“Você não pode protegê-los para sempre”, refletiu o interlocutor. “Eu apoiaria! Não precisamos ter sigilo bancário e fiscal”, arrematou um dos participantes. Fora de contexto, duvido que o leitor consiga distinguir qual dessas frases foi dita no plenário da mais alta corte de um país e qual advém da série de ficção distópica Black Mirror.
Paira nos ares do Supremo Tribunal Federal (STF) essencial discussão sobre os limites da investigação criminal através do uso de tecnologia em contrapartida à potencial violação de direitos fundamentais como efeito colateral aceitável para garantir a efetividade da busca probatória no âmbito da persecução penal.
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Como uma daquelas ironias do destino em que a vida mimetiza a arte, o caso foi distribuído sob a numeração “1.148” (tema 1.148), embaralhando os números e alterando apenas o número “9” da famosa obra intitulada “1984”, com temática muito semelhante.
Trata-se do RE 1.301.250, que discute se é constitucional a quebra de sigilo de dados telemáticos de pessoas ainda não identificadas, no contexto de investigações criminais. O caso origina-se da apuração do assassinato de Marielle Franco, quando o Ministério Público do Rio de Janeiro pediu acesso, via Google, a dados de quem buscou informações específicas sobre ela ou o local onde foi morta, entre os dias 10 e 14 de março de 2018.
O Google recorreu contra essa decisão, mas teve os pedidos negados tanto no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro quanto no Superior Tribunal de Justiça. No STF, a ministra Rosa Weber votou para anular a decisão que autorizou a medida, afirmando que ordens genéricas de quebra de sigilo violam os direitos fundamentais à privacidade e proteção de dados, não possuindo o Marco Civil da Internet densidade normativa para abrigar a medida requerida.
Continuando o julgamento, os ministros Alexandre de Moraes e Cristiano Zanin divergiram da relatora, sustentando que os dados dizem respeito a pessoas determináveis[1] e que a medida é essencial para investigações graves, como a prática de pedofilia online, aceitando-a.
Na mais recente sessão plenária que se discutiu o tema (23/04/2025), o ministro André Mendonça trouxe posição intermediária, também anulando a decisão de primeira instância, mas aceitando a quebra de sigilo com base em outros requisitos. Foi então feito novo pedido de vista, agora pelo ministro Gilmar Mendes.
Técnica de investigação high tech e lei analógica
O STF já se deparou com situação similar à que enfrenta agora no âmbito do RE 1.301.250 quando teve que analisar se o art. 57, II, “e” do Código de Telecomunicações era a lei que o art. 5⁰, inc. XII, da Constituição Federal de 1988 exigia para fins da quebra da inviolabilidade das comunicações telefônicas.
Naquela oportunidade, no leading case HC 74.586-5, julgado pela 2ª Turma do STF, sob a relatoria do ministro Marco Aurélio, se reconheceu a não recepção do artigo 57, II, “e”, da Lei 4.117/1962 (Código de Telecomunicações), proibindo o deferimento de interceptações telefônicas por esta via, bem como se entendeu que a disposição constitucional mencionada não era autoaplicável.
No aludido habeas corpus a Suprema Corte, por considerar que a interceptação telefônica se constituiu como prova ilícita, tal como as demais provas que dela derivaram face à inexistência de lei para dar suporte à decisão judicial, concedeu a ordem para fulminar desde o início a ação penal, declarando a insubsistência do flagrante realizado e demais atos ocorridos[2].
Com efeito, mutatis mutandis, entende-se deva ser aplicada a mesma ratio decidendi daquele julgamento paradigmático no processo do caso Marielle Franco, vez que tal como no cenário que se realizou no passado, fazendo um paralelo, os artigos 7⁰, 10, 22 e 23 da Lei 12.965/2014 (Marco Civil da Internet) não são disposições que preservam o direito à proteção de dados, sendo este direito (inclusive, após a Emenda Constitucional 115/2022), inserido autonomamente ao direito à privacidade no inciso LXXIX, pelo qual “é assegurado, nos termos da lei, o direito à proteção dos dados pessoais, inclusive nos meios digitais”.
A disposição do código de telecomunicações em tempos pretéritos não foi considerada como a lei que a Constituição exigia em razão de não estabelecer hipóteses de cabimento, procedimento, prazos, entre outros aspectos fundamentais à garantia do direito à privacidade.
Nesse aspecto, quando se observa a redação da Lei 9.296/1996, verifica-se claros limites materiais e procedimentais para a intervenção no direito constitucionalmente protegido, sendo que o alcance e o grau interventivo das medidas investigativas de interceptação telefônica e de decisão judicial que determina o fornecimento de endereços de IP’s e Devices ID’s de usuários indeterminados, que pesquisaram certas expressões em provedores de aplicação, são incomparáveis em desfavor da segunda medida que é absolutamente mais invasiva, pois atinge um número inquantificável de pessoas.
Nesse cenário, difícil não detectar o desbordo e o extravasamento do teor e conteúdo das disposições legais do Marco Civil da Internet, que estão claramente sendo reescritas pela decisão judicial acima indicada. Utilizando a metáfora de Eros Roberto Grau, está sendo criada uma Vitória de Samotrácia, quando foi encomendada ao escultor uma Vênus de Milo[3].
Nessa linha, indaga-se: o Marco Civil da Internet, editado em 2014, foi pensado para ser base legal ao deferimento por decisão judicial de fornecimento de endereços de IP’s e Devices ID’s de usuários indeterminados, que pesquisaram certas expressões em provedores de aplicação? Invariavelmente a resposta é negativa.
