Cem anos de Interpol: desafios da cooperação internacional em justiça criminal

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De acordo com literatura criminológica, questões envolvendo a transnacionalidade delitiva existem desde a Antiguidade, sendo o contrabando uma das profissões mais antigas do mundo. McDonald (2014), por exemplo, menciona que acordos entre estados para a extradição de fugitivos foram registrados já no antigo Egito. Com fronteiras cada vez mais porosas, o século XXI testemunhou um crescimento das instituições de cooperação internacional em matéria de aplicação da lei e justiça criminal por parte dos estados-nação. Isso marca uma diferença notável em relação ao início do século XIX, quando a cooperação internacional era praticamente inexistente e a suposição predominante era de que os tribunais de um país não aplicavam as leis de outro país.

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McDonald (2014) observou essa proliferação de instituições de cooperação internacional e regional no campo da aplicação da lei e da justiça (v.g., Interpol, Europol, Eurojust, World Customs Organization; G7’s Experts on Transnational Crime; ASEAN Chiefs of Police). Além disso, muitos países estão designando oficiais de polícia em embaixadas estrangeiras, e organizando forças-tarefa conjuntas internacionais compostas por policiais e promotores. Com efeito, ocorreram mudanças significativas na forma como a cooperação legal em questões criminais entre estados é conduzida. O antigo sistema de “cartas rogatórias” (cartas diplomáticas formais de solicitação entre estados) para obter assistência legal de outro estado está sendo substituído por acordos que permitem a comunicação direta entre as agências de aplicação da lei.

Nesse contexto de crescente cooperação internacional e regional, entre agências de aplicação da lei e justiça, a International Criminal Police Organization (Organização Internacional de Polícia Criminal, mais conhecida como Interpol, comemorou seu centenário no último dia 7 de setembro. Fundada em 1923, como Comissão Internacional de Polícia Criminal, a Interpol é uma organização que facilita a cooperação policial global, na medida em que centraliza informações, permitindo a troca de dados entre os países membros. No entanto, Igbinovia (1987) enfatiza que a Interpol não é uma força policial por si só, e não tem o poder de violar a soberania de uma nação. Ela atua como uma facilitadora na troca de informações e na coordenação de esforços entre as autoridades policiais dos países membros.

Atualmente com sede em Lyon, França, a Interpol é financiada em grande medida pelas contribuições dos 192 países membros[i], tendo como missão a repressão a uma ampla gama de crimes transnacionais (v.g., terrorismo, crimes cibernéticos, crime organizado, tráfico de drogas, corrupção entre outros). A organização opera por meio de Escritórios Centrais Nacionais em cada país membro, compostos pelos respectivos agentes públicos locais. O Brasil é membro da Interpol, desde 6 de outubro de 1986, sendo o respectivo escritório composto por policiais federais, que desempenham suas funções de modo a centralizar dados criminais, coordenar operações policiais solicitadas por outros membros e repassar solicitações de informações.

Já o Secretariado-Geral é responsável pelo processamento e circulação de informações, além da manutenção de registros criminais, incluindo índices nominais, digitais e fotográficos. A Interpol também implementou um sistema de telecomunicações, procedimentos pré-extradição razoavelmente uniformes e um sistema de oficiais de ligação para trabalhar mais de perto em casos de controle internacional de drogas (Bossard, 1980).

Além disso, a Interpol atua como um fórum para discussões em campos técnicos, legais e teóricos, realizando simpósios e fornecendo bibliografias e materiais de referência para forças policiais, pesquisadores e instituições. A organização prepara relatórios sobre assuntos técnicos e legais e compila documentos de referência e resumos para distribuição aos Escritórios Centrais Nacionais. Suas prestigiosas publicações oficiais incluem a International Criminal Police Review e uma série de International Crime Statistics.

Do ponto de vista criminológico, os dados criminais da Interpol vêm deixando um grande legado, especialmente no contexto da criminologia transnacional. Barberet (2009) destaca que os dados criminais da Interpol sempre foram vantajosos em comparação a outras fontes de dados, e têm sido amplamente utilizados por cientistas criminais. No entanto, os estudos desses dados também apresentam desafios.

Os dados da Interpol se constituem em uma das mais importantes séries históricas de todo mundo, uma vez que são publicados periodicamente desde 1950. No entanto, segundo Barberet (2009) essa transparência contribuiu ironicamente para o fim da coleta desses dados. A politização do crime resultou na relutância de países em expor seus níveis de criminalidade. Além disso, como a participação no programa de estatísticas criminais é voluntária, a proporção de estados membros que respondem às solicitações de dados criminais diminuiu consideravelmente nos últimos anos.

