Ciclone no RS, inquérito do MP e o ajuizamento de ação climática

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Eventos climáticos extremos são aqueles de natureza meteorológica de intensidade desproporcional à série histórica de uma determinada região. Eles podem se manifestar com temperaturas muito altas ou muito baixas, chuvas intensas e em volume anormal ou longos períodos de estiagem. Esses fenômenos têm sido cada vez mais frequentes e já existem dezenas de ações sobre litigância climática em curso no Brasil, inclusive nos tribunais superiores em Brasília.

As chuvas intensas que na primeira semana de setembro levaram diversas cidades no Rio Grande do Sul à situação de calamidade pública e provocaram dezenas de mortes são o exemplo mais recente de um evento climático extremo e de uma possível nova ação climática.

No último dia 7, o Ministério Público Federal (MPF), por meio da Procuradoria da República em Caxias do Sul (RS), instaurou inquérito civil para apurar eventuais irregularidades relacionadas a entes públicos e empresas privadas, concessionárias, cujas ações ou omissões na adoção de medidas de enfrentamento das mudanças do clima poderão ensejar, contra elas, a propositura de eventual ação civil pública.

Nos termos da Portaria 1/2023, que determinou a instauração do inquérito, o MPF pretende apurar se foram adotadas medidas de monitoramento climático, sistema para emissão de alertas em caso de detecção de possíveis eventos climáticos que possam colocar a população em risco, evacuação de áreas sujeitas a esses eventos extremos e medidas para gestão de crises. O MPF é claro: se for o caso, a depender do que for apurado, poderá haver “ajuizamento das medidas judiciais e/ou adoção das medidas extrajudiciais cabíveis”.

Uma análise de algumas das ações já em curso e das decisões judiciais nesses processos mostra que as ações climáticas seguem uma lógica jurídica diferente da convencional, até mais arrojada que a lógica das ações ambientais, que, por sua vez, já são mais desafiadoras que as outras.

Nas ações ambientais, há por vezes necessidade de produção de prova técnica de alta complexidade e os argumentos determinantes para condenação ou absolvição do réu dizem respeito à confirmação ou desconfiguração do nexo de causalidade entre a sua conduta e o suposto dano. E, em razão da chamada inversão do ônus da prova, cabe ao réu (e não à acusação) provar que o dano ambiental não existe ou que ele não o provocou por ação ou omissão.

Quanto às ações climáticas, a análise do que já existe em curso no Brasil tem mostrado que elas são ainda mais desafiadoras que as ambientais. São ações que prescindem de prova da relação direta de uma determinada conduta com um determinado evento climático extremo.

É possível afirmar que precedentes judiciais brasileiros estabeleceram duas premissas para julgamento de ações climáticas: (i) critérios racionais e científicos não podem ser ignorados ou contrariados (ADI 6.351 e ADPF 672) e, na medida em que as mudanças climáticas em curso e os eventos climáticos extremos que decorrem delas possuem comprovação científica, não dependem de prova; e (ii) governos, empresas e sociedade têm o dever de implementar medidas para enfrentamento das mudanças climáticas porque, em maior ou menor grau, contribuíram para sua ocorrência (art. 225, caput da Constituição Federal).

Nesse contexto, é quase impraticável que haja alguma prova que o réu em uma ação climática possa produzir para demonstrar que as mudanças climáticas não existem e que sua conduta ou atividade não têm nada a ver com fenômenos climáticos extremos. Não se espera que isso seja possível, nem é ou deveria ser intenção da Justiça culpar um governo, empresa ou sociedade por uma crise global.

O que se espera e o que se exige com base em dispositivos constitucionais, princípios e políticas ambientais é que, ciente da crise climática em curso, o réu, dentro da sua área de influência e no alcance da sua capacidade econômica, demonstre que tem feito seu papel para enfrentamento das mudanças climáticas por meio da implementação de medidas capazes de controlar emissão de gases geradores do efeito estufa e de mitigação de seus efeitos – como as que serão objeto de apuração por parte do MPF em relação à tragédia que acometeu o sul do país há poucos dias.

As medidas que podem ser implementadas para enfrentamento das mudanças climáticas não podem ser aleatórias. Devem ter relação intrínseca com a conduta ou a atividade da entidade ou empresa. Medidas aleatórias ou ineficazes tendem a não serem aceitas.

Além disso, essas medidas devem ser reportadas de forma periódica, clara e transparente ao público e, a partir da divulgação, especialmente quando essas ações forem usadas como vantagem competitiva para oferta de produtos ou serviços ambientalmente sustentáveis, passam a vincular o divulgador, sujeitando-o a eventual responsabilização administrativa, civil e penal.