Caso Marielle Franco: até onde o Estado te vigia? – Parte 2

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No filme Batman: O Cavaleiro das Trevas (2008), tal “herói” quebra o sigilo de milhões de pessoas e usa seus celulares como um sonar para descobrir onde está o vilão Coringa.

Descontente com a múltipla quebra de sigilo, Lucius Fox, o assistente na área tecnológica das empresas Wayne interpretado por Morgan Freeman, pede demissão alegando não aceitar tal grave violação coletiva de intimidade. Para ele, a busca pelo Coringa não pode justificar a violação de direitos à intimidade de maneira tão indiscriminada.

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Deixando a ficção (um pouco) de lado, na sessão plenária do dia 23/04/2025 os ministros do Supremo Tribunal Federal debateram como esse instrumento era usado em outros países, chegando a afirmar que “o Brasil será o único país do mundo em que não se admitirá tal quebra de sigilo” (fala do ministro Alexandre de Moraes). Uma superficial pesquisa de legislação e jurisprudência de vários países, porém, demonstra o desacerto de tal conclusão.

Países como Alemanha, Espanha e outros membros da União Europeia em geral não autorizam esse tipo de medida ou a permitem apenas em circunstâncias extremamente delimitadas (v.g., emergência grave e situações excepcionais de terrorismo).

Nos Estados Unidos a tradição é de não autorizar, mas autoridades vêm utilizando mandados reversos. Algumas cortes os têm validado, enquanto outras os rechaçam, de modo que ainda não é uma prática claramente permitida no plano nacional[1].

Reino Unido (através do Investigatory Powers Act – IPA, de 2016), Austrália (Identify & Disrupt Act, de 2021), China (Lei de Segurança Nacional, de 2015 e a Lei de Cibersegurança, de 2016) e Rússia (Lei Yarovaya) – estes dois últimos, países de viés autoritário – claramente autorizam a quebra de sigilo de pessoas indeterminadas, por meio de leis explícitas ou práticas institucionalizadas.

As tendências advindas da pesquisa, portanto, são: democracias consolidadas de civil law tendem a não permitir. Democracias de common law exibem respostas variadas. Já regimes híbridos ou autoritários em sua maioria permitem ou praticam tais quebras de sigilo amplas. Dentro de tais grupos, onde ficará o Brasil?

A sana distópica: investigações tecnológicas do fim da história[2]

Para não matar de ansiedade o esforçado leitor que chegou até aqui, a frase sobre o fim do sigilo fiscal e bancário mencionada no início da primeira parte deste artigo – que se esperaria ouvir do algoz do protagonista Winston Smith em 1984 – é de um ministro do STF[3].

Com tantos avanços tecnológicos, tal corte mais uma vez definirá o que vale em termos de relativização de direitos fundamentais, especialmente quanto a intervenção na autodeterminação informacional dos brasileiros.

Os critérios da proporcionalidade, temporalidade (dias, meses, anos?), espacialidade (quarteirões, bairros, cidades?), e o critério da fundada suspeita (sugerido pelo ministro André Mendonça) apontados até agora nas teses fixadas pelos ministros, possuem vagueza semântica para serem aplicados no processo penal.

Ademais, quantas vezes um Estado policialesco não foi justificado pelo fato de que os bons nada têm a esconder. Não existem mais segredos lícitos, como doenças (câncer), sigilo profissional ou registros íntimos? Isso sem falar que as clássicas categorias de privacidade não foram pensadas para esse mundo tecnológico. Alguma readaptação, portanto, é necessária.

É invariável pensar que caminhamos firmemente para o modelo “casa de vidro”.

Ao menos três julgados (dois nos EUA e um na Alemanha) mostram que dados colhidos pela Alexa (assistente virtual controlada por voz da empresa Amazon) foram solicitados pela acusação e aceitos como provas em processos criminais: (i) State of Florida vs. Adam Reechard Crespo: 2019; (ii) State of New Hampshire vs. Timothy Verrill: 2017; (iii) Regensburg, Alemanha: 2019

Não é necessária muita criatividade para pensarmos que as cenas dos próximos capítulos permitirão que o Estado:

  • Instale um sistema de escuta em seu celular (malware) para ouvir tudo que é dito fora do celular e investigar crimes?
  • Quebre o sigilo de todas as pessoas em determinado bairro para descobrir quais estavam com o batimento cardíaco mais alto (registrado pelos smartwatches que medem tal frequência) e, assim, apontar as pessoas com maior batimento cardíaco como suspeitas do crime por ele ter ocorrido no mesmo momento da aceleração do coração?
  • Obtenha o padrão de dilatação de sua pupila para compreensão de reações involuntárias de seu corpo[4] e, com isso, diminuir a credibilidade de seu depoimento através de tais critérios?

