Citado por Fux, Luigi Ferrajoli defende condenação de Bolsonaro e diz que STF foi garantista

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Para o jurista e professor italiano Luigi Ferrajoli, 85 anos, considerado o pai do garantismo penal, a condenação de Jair Bolsonaro e dos outros envolvidos na tentativa de golpe de Estado revela “clara superioridade” do Brasil na defesa do Estado Democrático de Direito. Ferrajoli foi citado diversas vezes no voto do ministro Luiz Fux, único da 1ª Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) a absolver o ex-presidente por envolvimento na trama golpista. Na contramão do que foi argumentado pelo magistrado, que usou a obra do teórico na sua justificativa de voto, o jurista, em entrevista ao JOTA, descreveu o resultado do processo como “um ato importantíssimo de garantismo constitucional”.

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Ferrajoli é o principal teórico da corrente do Direito que tem como ideia central a defesa à proteção máxima dos direitos fundamentais do indivíduo. O garantismo prevê limites rigorosos ao poder punitivo do Estado para assegurar as garantias penais e processuais. A concepção foi desenvolvida por ele no livro “Direito e Razão: Teoria do Garantismo Penal”, lançado no final da década de 1980. É um marco para o Direito Penal.

A obra foi referenciada algumas vezes por Fux em parte do seu voto na ação penal da trama golpista. Em um dos trechos, munido dos argumentos de Ferrajoli, o ministro reforça o dever de observância do princípio da legalidade e da garantia ao devido processo legal. O ministro afirmou que o Supremo é incompetente para julgar o processo que condena Bolsonaro e o núcleo crucial da ação denunciada pela Procuradoria-Geral da União (PGR) e, no mérito, considerou que Bolsonaro deveria ser absolvido por não haver provas suficientes e que os fatos imputados contra ele não seriam crimes. Fux votou para condenar apenas o ex-ajudante de ordens do ex-presidente, o delator Mauro Cid, e o ex-ministro da Defesa e candidato a vice-presidente na chapa de Bolsonaro, Walter Braga Netto.

O jurista italiano citado por Fux pensa exatamente o contrário: “Este processo foi não apenas o lugar onde se aplicou o garantismo penal, mas também um ato importantíssimo de garantismo constitucional, graças ao qual se defendeu a intangibilidade do Estado de Direito e da democracia brasileira contra uma parte dos próprios poderes políticos e estatais que tentaram subvertê-la”, disse ao JOTA.

Ferrajoli acompanha o cenário político do Brasil, onde esteve no último mês. “O fato de que, desta vez, uma tentativa de subversão não apenas tenha fracassado, mas tenha sido objeto de um processo judicial, é um sinal da solidez do Estado de Direito brasileiro”, descreve.

Longe da perspectiva de Fux, que descreveu o 8 de Janeiro como a ação de “uma turba desordenada”, Ferrajoli diz que a tentativa de golpe de Bolsonaro e dos generais que o apoiaram não foi uma revolta de cidadãos comuns: “Foi uma tentativa de subversão posta em prática por poderes políticos”.

O jurista também compara o caso brasileiro com o norte-americano. Nos Estados Unidos, a Suprema Corte decidiu limitar o alcance das acusações contra manifestantes que participaram do ataque ao Capitólio, que ocorreu na capital Washington em janeiro de 2021. Para Ferrajoli, o encaminhamento dado pela Corte do Brasil mostra uma “maturidade democrática” do país e superioridade em relação aos EUA.

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Nos últimos anos, em um cenário de crescentes incertezas globais, com a escalada de ataques à democracia e catástrofes climáticas, Ferrajoli tem conduzido uma jornada por um “constitucionalismo do futuro”. O professor quer ampliar o paradigma constitucional para além do Estado de uma maneira planetária. Isso inclui transformar a Carta da ONU em uma Constituição da Terra, capaz de garantir de forma concreta e obrigatória princípios como a proteção ambiental e os direitos humanos fundamentais. A proposta está em seu livro mais recente: “Por Uma Constituição Da Terra: A humanidade em uma encruzilhada”, lançado em 2023. “Não é utopia. É a única alternativa realista a um futuro de catástrofes”, afirma.

