Como noticiado no último dia 17 de outubro, a senadora Soraya Thronicke (Podemos-MS) apresentou o PL 5008/2023 (PL dos Cigarros Eletrônicos), propondo permitir a produção, importação, exportação, comercialização, controle, fiscalização e propaganda dos cigarros eletrônicos, nos termos e restrições previstos no próprio PL e de acordo com a regulamentação aplicável.
O tema é importante porque, há 14 anos, vige a proibição de comercialização, importação e propaganda de quaisquer tipos de dispositivos eletrônicos para fumar (DEF) no país, nos termos da Resolução de Diretoria Colegiada da Anvisa 46, de 28 de agosto de 2009. Na época, a decisão regulatória se baseou no “princípio da precaução”, sob o argumento de que inexistiam dados científicos que pudessem servir de suporte à regulação desse tipo de produto.
Entretanto, embora a principal resposta do Direito ante as incertezas ou desconhecimento dos riscos seja a adoção do princípio da precaução, essa não é a única resposta regulatória possível. Ademais, como explicado em coluna passada, as decisões normativas, sejam legislativas ou regulatórias, são rebus sic stantibus e os avanços científicos e tecnológicos servem (e de fato devem servir) de fundamento para a revisão das decisões anteriores.
Atualmente, são 37 países que proíbem totalmente, enquanto 73 autorizam mediante o estabelecimento de regras (limites de concentração de nicotina, critérios para as misturas líquidas etc). Além disso, a atual proibição não tem sido suficiente para impedir, no plano dos fatos, os DEFs, cujo uso no Brasil vem ocorrendo à revelia da RDC 46, sem que se conheçam os detalhes sobre quem são os fumadores e o que estão inalando.
Em junho de 2022, a Anvisa chegou a iniciar um processo de revisão da proibição total, mas, curiosamente, a AIR da Anvisa se limitou a analisar duas alternativas: 1) manutenção do texto e das proibições da RDC 46, sem a implementação de ações adicionais não normativas; ou 2) manutenção das proibições da RDC 46, com o aprimoramento do instrumento normativo e a implementação de ações adicionais não normativas. Sim, as únicas duas opções consideradas foram proibitivas.
Mais uma vez, o argumento empregado foi o de falta de consenso da comunidade científica quanto ao uso dos DEFs ser menos prejudicial do que os cigarros convencionais ou mesmo úteis para a sua cessação. No entanto, como se acaba de comentar, o contexto de “ignorância” (inexistência de conhecimento) ou de incerteza é um mau argumento para justificar uma “não decisão”.
Pois bem. Desde a primeira vez que o assunto surgiu, ficou registrado que o propósito da parlamentar seria o de “puxar” o debate sobre a regulação do cigarro eletrônico. Tanto que a senadora tinha apresentado o Requerimento 85/2023, junto à Comissão de Assuntos Sociais (CAS) do Senado no dia 30 de agosto. Ao seu requerimento, somaram-se outros no mesmo sentido (REQs 89, 95 e 96, todos de 2023).
A audiência pública acabou ocorrendo no último dia 28 de setembro. O vídeo e atas taquigráficas estão disponíveis aqui. Na oportunidade, foram ouvidos diversos especialistas, indicando que a atuação do Congresso Nacional nessa matéria está longe de poder ser considerada “descuidada”, “caprichosa” ou sem base em critérios técnicos. Pelo contrário, foram ouvidos os dois lados da discussão, com o objetivo de colher subsídios e informação.
Nesse cenário, vê-se que a apresentação do PL foi só mais um passo no objetivo de “pressionar” o Poder Executivo e a Anvisa para rever a decisão anterior. Não significa que o objetivo seja uma liberação total dos DEFs. Na justificativa do o PL 5008/2023, consta que a regulação pode ser uma estratégia para promover a cessação do uso do tabaco convencional.
Ainda de acordo com a justificação, “a posição brasileira de simplesmente proibir a comercialização, a importação e a propaganda é o mesmo que tapar o sol com a peneira. A utilização dos cigarros eletrônicos é crescente e seus usuários não recebem nenhum tipo de proteção ou orientação por parte do Estado. Paradoxalmente, diversos outros produtos que oferecem risco à saúde, tão ou mais prejudiciais que os cigarros eletrônicos, são permitidos, a exemplo dos cigarros convencionais e dos narguilés, estes mesmos aprovados pela Anvisa e encontrados em sabores e embalagens apelativos ao público infanto-juvenil, um grande paradoxo”.
O objetivo da proposta, então é o de: 1) proporcionar segurança, a um só tempo, a consumidores e fornecedores, 2) garantir que os cigarros eletrônicos sejam devidamente tributados, e 3) preservar a saúde pública, especialmente pelo controle, impedindo crianças e adolescentes de acesso a tais produtos.
Fica muito clara a crença parlamentar de que a regulação “desempenha um papel crucial na proteção da sociedade contra o consumo indiscriminado, o comércio ilegal de produtos falsificados, bem como na promoção de informações adequadas sobre os riscos e os danos relacionados ao uso desses produtos”.
É difícil discordar da argumentação legislativa apresentada. Aqui não se desconhecem os grandes interesses econômicos envolvidos na questão. É claro que as empresas que defendem a liberação dos DEFs sustentam que os cigarros eletrônicos seriam menos prejudiciais que o tabaco tradicional. Ao mesmo tempo, existe uma firme posição da classe médica no sentido de que o “veto” da Anvisa deve ser mantido.