Apesar dos desafios enfrentados, a Interpol continua sendo uma fonte de dados para pesquisadores que abrange mais países do que qualquer outra, representando nações com variados níveis de desenvolvimento socioeconômico. Contudo, Barberet (2009) destaca uma questão crítica: poucas mudanças foram implementadas na série de relatórios da Interpol, o que gerou críticas de que problemas relacionados à definição e à divulgação de dados em nível nacional estão sendo obscurecidos de forma enganosa.

Exige-se liderança no estímulo à coleta contínua de dados criminais transnacionais por organizações intergovernamentais. Simultaneamente, os próprios países podem contribuir com informações nacionais para conjuntos de dados de alcance internacional. Esses conjuntos de dados devem englobar pesquisas de vitimização baseadas no autorrelato, além dos dados criminais oficiais. Com efeito, as Nações Unidas podem ser apontadas como uma escolha lógica para liderar esse esforço de colaboração e coordenação.

As famosas difusões da Interpol representam um conjunto de alertas estratégicos empregados pela organização internacional para auxiliar as autoridades de diversos países na abordagem de questões relacionadas a crimes e a localização de indivíduos procurados. Cada categoria de difusão é identificada por uma cor específica e desempenha um papel singular na comunicação de informações cruciais em casos diversos:

A difusão vermelha, ou red notice, é a mais proeminente e amplamente reconhecida. Ela é utilizada para facilitar a prisão de pessoas em território estrangeiro que são alvo de mandados de prisão internacionais, bem como para indivíduos buscados em outros países. Essa difusão alerta agências policiais em todo o mundo sobre a busca pelo suspeito.
A difusão amarela, ou yellow notice, tem como finalidade localizar pessoas desaparecidas e oferecer assistência na identificação de indivíduos que não podem ser identificados de forma independente.
A difusão azul, ou blue notice, tem como propósito principal a coleta de informações relacionadas à identidade da pessoa, sua localização e atividades vinculadas a crimes.
A difusão negra, ou black notice, é usada para adquirir informações sobre corpos não identificados, auxiliando assim em investigações criminais.
A difusão verde, ou green notice, atua fornecendo alertas e informações de inteligência sobre pessoas que cometeram crimes e possuem tendência a repeti-los em diferentes nações.
A difusão laranja, ou orange notice, destina-se a alertar sobre riscos iminentes à segurança pública em eventos específicos.
A difusão roxa, ou purple notice, busca fornecer informações detalhadas sobre métodos, modus operandi e equipamento utilizado por criminosos, auxiliando na prevenção de atividades ilícitas.
Por fim, a difusão branca, ou white notice, é empregada na localização de bens culturais, contribuindo para a preservação do patrimônio cultural global.

A respeito da difusão vermelha, a ser aplicada no exterior, a Instrução Normativa nº 1, de 10 de fevereiro de 2010, emitida pela Corregedoria Nacional de Justiça, estabelece diretrizes para os juízes criminais brasileiros. Segundo essa norma, quando um juiz, com base em seu próprio conhecimento ou em informações suspeitas, referências, indicações ou declarações fornecidas por qualquer interessado ou agente público, tiver ciência de que a pessoa a ser presa está fora do país, planeja deixar o território nacional ou possivelmente está no exterior, ele deve encaminhar o mandado de prisão ao Superintendente Regional da Polícia Federal (SR/DPF) de seu estado correspondente[ii]. O objetivo desse procedimento é garantir a inclusão da pessoa procurada no sistema informático da Interpol como um alerta vermelho (red notice).

Nas últimas décadas houve um crescimento significativo das atividades policiais que transcendem as fronteiras nacionais devido ao surgimento de ameaças transnacionais, como crime organizado e terrorismo internacional. A Interpol é uma das principais organizações, que facilitam a cooperação policial transnacional, e o compartilhamento de informações entre agências policiais nacionais. No entanto, regimes autoritários têm abusado do sistema de red notice, da Interpol, para perseguir seus críticos no exterior.

A literatura da criminologia internacional examinou como mecanismos de policiamento transnacional, a exemplo da Interpol, podem reproduzir ações autoritárias em contextos democráticos, minando os direitos e liberdades das pessoas visadas por regimes não democráticos (San, 2022). Casos envolvendo as polícias da Turquia e da Rússia são exemplares, para demonstrar os possíveis motivos das instituições de aplicação da lei de estados democráticos em executar pedidos red notice, feitos por regimes autoritários. Em particular, a Rússia emitiu muitos avisos vermelhos, e a Turquia tentou carregar milhares de nomes no sistema da Interpol, após uma tentativa de golpe militar.

De acordo com San (2022) a cooperação policial entre estados democráticos e autoritários ocorre por três motivos: (i) uma despolitização aspirada do policiamento internacional, que facilita a cooperação entre estados com perspectivas nacionais e ideológicas diferentes; (ii) uma cultura ocupacional que incentiva o apoio profissional e a solidariedade entre agentes de polícia que transcende rivalidades nacionais; e (iii) a cooperação estatal contra ameaças decorrentes do planejamento e realização de crimes internacionais.

