Poucos julgamentos recentes do Supremo Tribunal Federal despertam preocupações teóricas tão relevantes quanto o do Tema 914, relativo à Cide-tecnologia. Por maioria, o Tribunal decidiu que a constitucionalidade da contribuição não depende da existência de vínculo empírico entre o contribuinte e a intervenção estatal, bastando que os recursos arrecadados sejam destinados a finalidades constitucionalmente legítimas. Essa conclusão decorreu do voto do ministro Flávio Dino, que adotou uma concepção de referibilidade centrada na destinação das receitas, e não na correlação entre o grupo onerado e o setor beneficiado, admitindo a cobrança mesmo de empresas sem qualquer relação com o setor tecnológico.
Essa formulação desloca o critério de legitimidade das contribuições interventivas: a pertinência entre o grupo onerado e a atuação estatal deixa de ser um requisito de validade e passa a ser substituída por uma compatibilidade abstrata entre arrecadação e finalidade constitucional. Como resultado, verifica-se a aproximação das contribuições interventivas a um modelo de imposto com destinação específica. Trata-se, contudo, de posição ainda sujeita a revisão, uma vez que o julgamento pende de recurso. A eventual consolidação dessa perspectiva, todavia, representaria uma ruptura profunda na dogmática das contribuições interventivas, com sérias implicações para a coerência do sistema tributário.
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A dimensão prática desse problema ficou evidente no recente episódio envolvendo a Netflix. Em outubro de 2025, a empresa comunicou ao mercado que precisou provisionar aproximadamente US$ 619 milhões (cerca de R$ 3,3 bilhões) em razão de uma disputa tributária brasileira relacionada à Cide-tecnologia, o que levou à redução de sua margem operacional e à queda do seu valor de mercado.2 O caso é paradigmático: a Netflix utiliza tecnologia como meio essencial de sua atividade de streaming, mas não integra o setor tecnológico nem guarda relação direta com as finalidades de fomento à pesquisa e ao desenvolvimento tecnológico que justificam a contribuição. Sob a ótica da referibilidade, a sua inclusão como contribuinte representa um desvio estrutural: o tributo passa a incidir não sobre agentes inseridos no domínio econômico objeto da intervenção estatal, mas sobre qualquer empresa que, de modo genérico, realize remessas ao exterior.
As contribuições de intervenção no domínio econômico, porém, não são meros instrumentos arrecadatórios. Pelo contrário, são tributos vinculados e finalísticos, cuja legitimidade depende de uma relação racional e verificável entre a atuação estatal e o grupo de contribuintes chamado a financiá-la. Enquanto os impostos se justificam pela capacidade contributiva geral, as contribuições derivam de uma atuação estatal específica, voltada à modificação de uma realidade econômica concreta. É dessa relação que nasce a referibilidade – expressão da conexão necessária entre o sujeito passivo e a intervenção estatal que o tributo financia. Nas contribuições interventivas, essa relação é indireta: o contribuinte não precisa ser individualmente beneficiado, mas deve integrar um grupo que, de modo verificável, participe, provoque ou seja afetado pela transformação econômica promovida pelo Estado.
Ao admitir que bastaria a correta destinação dos recursos a um fim legítimo, o voto do ministro Flávio Dino no Tema 914 rompeu com essa estrutura. Ao deslocar o foco da referibilidade do vínculo empírico para uma compatibilidade puramente teleológica, tal entendimento substitui a verificação de pertinência entre contribuinte e intervenção por uma análise orçamentária. O conceito de referibilidade, assim, deixa de expressar um vínculo fático e passa a significar apenas uma afinidade formal entre arrecadação e alguma finalidade constitucional.
O equívoco decorre da confusão entre dois tipos de vinculação. Nas taxas, a atuação estatal é diretamente referida ao contribuinte: o dever de pagar nasce de uma atividade estatal individualizável que o beneficia ou atende diretamente. Nas contribuições, especialmente nas de intervenção no domínio econômico, essa relação se apresenta de forma mediata: o vínculo não se dá com a prestação estatal em si, mas com os efeitos econômicos que dela resultam. Por isso, não se pode confundir a ausência de benefício direto com a inexistência de vínculo empírico. O primeiro é próprio das contribuições; o segundo desnatura a sua essência. Preservar essa distinção é essencial para manter o caráter vinculado das contribuições e impedir que se convertam em instrumentos de arrecadação genérica.
Conforme já tive a oportunidade de demonstrar, a referibilidade, em sua formulação dogmática adequada, é uma relação empírica e objetivamente verificável entre o grupo de contribuintes e a realidade econômica cuja modificação constitui o fim da intervenção estatal.3 Essa relação funciona como critério de igualdade substancial, pois assegura que apenas os agentes com conexão concreta com a modificação da realidade econômica resultante da intervenção sejam chamados a contribuir. Com isso, a referibilidade cumpre o papel de garantir a coerência entre o desenho da contribuição e a intervenção estatal que lhe dá sentido constitucional.
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Constituição de 1988 estruturou o sistema tributário a partir de competências materialmente limitadas, e não de autorizações genéricas para exercício do poder de tributar. A criação de uma contribuição interventiva exige a demonstração de quatro elementos logicamente articulados: (i) uma justificativa, que revele a necessidade da intervenção; (ii) uma intervenção, apta a modificar a realidade; (iii) fins imediatos, representados pelos resultados concretos buscados; e (iv) fins mediatos, correspondentes ao estado de coisas idealizado pelos princípios da ordem econômica constitucional.
É dentro dessa estrutura causal que se insere a referibilidade. A legitimidade da exação depende da coerência entre a causa que motiva a intervenção, o meio empregado, os resultados buscados e o grupo contribuinte chamado a financiá-la. Quando essa coerência se rompe – por exemplo, no caso examinado, ao incluir no universo de contribuintes empresas que não guardam relação com o setor tecnológico –, desaparece o vínculo empírico que legitima a cobrança e o tributo perde seu fundamento constitucional. A redução da referibilidade a uma compatibilidade genérica entre arrecadação e finalidade compromete a racionalidade do sistema e a própria dimensão ética do tributo, que consiste em fazer recair o ônus fiscal sobre quem, de algum modo, participa ou se relaciona com a intervenção estatal. A ausência desse vínculo converte o tratamento diferenciado inerente ao tributo em arbitrariedade e fragiliza o princípio da igualdade substancial – núcleo de justiça do direito tributário.
Por isso, a decisão sobre a Cide-tecnologia deve ser lida com cautela. Ainda que a sua constitucionalidade não tenha sido reconhecida em definitivo (foram opostos embargos de declaração pelo contribuinte), o precedente sinaliza um risco institucional relevante: o de dissolver a fronteira entre contribuições e impostos e esvaziar o caráter vinculado que lhes confere sentido constitucional. Preservar a referibilidade – como vínculo empírico e normativo entre quem paga e a realidade transformada pela intervenção – é preservar não apenas a integridade do sistema tributário, mas também a racionalidade ética do Estado de Direito.