução conseguiam fazer. Redes sociais como Instagram, Amazon, TikTok e LinkedIn permitem marketing segmentado com baixo custo, substituindo publicidade cara em TV ou jornais.

Esse movimento estimulou uma fragmentação do tecido empresarial sem precedentes, marcada pela proliferação de microempresas, startups e empreendedores independentes atuando dentro do mercado digital. A afirmação se confirma empiricamente pelo aumento no número de registros empresariais. Hoje o Brasil tem 24.213.445 empresas ativas das quais 15.912.478 são MEIs, que aumentam em aproximadamente 3 milhões a cada ano.[1] Para se ter um parâmetro de comparação, o Brasil tem 47 milhões de postos de trabalho e criou em média por volta de 1,5 milhão de empregos nos últimos três anos, a metade da quantidade de MEIs.[2]

Há, ainda, quase 8 milhões de sociedades limitadas ativas no país, com 982.890 abertas em 2024 e 549.987 apenas no primeiro semestre de 2025. Existe evidentemente influência de precarização e pejotização, mas mantida a tendência atual, por volta de 2045 a quantidade de empresários individuais registrados em juntas comerciais ultrapassará a de empregados de carteira assinada.

Essa não é uma mudança trivial. É uma alteração profunda na estrutura de classes da sociedade, nas quais empresários dependentes e não patronais serão a principal classe trabalhadora do país, com efeitos sobre seguridade social, indicadores econômicos, agremiações políticas e resultados eleitorais.

Por outro lado, a mesma tecnologia que viabilizou essa queda nos custos transacionais produziu também uma gigantesca redução nos custos de agência. Diminuição drástica na quantidade de funcionários através da automação dos negócios, implantação de sistemas algorítmicos de gestão e integração de dados nos sistemas de enterprise resource planning (sistemas integrados de gestão empresarial capazes de reunir, em uma única plataforma, informações e processos de diferentes áreas da organização) permitem hoje a gestão e planejamento de empresas em uma escala sem precedentes na história, com elevada eficiência e baixos custos.

Em paralelo ao surgimento de milhões de microempresas de baixo capex, essa novas tecnologias permitiram a eclosão de uma dezena de corporações colossais, cujas dimensões e funções paraestatais só encontram paralelo nas companhias das índias holandesas da expansão ultramarina. A Nvidia, com US$ 4,4 trilhões de valor de mercado, se equipara ao PIB da Alemanha. A Microsoft e Apple, ambas com capitalização de mercado acima de US$ 3 trilhões, aproximam-se do PIB do Reino Unido. Amazon e Google, com cerca de US$ 2,5 trilhões, superam economias como a italiana e a canadense. A Meta, em torno de US$ 1,9 trilhão, equivale ao Brasil, enquanto a Tesla, com US$ 1,1 trilhão, se aproxima de países de porte médio.

Empresas desse porte seriam impossíveis de serem gerenciadas há duas décadas, mas hoje elas são uma realidade híbrida, que combina governo com indústria, planejamento com mercado. Plataformas como Amazon, Apple e Google Play operam infraestruturas privadas onde esses milhões de micro e pequenos empresários interagem com consumidores em um ambiente capaz de substituir as instituições de mercado tradicionais.

Essas plataformas são espelhos digitais de economias inteiras, nos quais açougues, padarias, bancos, táxis, supermercados, oficinas, advogados, contadores, restaurantes, lojas de roupas e praticamente qualquer estabelecimento pode oferecer, negociar e vender seus produtos e serviços.

Logística, publicidade e meios de pagamento são integrados, preços são controlados e contratos e garantias são padronizadas. Como legislações cogentes, os agentes operam de forma descentralizada, mas as empresas definem regras e algoritmos em uma regulação por design de programação. A plataforma cria um mercado interno, planejado algoritmicamente, um híbrido entre empresa e governo onde cada transação é livre, porém é monitorada e obedece a regras centrais que induzem o comportamento de agentes através de incentivos econômicos, nudging e sanções.

A Apple, por exemplo, não define o preço dos aplicativos vendidos na Apple Store, mas impõe faixas de preços pré-determinadas e proíbe que desenvolvedores redirecionem consumidores para sistemas de pagamento externos. A Amazon também não fixa o preço dos produtos vendidos por terceiros, mas exerce forte influência indireta. Usa algoritmos de ranqueamento no buscador interno que privilegiam ofertas mais baratas, com melhor logística e avaliações (fulfilled by amazon) e exige de vendedores paridade de preços (não vender mais barato em outros sites), prática que sofreu investigações antitruste nos EUA, União Europeia e Reino Unido.

Faixas de preço, ranqueamento, paridade e suspensão do buy box (ferramenta compras) são mecanismos de semiplanificação desse mercado digital, aplicados por conglomerados que são uma mistura de empresa e governo. Eles usam como base o sistema de preços e as alocações decididas de forma descentraliza pelos usuários, porém através de uma sofisticada arquitetura de programação gerenciam internamente cada oferta e direcionam simultaneamente a formação de milhões de preços através de políticas impostas por meio de monitoramento algorítmico.