A sua missão tem sido recebida com entusiasmo no Brasil, segundo o italiano, que diz ter percebido no país uma maior consciência sobre os desafios internacionais em relação aos países europeus.

Leia a íntegra da entrevista:

O senhor já expressou concordância com a posição adotada pelo Supremo Tribunal Federal no processo penal que condenou o ex-presidente Jair Bolsonaro por tentativa de golpe de Estado. O ministro Luiz Fux apresentou um voto divergente em relação aos demais ministros e absolveu Bolsonaro. Seu nome foi citado diversas vezes pelo ministro Fux como referência teórica em apoio à posição dele. O senhor acompanhou ou teve conhecimento desse voto?

Não acompanhei o andamento do processo, não li a manifestação do ministro Luiz Fux e não conheço as normas processuais aplicadas nele. A prova de civilização que o Brasil ofereceu ao mundo — essa é a minha convicção — consistiu na solidez de suas instituições democráticas e na capacidade delas de opor o Direito à força, de opor as regras do Estado de Direito à violência armada. É a primeira vez que isso acontece na América Latina.

O fato de que, desta vez, uma tentativa de subversão não apenas tenha fracassado, mas tenha sido objeto de um processo judicial, é um sinal da solidez do Estado de Direito brasileiro.

É uma demonstração de maturidade democrática de grande valor, especialmente se comparada ao tratamento exatamente oposto dado a uma tentativa semelhante de subversão ocorrida nos Estados Unidos, promovida pelo atual presidente Trump: o perdão aos que participaram do ataque ao Capitólio em janeiro de 2021 e medidas severas contra aqueles que investigaram o ataque.

O Brasil revelou, assim, uma clara superioridade na defesa do Estado de Direito em relação à maior potência mundial e à mais antiga democracia do mundo.

Processos de grande relevância institucional, como o que envolve um ex-presidente, inevitavelmente carregam uma dimensão política. Como o garantismo deve lidar, idealmente, com esse tipo de caso?

A dimensão política de um processo não exclui, mas ao contrário exige, o máximo respeito às garantias penais e processuais. Podem-se distinguir dois significados de “processo político”.

No primeiro sentido, processo político equivale a um processo orientado pela lógica do inimigo. Nesse sentido, ele é incompatível com o garantismo, que não admite processos desse tipo. A jurisdição, segundo a abordagem garantista, não reconhece inimigos, apenas cidadãos. E sua fonte de legitimação consiste na busca da verdade processual com base no respeito rigoroso de todas as garantias penais e processuais, incluindo, obviamente, a garantia do juiz natural.

Mas pode-se entender “processo político” em um sentido mais neutro: são políticos os processos em que o crime é motivado por razões políticas e cometido por sujeitos políticos. Nesse sentido, o processo de Bolsonaro foi, sem dúvida, um processo político.

Mas a tentativa de golpe de Bolsonaro e dos generais que o apoiaram não foi uma revolta de cidadãos comuns nem um atentado de terroristas. Foi uma tentativa de subversão posta em prática por poderes políticos — o próprio Bolsonaro, chefe de uma força de oposição que havia perdido as eleições, e os militares seus cúmplices, órgãos poderosos do aparato estatal.

Naturalmente, eles têm direito a todas as garantias do devido processo legal. Além disso, graças ao fato de terem sido submetidos a julgamento pelos atos que cometeram, a jurisdição manifestou da forma mais exemplar o papel garantista que Montesquieu lhe atribuiu, segundo o qual “para que não se possa abusar do poder, é preciso que, pela disposição das coisas, o poder freie o poder”.

Este processo foi, portanto, não apenas o lugar onde se aplicou o garantismo penal, mas também um ato importantíssimo de garantismo constitucional, graças ao qual se defendeu a intangibilidade do Estado de Direito e da democracia brasileira contra uma parte dos próprios poderes políticos e estatais que tentaram subvertê-la.

O senhor acredita que a condução do caso brasileiro pode servir de referência para outros países na defesa do Estado Democrático de Direito?

