Caso Ramagem: defesa da impunidade, do mandato ou da instituição?

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A Procuradoria-Geral da República (PGR) ofereceu denúncia contra diversos réus do denominado núcleo 1 dos atos antidemocráticos, em razão dos fatos iniciados em 2021 e culminados em 8 de janeiro de 2023, dentre eles o deputado federal Alexandre Ramagem (PL-RJ), “pelos crimes de organização criminosa armada, tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito, golpe de Estado, dano qualificado pela violência e grave ameaça, contra o patrimônio da União”, na PET 12.100 que, por sua vez, se transformou na AP 2.668, após o recebimento da denúncia, ocorrido em 26 de março.

Em razão disso, a Câmara dos Deputados recebeu pedido do PL, fundado no artigo 53, § 3º, da CF/88, para “sustar o andamento da ação, tal como expressamente previsto na norma constitucional mencionada”, nos termos de seu requerimento (Sustação de Andamento de Ação Penal [SAP] 1/2025), vindo tal pedido a ser aprovado pelo plenário da Câmara por 315 votos a 143 (e 4 abstenções).

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Ao apreciar o tema, a Turma do STF realizou distinguishing em questão de ordem, ou seja, discutiu se poderia haver suspensão integral da ação penal, bem como se seria aplicável a todos os crimes e/ou a todos os corréus, chegando a uma resposta parcialmente positiva. Sustou parcialmente a Ação Penal 2668, em relação aos crimes praticados após a diplomação, mantendo a tramitação da ação penal contra o mesmo réu em relação aos demais crimes, sem aplicar a suspensão aos outros réus.

Após os fatos, o plenário do STF foi acionado, pois dois partidos políticos (ADPF 1225, apresentada por PDT e Rede, e a ADPF 1226, pelo PSOL), questionaram a aplicação da resolução da Câmara, defendendo sua inconstitucionalidade, enquanto a Mesa Diretora da Câmara apresentou a ADPF 1227, questionando a decisão da 2ª Turma do STF, buscando suspender a totalidade da AP 2668. 

No centro do debate está o artigo 53, § 3º, da CF/88, que permite a Casa parlamentar suspender a tramitação de ação penal contra o parlamentar: “recebida a denúncia contra o Senador ou Deputado, por crime ocorrido após a diplomação, o Supremo Tribunal Federal dará ciência à Casa respectiva, que, por iniciativa de partido político nela representado e pelo voto da maioria de seus membros, poderá, até a decisão final, sustar o andamento da ação”.

A referida redação foi alterado pela EC 35/2001 e a redação anterior possuía lógica inversa, ou seja, ao invés de permitir a sustação da ação penal já iniciada, e com denúncia recebida, exigia autorização da Casa legislativa para o início da respectiva ação penal.

Sobre o tema, duas questões costumam ser esquecidas. Primeiro, que a EC 35/2001 teve origem na PEC 2/1995 do Senado (recebida na Câmara como PEC 610/1998), a partir de proposição do senador Ronaldo Cunha Lima, que acrescentava uma importante complementação, qual seja: “nos crimes comuns o processo será instaurado independente de licença prévia até a conclusão da instrução criminal, quando os autos serão remetidos à Casa respectiva para autorizar o julgamento, podendo o acusado renunciar a imunidade”.

Em sua justificativa, a referida proposição recordava a “defesa do parlamento enquanto instituição”, ao tempo em que referia-se ao antigo artigo 20 da Constituição de 1891, que permitia ao deputado renunciar à imunidade e optar pelo julgamento imediato

A segunda questão comumente esquecida, a propósito, inclusive pela própria PEC 2/1995 que deu origem à EC/35/2001, é que este tema foi debatido pela Assembleia Nacional Constituinte em 1988, cuja memória retinha o famoso episódio do deputado federal Márcio Moreira Alves, que havia proferido 5 discursos em 1968 contra a violência praticada por agentes da ditadura civil-militar, em especial quando os militares invadiram a Universidade de Brasília, agredindo estudantes e destruindo laboratórios de pesquisa.