De fato, as democracias ocidentais muitas vezes cooperam com esses pedidos questionáveis de avisos vermelhos de regimes autoritários por várias razões. É possível considerar que ocorreu uma mudança histórica em direção à despolitização na cooperação internacional em policiamento, impulsionada pela burocratização e aumento da profissionalização das organizações policiais. Isso levou à criação de instrumentos de cooperação policial que podem ser explorados por regimes que usam a polícia para fins políticos. Além disso, existe uma subcultura transnacional de policiamento que encoraja organizações policiais a se acomodarem umas às outras, independentemente do regime que emite os pedidos de cooperação. Por último, fatores políticos podem incentivar as agências de polícia ocidentais a aceitarem avisos vermelhos de regimes autoritários, devido à necessidade de responder às ameaças à segurança interna causadas por crimes internacionais, como terrorismo e crime organizado.

Embora a Interpol seja uma organização importante para a repressão ao crime transnacional, ela é vulnerável a casos de uso indevido por certos estados, que a exploram para perseguir e rastrear dissidentes políticos ou membros da mídia fora de suas fronteiras (Calcara, 2021). Isso levanta questões sobre como países não democráticos podem influenciar e expandir seu alcance, por meio da participação em organizações internacionais como a Interpol.

As denominadas Rules on the Processing of Data (RPD) permitem que a organização intervenha quando as forças policiais descumprem o quadro legal que rege o sistema de cooperação da Interpol. No entanto, Calcara (2021) observa que a Interpol tende a evitar excluir países da cooperação, mesmo quando ocorrem violações dos direitos humanos. Isso ocorre porque a organização busca conectar o maior número possível de forças policiais de diferentes estados para evitar a proliferação de refúgios criminosos em certas regiões, sem considerar adequadamente os sistemas de justiça criminal e formas de governo dos países envolvidos.

Essa situação cria uma dicotomia entre segurança e justiça processual em nível global e levanta questões sobre se a Interpol tem legitimidade para equilibrar esses interesses e, em caso afirmativo, com base em que fundamento e até que ponto. Nos termos propostos por Calcara (2021), essas questões são vistas como pertencentes ao “domínio do constitucionalismo global”.

A expansão das atividades policiais além das fronteiras nacionais e o crescente compartilhamento de informações são essenciais para enfrentar as ameaças do crime transnacional. No entanto, é fundamental que essa cooperação respeite os direitos humanos e os princípios democráticos. A Interpol e outras organizações internacionais de aplicação da lei enfrentam o desafio de equilibrar a segurança global com a justiça processual e devem continuar a aprimorar seus mecanismos de garantia de direitos.

O domínio do constitucionalismo global emerge como uma área crítica de reflexão, onde questões de legitimidade e equilíbrio de interesses são debatidas. Portanto, o futuro requer liderança na promoção da coleta contínua de dados criminais transnacionais por organizações intergovernamentais e um compromisso contínuo com a proteção dos direitos humanos em todos os esforços de cooperação internacional em aplicação da lei e justiça criminal. Essa é a chave para enfrentar as complexas ameaças da criminalidade globalizada e preservar os princípios fundamentais da justiça e dos direitos individuais em um mundo cada vez mais interconectado.

 

Referências:

Barberet, Rosemary. (2009). The Legacy of INTERPOL Crime Data to Cross‐National Criminology. International Journal of Comparative and Applied Criminal Justice, 33, 193-210. https://doi.org/10.1080/01924036.2009.9678805.

Bossard, A. (1980). ICPO-INTERPOL (International Criminal Police Organization) and international police co-operation. Police Journal, 53(2), 124-127.

Calcara, G. (2021). Balancing International Police Cooperation: INTERPOL and the Undesirable Trade-off Between Rights of Individuals and Global Security. Liverpool Law Ver, 42, 111–142. https://doi.org/10.1007/s10991-020-09266-9.

Igbinovia, P. E. (1987). Interpol and International Police Cooperation. Indian Journal of Criminology, 15(1), 25-36.

McDonald, W.F.. (2014). The longer arm of the law: The growth and limits of international law enforcement and criminal justice cooperation. 10.1017/CCO9780511762116.061.

San, S. (2022). Transnational policing between national political regimes and human rights norms: The case of the Interpol Red Notice system. Theoretical Criminology, 26(4), 601–619. https://doi.org/10.1177/13624806221105280.

[i] Atualmente, Coréia do Norte, Palau e Tuvalu são os únicos países não membros da Interpol.

[ii] Art. 2°, da Instrução Normativa Nº 1 de 10/02/2010: “O mandado de prisão ou o instrumento judicial com esse efeito, contendo a indicação referida no artigo anterior, será imediatamente encaminhado, por cópia autenticada, ao Superintendente Regional da Policia Federal – SR/DPF no respectivo estado, com vista à difusão vermelha”.