Certamente. Em um continente como a América Latina, que na segunda metade do século passado sofreu tantos golpes de Estado militares e tantas ditaduras, esse processo tem uma função dissuasória segura em relação a outras possíveis tentativas ou projetos de subversão.

Com Por uma Constituição da Terra, o senhor defendeu um constitucionalismo do futuro. É uma perspectiva que nasce diante desse cenário de incertezas, catástrofe climática e risco nuclear. Ao mesmo tempo, vivemos, em um contexto global, uma fase de crescente autoritarismo, com ameaças ao Estado Democrático de Direito em diversos países. Uma Constituição da Terra poderia enfrentar também isso? De que modo?

O projeto de uma Constituição da Terra nasceu do reconhecimento de um fato tão dramático quanto ignorado por nossos governos. Pela primeira vez na história, a sobrevivência da humanidade está ameaçada por agressões e catástrofes globais que exigem respostas globais: o aquecimento climático, que, se não for contido, tornará a Terra inabitável em dois séculos; o perigo gerado pelo clima belicista hoje dominante, que pode fazer degenerar as guerras atuais em um conflito nuclear; o crescimento mundial das desigualdades e das violações dos direitos humanos.

O aspecto mais paradoxal e doloroso desse caos global é que, diante dessas catástrofes que, para serem enfrentadas, exigiriam o fortalecimento do papel garantista do Direito como sistema de regras impostas aos poderes, hoje, selvagens da política e da economia, ocorreu exatamente o fenômeno oposto: a simplificação dos sistemas democráticos nacionais, cada vez mais reduzidos a autocracias eletivas, e subordinados aos poderes econômicos e financeiros globais, acompanhada de um negacionismo substancial das grandes emergências planetárias.

Precisamos, ao contrário, ter consciência de que, se quisermos que a humanidade sobreviva, é necessária uma transformação da Carta da ONU em uma Constituição da Terra, na qual, junto aos princípios da paz, da proteção do meio ambiente e da igualdade nos direitos fundamentais de todos os seres humanos, sejam estabelecidas garantias concretas e vinculantes, sem as quais tais princípios são apenas palavras.

Para garantir a paz, devem ser proibidas, como crimes contra a humanidade, a produção e o comércio de todas as armas. Para garantir o meio ambiente, os bens vitais da natureza devem ser protegidos como bens públicos, retirados da lógica da mercantilização e da exploração.

Para garantir os direitos à saúde, à educação e à subsistência, devem ser criados serviços de saúde, educação e assistência globais que assegurem esses direitos sociais a todos. Contra as leis que atentem contra a liberdade, deve ser instituída uma Corte Constitucional planetária com poder de anulá-las por violarem a Constituição da Terra. Por fim, deve ser criada uma tributação global progressiva para financiar essas garantias e, ao mesmo tempo, impedir a atual acumulação de riquezas desmedidas.

Não é utopia. É a única alternativa realista a um futuro de catástrofes. Nossos netos e os netos de nossos netos não poderão perdoar — e nem mesmo compreender — nossa cegueira irresponsável, pela qual lhes deixaremos como herança um planeta inabitável, transformado em um inferno.

Recentemente o senhor esteve no Brasil. Como foi o debate sobre esse tema no país? Como avalia a recepção dessa perspectiva no Brasil?

A proposta de uma Constituição da Terra, como única alternativa ao atual domínio da lei do mais forte e à perspectiva de um suicídio insensato da humanidade, foi recebida com entusiasmo nas muitas conferências que realizei em São Paulo, Rio de Janeiro, Porto Alegre e Brasília, e nos muitos encontros que tive com magistrados, advogados, professores de disciplinas jurídicas e autoridades políticas.

Aqui no Brasil, pelo menos no mundo jurídico, percebi uma consciência muito maior do que na Itália e na Europa sobre a existência de desafios e catástrofes globais que exigem, no interesse de todos, respostas também globais.

Essas respostas só podem surgir da expansão, em nível planetário, dos limites, restrições e controles que experimentamos na construção de nossas democracias constitucionais.