Cidades (mais) inteligentes: transformação digital com propósito humano

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“Precisamos aspirar a inspirar, antes de expirar.” A frase proferida por Maimunah Sharif, prefeita de Kuala Lumpur, na abertura do Smart City Expo World Congress 2025, resume as discussões do evento e defende uma ideia crucial: a transformação digital não é um fim em si mesma. Mais do que um fenômeno tecnológico, implica numa revolução de processos e serviços, cujo objetivo precisa ser resoluções de problemas públicos.

A solução tecnológica deve ser apenas uma das alternativas à disposição do gestor, mas nem sempre é a mais adequada. A tecnologia só faz sentido quando melhora efetivamente os serviços públicos e, ao fim, a vida dos cidadãos. Diante de uma infinidade de soluções digitais, é preciso lembrar que as cidades são feitas por e para pessoas e que a ambição do setor público não deve se limitar a tornar a cidade “habitável”, mas sim a construir um lugar coletivo amável, onde morar, trabalhar e viver sejam experiências dignas e inclusivas.

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Na administração pública local, esse compromisso começa com uma sólida governança de dados. Antes de pensar em plataformas, IA e dashboards, é indispensável identificar quem é dono de qual dado, sua origem, os padrões adotados e como garantir qualidade e interoperabilidade.

Essa governança não se limita apenas a questões técnicas, exigindo também integração intragovernamental (entre secretarias e órgãos) e cooperação intergovernamental (entre níveis de governo), através de uma base normativa clara e comum, bem como com serviços compartilhados, que evitem duplicidades. Há um pré-requisito transversal, para isso: a identidade digital. Um amplo cadastro único, confiável e inclusivo é a condição necessária para a interoperabilidade e para a personalização de serviços.

Superada a governança, é preciso transformar os dados em valor público. Ter um repositório de dados não basta, é necessário combiná-los para transformá-los em informação prática, capaz de orientar decisões. Múltiplos dashboards, com dezenas de indicadores, valem menos do que uma síntese qualitativa capaz de apontar prioridades e riscos para as políticas públicas. Nada disso funciona com dados desatualizados.

As informações coletadas precisam refletir ao máximo a realidade sobre a qual as decisões de política incidirão, a fim de que se possa tomar a melhor decisão possível. A IA entra nesse cenário não como um atalho mágico, mas como componente acelerador, ajudando a dar velocidade ao ciclo de dados, melhorando a qualidade de medição, ampliando o entendimento retrospectivo e fortalecendo a capacidade preditiva.

No plano tecnológico, deve-se priorizar uma arquitetura modular e interoperável. Modular para incluir e retirar soluções em resposta às mudanças constantes do ambiente institucional. Interoperável para ser capaz de trocar dados de forma segura, padronizada e automática entre sistemas diferentes, para adaptar-se aos sistemas de cada secretaria e órgão.

Como não há soluções mágicas nem padrões universais e como cada administração tem legados, capacidades e prioridades distintas, as soluções tecnológicas adotadas precisam considerar as especificidades locais e, quando possível, ser de natureza incremental.

Em vez da aquisição de grandes pacotes de soluções “plug and play” de prateleira que prometem resolver tudo, faz mais sentido adotar um caminho de projetos-piloto ajustados ao contexto local, com métricas claras de sucesso e planos para escalar se, e somente se, funcionarem. Para sustentar esse caminho, urge garantir uma cultura de continuidade institucional, trabalhar sobre resultados anteriores, reaproveitar componentes e evitar recomeçar do zero a cada gestão.

Escolher começar com uma solução-piloto tem vantagens não apenas do ponto de vista de resultados, mas também na perspectiva fiscal, haja vista que o risco assumido é menor em caso de insucesso, algo comum para quem busca inovação. Importa destacar ainda uma diferença entre a realidade brasileira e a europeia no que diz respeito ao financiamento.

O contexto europeu apresenta forte apoio de fundos da União Europeia, enquanto no Brasil não há a mesma disponibilidade de recursos aos quais as cidades possam recorrer para financiar seus projetos. O desafio é combinar recursos externos, como bancos de desenvolvimento e recursos federais, com o fortalecimento das receitas próprias tradicionais e a busca por fontes de receitas alternativas.

Comparar experiências entre Brasil e Europa, pode ajudar a conceber e adaptar soluções, por exemplo, no que se refere aos fundos estruturais e compras compartilhadas, visto que no Brasil, consórcios públicos e instrumentos nacionais podem cumprir papel semelhante.

Nenhuma solução, grande ou pequena, prospera sem engajamento com o cidadão e sem comunicação de mão dupla. É preciso que a governança vá até a população, em vez de esperar que ela venha até o governo. É preciso ouvir antes, durante e depois do ciclo do problema público, traduzir assuntos complexos em linguagem clara e gerenciar as expectativas de forma realista. Incorporar a dimensão humana implica adotar princípios norteadores, como lembrar, reconhecer e respeitar, ao interagir com a população marginalizada.

Isso requer ação deliberada do setor público. Se não houver um desenho explícito de inclusão, dificilmente toda a população usufruirá igualmente de um avanço tecnológico. Assim, por exemplo, as licitações podem exigir que os fornecedores demonstrem acessibilidade, inclusão e escalabilidade como padrão, a fim de que a inovação não aprofunde desigualdades.

No campo administrativo, a transformação exige, em primeiro lugar, priorização política, que coloque o tema no centro e avance a pauta de forma constante dentro do governo. O engajamento político é condição necessária, mas não suficiente. É preciso criar uma estrutura de governança pública da transformação digital que garanta voz e agência ao corpo técnico nas decisões estratégicas.

Para sustentar essa governança, a capacitação contínua deve ser tratada como o principal investimento, seja por meio da formação de equipes híbridas que combinem capacidades de negócio e tecnologia, seja pelo treinamento de servidores, dos mais novos aos mais experientes, para o uso responsável de dados e IA assegurando atualização permanente.

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Os grandes desafios globais têm cada vez mais impactos locais que atravessam de forma transversal a administração municipal. Essa realidade exige maior planejamento integrado, cooperação entre cidades e acesso a fontes de financiamento, além da receita própria. Como os problemas urbanos se repetem entre as cidades pelo mundo, o custo da não colaboração é elevado.

Por isso, a participação ativa em iniciativas como a Smart City Expo World Congress e em associações municipalistas (como a Frente Nacional de Prefeitas e Prefeitos, a FNP) é essencial para compartilhar lições e aprender mutuamente. Só por meio da colaboração será possível construir cidades mais inteligentes, em que as pessoas, e não a tecnologia, são os protagonistas.