Num dos discursos, o deputado Márcio Moreira Alves fez referência a comédia Lisistrata ou a greve do sexo, de Aristófanes, debochando dos ditadores e enfurecendo os militares, o que daria origem ao procedimento de perda de seu mandado, Auto 60.787/68 perante o Ministério da Justiça, originando a Representação 786 perante o Supremo Tribunal Federal, relatada pelo ministro Aliomar Baleeiro, uma vez que a Constituição de 1967 exigia deferimento de licença prévia por parte da Casa legislativa para processo contra parlamentar, nos termos dos artigos 34, §3º e 151 da Carta de 67: “quando se tratar de titular de mandato eletivo federal, o processo dependerá de licença da respectiva Câmara”.

A Câmara dos Deputados, no entanto, negou a licença, após discurso do deputado Moreira Alves, enviando a comunicação ao STF, quando o ministro relator Aliomar Baleeiro procedeu ao arquivamento da representação, registrando em seu despacho que “como é já histórico, foi negada a licença a 12/12/68, resultando do incidente o Ato Institucional nº 5, de 13/12/1968, baseado no qual foram cassados pelo Executivo os direitos daquele parlamentar”, e ao final, determinou o arquivamento dos autos.

Sequencialmente adveio a EC 1/1969, que extinguiu o regime de licença prévia da casa legislativa, o que somente seria alterado a partir da EC 11/1978 e depois pela EC 22/1982.

Pois bem, o que parece mais adequado para a questão como um todo é que o STF se debruce, não sobre o caso concreto, mas a partir de um amplo espectro sobre a própria EC 35/2001, no delicado mister que sempre será o exercício do controle de constitucionalidade de emendas constitucionais, realizando-se, como parece mais adequado, uma interpretação da redação conferida ao artigo 53, §3º (pela EC 35/2001) conforme à CF/88.

Se por um lado o regime das “licenças prévias” parece anacrônico, é preciso recordar que ele representa importante salvaguarda constitucional no ideário dos freios e contrapesos, e não podemos esquecer que no caso de possível cometimento de crime comum pelo presidente da República, o artigo 86 da Constituição Federal estabelece a necessidade de autorização prévia de 2/3 da Câmara dos Deputados para que o chefe de Estado seja julgado pelo STF, licença esta que pode não ser deferida, mas que é parte do ônus político do modelo constitucional vivenciado. 

Imaginemos, por um instante, que a referida lógica houvesse sido invertida, com o mesmo espírito da EC 35/2001, permitindo o julgamento sem licença, mas admitindo que a Câmara pudesse sustar a ação.

Seria um caminho aberto para perturbação da ordem político-democrática, ao tempo em que simplesmente implementar a extinção de qualquer tipo de controle parlamentar seria entregar os destinos políticos da nação aos desígnios políticos de magistrados, escondidos por supostas tecnicalidades que nem sempre são reais, com o problema da ausência de legitimidade decorrente da pia batismal do voto, cujo credo está cristalizado na premissa constitucional de que “todo poder emana do povo”. Derrubada a premissa, derruído estará todo o edifício constitucional. 

Com efeito, atendendo ao postulado da proporcionalidade e do Estado Constitucional e Democrático de Direito, parece adequado que o Supremo Tribunal Federal interprete o tema da imunidade, que valeria para os poderes Legislativo e Executivo, com reconhecimento de gradações que já estão na própria Constituição Federal, vale dizer, tratando-se de atos que sejam insuportáveis pela própria Constituição, nestes casos específicos, seja reconhecida a desnecessidade de licença prévia e/ou seja reconhecida a impossibilidade de sustação dos atos de responsabilização.

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Ou seja, como é caso do artigo 5º, incisos XLIII e XLIV (“[atos] insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos” e “prática de atos contra a ordem constitucional e o Estado Democrático”), ou o artigo 12, §4º, I (impedimento de nacionalidade brasileira de quem tiver atentado contra a ordem constitucional e o Estado Democrático).

Para os demais atos, a Constituição aceitaria qualquer uma das hipóteses: licença prévia ou sustação posterior, prestigiando a imunidade processual, mas sem permitir a quebra da Constituição, pois mandatos e instituições só existem, de fato e de direito, em regimes democráticos.

Não é o caso Ramagem que está em jogo, nem seu mandato ou a instituição a que pertence, mas sim a sobrevivência do Estado Constitucional e Democrático de Direito, cuja existência não se pode creditar nem ao guarda da esquina e nem ao casuísmo institucional de alguns, mas que pode por eles ser fragilizado.

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