Chapa Boulos-Marta vai testar limites da centro-esquerda com evangélicos

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São Paulo entra no ano eleitoral vítima da oposição entre centro-esquerda e extrema direita. De um lado, o deputado federal Guilherme Boulos (PSOL) deve compor chapa com a ex-prefeita Marta Suplicy, que retorna ao PT sob as bênçãos de Lula depois de ter saído do partido em 2015 e votado no ano seguinte a favor do impeachment de Dilma Rousseff. De outro, o prefeito Ricardo Nunes (MDB) busca a reeleição com o apoio de Jair Bolsonaro (PL), sucumbindo, assim, ao polo antidemocrático da política nacional.

Líder nas pesquisas, Boulos pode vir a ser vítima de um erro de cálculo grosseiro do PT, a quem caberia indicar seu vice. Marta deixou grandes marcas na população da periferia, a qual já tende a votar à esquerda. Bilhete Único, corredores de ônibus, Centros Educacionais Unificados (CEUs). As melhores evidências empíricas, porém, apontam que as franjas da cidade de São Paulo mudaram bastante nos últimos 20 anos.

Seguindo uma tendência nacional, a presença de evangélicos aumentou no município entre 2000 — ano em que Marta foi eleita — e 2010, segundo os censos do IBGE realizados em cada um daqueles anos. A maior variação deu-se entre os fiéis de igrejas categorizadas como “Evangélicas não determinadas/Sem vínculo e Outras religiosidades cristãs”— ou seja, denominações com poucos templos, em contraponto a gigantes pentecostais como a Assembleia de Deus e neopentecostais como a Igreja Universal do Reino de Deus.

De aproximadamente 180 mil fiéis (1,7% da população da cidade em 2000), aquelas igrejas passaram a contar com a simpatia de quase 950 mil paulistanos (8,4% dos moradores em 2010), uma variação de mais de 430%. Os dados do Censo de 2022 para religião ainda não estão disponíveis, mas um levantamento do Instituto de Política Econômica Aplicada (Ipea) indica que entre 1998 e 2021 o número de tempos evangélicos em geral – exceto as denominações protestantes históricas (como batista e presbiteriana) – explodiu, atingindo 52% dos estabelecimentos religiosos do país.

Nacionalmente, as eleições de 2018 e 2022 deixaram clara a preferência de evangélicos em geral por candidatos à direita. Para onde vai o rebanho evangélico paulistano, em particular o grupo que não se vincula automaticamente a lideranças do porte de André Valadão, Edir Macedo e Estevam Hernandes? Coloque-se no lugar de uma senhora, mãe de família, que tem como referencial na sua vida comunitária um pastor que ajudou a estruturar seu lar, livrando filhos e eventualmente um marido dos vícios e do crime. Ela vai votar em alguém alinhado a quem prega Deus, família, pátria e liberdade ou num candidato carismático, mas cuja companheira de chapa já defendeu a legalização do aborto e falava abertamente de sexo e suas fundamentais e necessárias nuances na TV Globo do começo dos anos 1980?

O passado de Marta como sexóloga é um prato cheio para aqueles que acreditam que a guerra cultural nos moldes importados dos Estados Unidos é o caminho para conquistar votos daqueles que se dividem entre as interpretações duvidosas da palavra de Deus e as necessidades materiais. Caso sejam bem sucedidos, as chances de reeleição de Nunes aumentam.

Considere ainda um outro personagem típico das periferias: o trabalhador de aplicativos que, graças ao evangelho da distorção do pensamento liberal, enxerga-se como empreendedor e alguém que venceu na vida às margens de um Estado supostamente inchado. De que lado ele vai ficar nessa disputa?

Ao fim de outubro, vamos saber se Lula é aquele articulador que muitos creem ainda ser uma raposa ou se olhou excessivamente pelo retrovisor e faz política com a cabeça de duas décadas atrás. O presidente parece não ter aprendido nada com a vitória apertada sobre Bolsonaro em 2022, não obstante o descalabro social que foi o mandato do capitão reformado.

Lula não está sozinho no desastre que a batalha de São Paulo pode se transformar para as forças realmente comprometidas com a democracia no país. O PSB do vice-presidente Geraldo Alckmin vai lançar a deputada federal Tabata Amaral para concorrer à prefeitura da maior cidade do país. Compreensível considerando que setores da esquerda — os mesmos que criticam o ministro da Fazenda, Fernando Haddad — rotulam-na de neoliberal.

Parece não ter caído a ficha de que, com o bolsonarismo dominando a direita, só há continuidade viável para a democracia brasileira com uma aliança entre o centro e a esquerda, formando, assim, um combo de liberalismo controlado na economia, políticas sociais robustas e equilíbrio na pauta comportamental. Se 2024 for a antessala de 2026 e o troféu principal é a cadeira de prefeito de São Paulo, fiquemos atentos às ameaças autocratizantes que ganham corpo com os erros da frente ampla que, por ora, impediu o enterro da ordem constitucional de 1988.