A criatividade é tão livre quando a devassa. Georreferenciamento e dados armazenados nas nuvens certamente são trincheiras já ultrapassadas. A continuar nesta toada, Orwell e Black Mirror serão obras de limitada criatividade.

A régua está na fábula do remédio que se torna um veneno: ao tentar dar o máximo de efetividade possível a uma investigação, estaremos privando cidadãos de uma vida democrática em um Estado de Direito?

Bom, se a máquina capitalista já devassa seu inconsciente com o objetivo de aumentar seu consumo (escuta ativa que envia propagandas, análise do quantitativo de tempo em que os olhos param em cada post), qual é a chance de não se usar das mesmas técnicas para investigar crimes[5]?

Talvez a única chance seja relembrar que “os fins não justificam os meios”. Os ministros devem visualizar o perigo da liberação da medida investigativa em análise considerando o potencial nocivo, cuja regulação do uso, prazo de custódia dos dados e outros aspectos sequer está regulado.

Vale destacar que atualmente inúmeras investigações em âmbito nacional têm utilizado a aludida técnica de maneira indiscriminada ante a falta de lei específica, sendo, portanto, fácil perceber o impacto do julgamento para a sociedade.

Assim, uma devassa online, coletiva, só poderá ocorrer, em o poder legislativo editando a devida lei específica (de alteração ao CPP), para situações excepcionalíssimas, relacionadas a tipos penais graves (ex. terrorismo, pedofilia online etc.), e como proposta no plano procedimental, determinada por mais de um julgador (em analogia ao art. 1ª, §2º, da Lei 12.694/12 e com o objetivo de garantir simetria entre a colegialidade de quem decide e a coletividade de quem tem o sigilo quebrado), garantindo o fair notice posterior (comunicação, ainda que posterior, a quem teve o sigilo violado), com participação da Defensoria Pública como Instituição na defesa dos afetados, entre outros aspectos[6].

Por fim, mister assinalar que se de um lado não interessa a ninguém que o Estado não desenvolva mecanismos frente a uma criminalidade cada vez mais tecnológica, por outro lado, igualmente não é menos importante que em homenagem ao “combate à criminalidade” não se viole direitos tão relevantes para o corpo social como o direito à privacidade e à proteção de dados, ou, em uma visão mais ampliada, a própria democracia.


[1] Em 2024, a Corte de Apelações do 5º Circuito (região sul, incluindo Texas) considerou inconstitucional um mandado de geofence, entendendo tratar-se de mandado geral proibido pela 4ª Emenda. Já o 4º Circuito (região sudeste) chegou ao resultado oposto: em abril de 2025, julgando o caso US v. Chatrie (roubo a banco descoberto via geofence), o plenário da corte confirmou a validade do mandado e a possibilidade de usar as provas obtidas. Nos tribunais estaduais, também há posições diferentes. Em 2023, a Suprema Corte do Estado do Colorado foi a primeira corte superior estadual a analisar um keyword warrant, no caso People v. Seymour (incêndio criminoso sem suspeitos). Por voto apertado, confirmou-se a legalidade da ordem que requisitou ao Google os registros de quem pesquisou o endereço da casa incendiada, mas a fundamentação baseou-se na boa-fé da polícia. Por fim, em Nova York, um projeto de lei (Reverse Location & Keyword Search Prohibition Act) pretende banir mandados de geofence e palavra-chave.

[2] A expressão fatalista foi cunhada por Francis Fukuyama em seu artigo de 1989, publicado na revista The National Interest, e posteriormente expandida em seu livro O Fim da História e o Último Homem (1992).

[3] Fala do Min. Andre Mendonça durante a sessão de 23/04/25, aos 38m35s, disponível no https://www.youtube.com/watch?v=W9sJKJUlejs, acesso em 03/05/25.

[4] Quem não se lembra da panaceia do polígrafo e todas as críticas posteriores a tal metodologia?

[5] Este, inclusive, é o argumento do Min. Flavio Dino: se as bigtechs já tem nossos dados, porque não podemos dá-los à polícia?

[6] SILVA NETO, Arthur Corrêa da. A Defensoria Pública do Brasil e a defesa do direito fundamental à proteção de dados pessoais no âmbito da segurança pública e persecução penal, In: SANTOS, Ednan Galvão, org. Estudos Conimbricenses de Direito Público: Volume 2. Porto Alegre: Editora Fi, 2022.