No entanto, assim como acontece com o Poder Legislativo, as agências reguladoras também podem ser instadas a rever suas decisões regulatórias. Em matéria normativa, não há qualquer escolha, legislativa ou regulatória, definitiva, exclusiva ou irretocável. Tanto na legislação, quanto na regulação, inexiste algo paralelo a uma “última palavra” ou uma “coisa (julgada) legislativa” imutável.
A racionalidade legislativa obriga a consideração de circunstâncias concretas, do mundo dos fatos, que são temporais, provisórias, suscetíveis de modificação com a passagem do tempo. Por isso, o que foi justificado em determinado momento pode se tornar injustificado mais adiante. As decisões, sejam legislativas ou regulatórias, tornam-se obsoletas. E em uma democracia o lobby será sempre livre para encaminhar demandas e qualificar o debate sobre os regulamentos ou políticas públicas.
Da mesma forma, o Congresso Nacional também pode, legitimamente, pautar a agenda regulatória das agências e definir sua atuação sem que isso represente qualquer tipo de usurpação das competências desses entes. Inclusive, no caso do PL dos Cigarros Eletrônicos, o art. 2º estabelece a obrigatoriedade do registro junto à Anvisa para a fabricação, a importação e comercialização no território nacional. Ou seja, continua-se exigindo o aval técnico da Anvisa.
Além disso, em nenhum momento a proposta legislativa suprime competências técnicas da agência ou veda a atuação regulatória posterior da Anvisa. O PL estabelece que à Anvisa compete elaborar a lista de substâncias proibidas para uso nos cigarros eletrônicos (art. 16, parágrafo único); que a agência deverá disponibilizar canal de comunicação eletrônico (art. 20); e que continuará com o poder de polícia para realizar inspeções (art. 32).
O que se vê, na verdade, é uma tendência de, cada vez mais, o Congresso Nacional avançar na disciplina de assuntos “técnicos”. Pode-se dizer que isso faz parte da supervisão parlamentar. E, na prática, mesmo quando não leva a cabo os instrumentos tradicionais de controle, o Congresso Nacional vem cumprindo um papel importante em termos de agenda setting das agências.
A grande dúvida quanto a esses “diálogos” (ou seriam “quedas de braço”?) entre o Congresso Nacional e as agências reguladoras está em tentar antecipar qual das posições ou instituições vai prevalecer, pois nem sempre a preferência dos parlamentares sai vitoriosa.
Nesse sentido, basta que as preferências das agências reguladoras estejam alinhadas com as de só uma das Casas, por exemplo, e – ainda que não estejam com as da outra –, a regulação aprovada no âmbito da agência não será derrubada, nem superada por lei.
Da mesma forma, o Legislativo não será capaz de exercer dominância sobre as agências se o Executivo for contrário e sua posição estiver em consonância com as agências, caso em que o presidente da República tenderá a vetar o PL. Aqui só a maioria absoluta em ambas as Casas derrubaria o veto promulgando a lei (art. 66, § 4º, da CF).
É por isso que, na maioria dos casos, o Congresso será incapaz de “desaprovar” as decisões das agências no caso do Brasil, especialmente porque ainda são fracas as ferramentas formais de controle. Então, o cenário mais provável tende à dominância das burocracias, muito embora a situação possa ficar mais complexa com a intervenção de outros atores, como o Poder Judiciário ou o TCU.
Quem acompanha a Defensor Legis sabe que a interação entre o Congresso Nacional e as agências reguladoras já tinha sido tratada em outras ocasiões, como no caso dos anorexígenos, da bagagem gratuita, do rol da ANS (aqui e aqui) e da ozonioterapia.
Todos esses episódios são exemplos de que, na prática:
1) as agências reguladoras não detêm o monopólio da regulação, pois o Congresso Nacional sempre poderá concorrer na disciplina dos mesmos assuntos via legislação, sem prejuízo de que, da mesma forma, as agências reguladoras tomem uma decisão posterior à do Congresso;
2) as agências reguladoras não têm o controle efetivo sobre a sua própria agenda (têm apenas poder de agenda), pelo que podem ser “pautadas” por outros atores, inclusive o Poder Legislativo;
3) pela razão posta no item anterior, as agências reguladoras não são tão independentes quanto a justificativa dada para a sua criação sugeriria;
4) que verdadeiras “disputas” são travadas em torno das escolhas regulatórias, criando um cenário salutar para o aperfeiçoamento das decisões;
5) os contextos de inexistência de conhecimento (ignorância) ou de incerteza – sobretudo quando usados pela própria agência reguladora como argumento para uma “não-decisão” – se mostram especialmente propícios para uma intervenção mais ativa do Congresso Nacional sobre a gestão dos riscos regulatórios.
Seja como for, no caso do cigarro eletrônico, independentemente do advento de futura regulação favorável, o fato é que a empreitada parlamentar de “pressão” deu certo: no último dia 1º de dezembro, a Anvisa anunciou que vai abrir uma consulta pública com vistas a uma nova regulamentação sobre os DEFs. Ou seja, pouco mais de um ano depois da sua última decisão, a Anvisa voltará a discutir o tema, muito provavelmente porque foi “pautada” pela atuação parlamentar, o que, para esta colunista, é algo muito bom enquanto maneira de discussão e aperfeiçoamento da regulação, o que é essencial em uma democracia.