Como autoridades centrais, as plataformas cobram comissões pela infraestrutura digital oferecida, que podem chegar a 30% sobre o valor das mercadorias e serviços circulados, percentual equivalente ao da participação de governos sobre os PIBs. Quando incidem sobre a movimentação de um espelho digital do mercado, essas comissões geram receitas e fluxo de caixa brutais, equivalentes ao orçamento de muitos governos e explicam como os valores dessas corporações ultrapassam PIBs de países inteiros.

E o que Lênin tem a ver com Coase? Em abril de 1918, no ensaio “As tarefas imediatas do poder soviético”, Lênin escreveu que tinha como “objetivo geral aprender a administrar toda a economia nacional como uma única empresa, como uma única oficina, como uma única fábrica, com disciplina exemplar, com um trabalho organizado, com a aplicação das mais modernas conquistas da ciência”.

Sob um ângulo coaseano, o projeto soviético foi um esforço de internalização de todo sistema de preços e das relações de mercado em uma grande empresa de dimensões nacionais, sob a premissa de que os custos de agência dessa estrutura seriam menores do que os custos transacionais de mercado, criando uma vantagem competitiva.[3]

Dentro dos inúmeros erros de Lênin está a subestimação dos custos de gestão dessa grande fábrica. Na época era impossível gerenciar os milhões de produtos e pessoas, estoques, preços e fluxos de toda a economia soviética. Os custos internos de administração da máquina pública, o controle de erros e corrupção, acesso e processamento de todas as informações sobre a produção e consumo atingiam patamares muito elevados, o que tornava o governo menos eficiente do que o mercado na alocação de bens.

Do ponto de vista econômico, Lênin falhou ao tentar expandir a empresa URSS além do seu limite, aumentando os custos de agência e deixando na mesa os ganhos auferidos pelas economias capitalistas descentralizadas, que operavam através do sistema de preços.

Paradoxalmente, hoje as big techs conseguiram contornar em parte essa limitação de envergadura econômica com ajuda da tecnologia digital. As Magnificent 7 são exemplos de como os limites de crescimento de uma operação empresarial foram expandidos pela revolução digital e de como a tecnologia atual provocou uma drástica redução nos custos de agência, através de mecanismos de governança empresarial muito mais efetivos e baratos que no passado. Lênin se sentiria realizado com o sucesso financeiro e político dessas corporações centralizadas, com poder comparável ao de estados e perfil quasi governamental.

Essa nova realidade na qual, de um lado, há elevada concentração da infraestrutura de mercado em poucas megacorporações tecnológicas e, de outro lado, uma ampla fragmentação empresarial com milhões de micro e pequenas empresas operando dentro dessas plataformas digitais, cria uma dualidade estrutural no mercado, que exige um redesenho das estruturas legais.

No plano trabalhista, por exemplo, a massiva migração da mão de obra para o empreendedorismo autônomo demandará novas formas de proteção social, compatíveis com vínculos mais fluidos e descentralizados. Com uma taxa de crescimento seis vezes maior do que os empregos formais, o limbo dos empreendedores individuais cria o risco de aprofundamento da precarização, das desigualdades sociais e de renda.

O desafio é criar uma rede social de proteção para os pequenos empresários autônomos, que não preenchem os requisitos da CLT e sofrem com a perda das proteções trabalhistas clássicas, mas que também não dispõe da robustez patrimonial e da proteção de capital típica dos empresários industriais existentes até o século 20. Uma estrutura capaz de estender proteção social a trabalhadores autônomos digitais, criando novas categorias que preservem a flexibilidade, mas que assegurem cobertura previdenciária, de saúde e possibilidade de negociação coletiva.

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O direito empresarial também é outra área que precisa ser repensada para lidar com essa dualidade entre empreendedores individuais e megacorporações globais. Apesar de corresponderem a 74% dos registros em junta, os regimes legais e regras relativas aos micro e pequenos empresários individuais não são estudadas nem pelos comercialistas, nem pelos advogados trabalhistas. Aqui é necessário lidar com essa dualidade para conceber uma regulação capaz de equilibrar simplificação do ambiente de negócios e redução de custos com estruturas de proteção próprias das relações jurídicas empresariais que apresentam alto grau de dependência.

Em resumo, a economia digital, ao mesmo tempo pulverizada e concentrada, coloca em xeque os paradigmas normativos herdados da era industrial, exigindo uma arquitetura regulatória nova capaz de equilibrar eficiência, simplificação, inovação e justiça social.


[1] Link: https://www.gov.br/empresas-e-negocios/pt-br/mapa-de-empresas/painel-mapa-de-empresas. Acesso em 29 de setembro de 2025.

[2] Link: https://www.gov.br/secom/pt-br/assuntos/noticias/2025/09/brasil-supera-1-5-milhao-de-empregos-com-carteira-assinada-em-oito-meses-de-2025. Acesso em 29 de setembro de 2025.

[3] Link: https://www.marxists.org/archive/lenin/works/1918/mar/x03.htm?utm_source=chatgpt.com. Acesso em