Por outro lado, pode o STF utilizar um texto de lei que não foi concebido para um propósito e aproveitá-lo elaborando hipóteses que claramente a lei não previu na área criminal? Novamente a resposta é não. Ao Estado-juiz cabe realizar interpretação dos diplomas legislativos, guardando relação de conexão com o significado das palavras constantes no dispositivo objeto de aplicação, portanto, dentro da moldura legal.
Em verdade, os contornos e os limites de intervenção no direito à proteção de dados, direito precipuamente atingido no contexto das medidas investigativas efetivadas, quando se pensa na sua aplicação nas searas da segurança pública e persecução penal, de forma explícita até o presente momento há ocorrência de vácuo legislativo, pois o art. 4º, III, “a” e “d”, da Lei 13.709/2018 (Lei Geral de Proteção de Dados) anota que a LGPD não se aplica aquelas temáticas. Não obstante, há anteprojeto elaborado por comissão de juristas plenamente apto a ser debatido no Congresso Nacional e posteriormente votado.
Esse anteprojeto tem a pretensão de ser uma lei quadro, portanto, diretiva em relação a leis específicas necessárias que devem surgir regulando temáticas próprias como a que ora está se debatendo.
Não obstante, mesmo diante da lacuna legislativa, desde logo, o direito fundamental à autodeterminação informacional tem aplicação imediata, haja vista que integra o já positivado direito a proteção de dados. Neste sentido, deve-se considerar a compreensão de Gomes Canotilho pela qual os direitos fundamentais como o aqui consignado apresentam dupla perspectiva, na medida que no plano jurídico-objetivo criam um escudo protetor contra atos arbitrários do Estado e no plano jurídico-subjetivo permitem ao cidadão de exercer[4] “positivamente direitos fundamentais (liberdade positiva) e de exigir omissões dos poderes públicos, de forma a evitar agressões lesivas por parte dos mesmos (liberdade negativa)”[5].
O julgamento em análise pode se constituir em um importante marco a estabelecer que novas medidas investigativas tecnológicas porquanto invasivas de direitos fundamentais para serem aplicadas pelos órgãos de persecução penal precisam de lei específica.
Embora se admita intervenções no aludido direito, haja vista não ser absoluto, deve-se garantir para tanto uma base legal que especifique de forma clara a intervenção, assim como lhe imponha limites materiais e procedimentais, de maneira facilmente reconhecível pelo cidadão, satisfazendo-se, assim, a exigência de clareza normativa (justificação formal), bem como que a restrição deve passar pelo teste da proporcionalidade (justificação material)[6].
A tecnologia tal como se tem verificado, principalmente em tempos de inteligência artificial, é difícil de imaginar aonde pode chegar. Por isso, os limites para a sua aplicação nomeadamente na persecução penal são os direitos fundamentais de cada indivíduo.
Dos votos proferidos pelos ministros até esse momento do julgamento aquele voto que melhor compreendeu a temática fixando bases seguras foi o voto da ministra Rosa Weber que concluiu por não haver lei a permitir o deferimento da medida investigativa requerida apregoando, dessa forma, a necessária autocontenção do Judiciário[7].
[1] O anonimato dos investigados e sua relação com pessoas determináveis da tutela coletiva são analisadas no texto. TEMER, Pedro Pessoa. O trator da coletivização no processo penal e as devassas da Modernidade Orwelliana. O direito processual penal coletivo na fase inquisitorial-autoritária: sua pior faceta? Anais do I Congresso Ibero-Americano de Tutela Coletiva, volume III. Repensando os processos coletivos para a Ibero-América: o código modelo, a justiça multiportas e os processos estruturais [recurso eletrônico] / Coordenadores: Hermes Zaneti Jr., Marcelo Abelha Rodrigues, Santiago Pereira Campos, Giovani Priori, José Maria Salgado. Vitória, ES: MPES/UFES, 2024, ps. 202 a 217.
[2] De maneira aprofundada realizando análise dos princípios da privacidade e da proteção de dados na respectiva interface com a persecução penal e construindo raciocínio de dialogo da ratio decidendi do HC 74.586-5 com temas correlatos ao objeto do presente artigo cf. SILVA NETO, Arthur Corrêa da. Autorização Judicial para Acesso a Informações Armazenadas em Celulares Apreendidos pela Polícia e o Direito Fundamental à Privacidade e à Proteção de Dados Pessoais no Âmbito da Persecução Penal, In: AKERMAN, Wiliam; MAIA, Maurílio Casas; REIS, Rodrigo Casimiro. Debates Contemporâneos da Justiça Penal: Estudos em Homenagem ao Ministro Reynaldo Soares da Fonseca. Brasília: Editora Sobredireito, 2023.
[3] GRAU, Eros Roberto. Ensaio e Discurso Sobre a Interpretação/Aplicação do Direito. 5ª ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2009, p. 87-88.
[4] SILVA NETO, Arthur Corrêa da. Tornozeleira Eletrônica: análise comparada (Brasil x EUA x Portugal) dos parâmetros e limites constitucionais da utilização da monitoração eletrônica. Curitiba: Juruá Editorial, 2021, p. 111.
[5] CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7ª ed., Coimbra: Almedina, 2003, p. 407-408.
[6] SILVA NETO, Arthur Corrêa da, op. Cit., p. 288.
[7] SILVA NETO, Arthur Corrêa da. Dos impactos do julgamento no STF no RE 1.301.250: caso Marielle Franco. Consultor Jurídico, publicado em 3 de abril de 2025, disponível em < https://www.conjur.com.br/2025-abr-03/breve-analise-dos-impactos-do-julgamento-do-stf-no-re-1-301-250-caso-marielle-franco/ > Acessado em 22.05.2025.