Cerimônia de posse de Milei vira convescote da ultradireita em Buenos Aires

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No último domingo (10) Javier Milei tomou posse como presidente da Argentina. Considerando a lista de convidados e as referências feitos pelo agora chefe de Estado e governo do nosso principal vizinho, seu governo deve ser motivo de preocupação para aqueles que defendem os valores da democracia. A questão aqui não é apenas explorar a persona de Milei, mas compreender seu lugar — concreto e simbólico — no continente e até mesmo no mundo.

Milei é visto como um populista ultraliberal, muitas vezes situado no campo da extrema direita, devido à sua aproximação ideológica com Donald Trump e Jair Bolsonaro. Até mesmo o estilo “jaqueta surrada, cabelo despenteado” e suas excentricidades — como suas supostas comunicações com seu cachorro morto, Conan — se alinham ao perfil de outros membros dessa “nova direita” e seus ideólogos, notadamente o nacionalista branco Steve Bannon, figura fundamental para entender a ascensão trumpista nos EUA.

Defensor de um ultraliberalismo que promete privatizar setores da saúde e educação da Argentina — dois grandes bastiões da República vizinha — e apesar de expressar sua admiração por Trump e Bolsonaro, Milei até o momento não deu nenhum indicativo de imitar as tendências golpistas de seus aliados.

No entanto, se ainda é cedo para especular sobre a possibilidade de um golpe de Estado por parte de Milei, já é possível considerar que sua posse marca um novo momento na trajetória recente das novas direitas, em particular no hemisfério ocidental. Um sinal disso foi o impacto da presença de Bolsonaro na cerimônia deste domingo. Em baixa após perder as eleições de 2022 e ser impedido de disputar eleições até 2030, o ex-presidente brasileiro aproveitou-se da ausência de Lula na cerimônia e foi tratado como chefe de Estado, com direito a sentar-se ao lado de outros líderes com cargo oficial — como o autocrata Viktor Orbán, primeiro-ministro da Hungria. Ademais, Bolsonaro e sua comitiva reuniram-se com o novo presidente da Argentina e, posteriormente, com Mauricio Macri, presidente argentino entre 2015 e 2019, o qual teve atuação decisiva durante a campanha de Milei no segundo turno e cuja influência garantiu a presença de alguns de seus ex-ministros no governo recém-iniciado.

Embora a situação econômica da Argentina a coloque em uma posição subestimada no cenário político internacional, a eleição de Milei serve de termômetro para captar uma movimentação que se dá em níveis mais profundos. Não somente as alas mais radicais da direita seguem vivas, como é possível perceber uma sutil embora forte tendência de que elas cresçam nos próximos anos, apoiadas, principalmente, em atores políticos que jogam numa zona cinzenta. Esta é composta tanto pelo autoritarismo explícito e golpista, evidentes em governantes como Trump e Bolsonaro, e uma direita radical, que se diz economicamente liberal, mas atua nos limites do jogo democrático, aceitando, a contragosto, as regras que impedem a tirania da maioria sobre minorias.

Nesse sentido, é ilustrativa a figura de José Antonio Kast, outro nome importante da extrema direita latino-americana a marcar presença na posse de Milei. Embora venha ganhando menos destaque nos noticiários, Kast, provável candidato do Partido Republicano nas próximas eleições presidenciais no Chile, é constantemente apontado nos primeiros lugares nas pesquisas de intenção de voto. Além de defender publicamente a ditadura de Augusto Pinochet, nos últimos anos Kast se reuniu com vários políticos de extrema direita, como Bolsonaro e seu filho, Eduardo, além de participar de eventos como a Conferência Anual de Ação Política Conservadora (CPAC), cuja edição de 2022 marcou o encontro de Kast com Milei.

É importante ressaltar que o Chile tem um plebiscito marcado para o próximo dia 17, no qual decidirá a favor ou contra a proposta de uma nova Constituição que substituirá a atual, outorgada durante a ditadura de Augusto Pinochet. Se aprovada, a proposta pode ser um sinalizador à direita para as futuras eleições presidenciais, pois o rascunho de Carta Magna preserva os fundamentos ideológicos da Constituição de Pinochet.

A relação entre a posse de Milei e a articulação da nova direita não deve ser observada apenas no encontro dos chefes de Estado, mas também entre os agentes de primeiro escalão de seus governos. É o caso da reunião entre Patricia Bullrich, nova ministra da Segurança da Argentina, e Gustavo Villatoro, ministro de Justiça e Segurança de El Salvador, ocorrida no dia 9 de dezembro. O post de Bullrich, sinalizando a reunião, foi retuitado por Nayib Bukele, presidente autocrata de El Salvador, que governa o país sob um Estado de exceção que militarizou a segurança e suspendeu garantias cidadãs, tendo prendido mais de 70 mil pessoas até o momento.

Destaca-se também que, embora ausente na posse de Milei, Trump comemorou a eleição do argentino e nas últimas semanas não poupou elogios ao novo mandatário. O ex-presidente americano anunciou o “Projeto 2025”, cujos planos integram não apenas as estratégias para levá-lo à vitória do pleito em 2024, como também uma nova proposta de governo, que inclui o aumento da força do Poder Executivo e a perseguição a seus opositores que ocupem cargos públicos; uma política anti-imigração mais agressiva; e um maior controle do Departamento de Justiça.

No momento, as pesquisas indicam que o ex-presidente dos EUA tem uma pequena vantagem sobre Joe Biden – caso este decida tentar a reeleição. Embora muita coisa ainda possa acontecer até o ano que vem, as intenções de voto por si só já indicam a manutenção da força da extrema direita no imaginário político e nas preferências dos estadunidenses.

Uma hipótese pode ser levantada para explicar a permanência da força dessa nova direita no cenário político: enquanto as esquerdas vêm lutando para vencer eleições, a direita radical e a extrema direita perceberam que o mais importante é mudar a sensibilidade política, principalmente atuando em torno da cultura e dos valores vistos como “tradicionais” pelas populações de seus países.

Enquanto para os argentinos a posse de Milei marca uma mudança nos rumos da economia do país, a ponto de estarem dispostos a suportar o duro choque econômico prometido pelo novo presidente, ela deve ser vista no cenário internacional como um sinal visível de reestruturação da nova direita. Na política, grandes rupturas costumam ser discretamente anunciadas em movimentos secundários e rotineiros. A posse de Milei, portanto, talvez seja um momento de virada infeliz para os que, à esquerda e à direita, professam valores democráticos.