Caso Flávio Dino: O controle parlamentar por convocação de autoridades

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Até o último dia 5 de novembro, foram apresentados ao menos 91 requerimentos de convocação do ministro da Justiça e Segurança Pública, Flávio Dino para prestar, pessoalmente, informações sobre assunto previamente determinado, nos termos do art. 50, caput, da CF.

Trata-se do “campeão” na lista das autoridades mais convocadas na Câmara dos Deputados em 2023, deixando para trás os ministros da Fazenda Fernando Haddad (com quase 40 requerimentos), da Casa Civil Rui Costa (com 30), da Educação Camilo Santana (com 26), da SECOM Paulo Pimenta (com 21), do Desenvolvimento Agrário Paulo Teixeira (com quase 20).

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O que afirmam os parlamentares para apresentar tais requerimentos de convocação?

No caso do ministro Flávio Dino, diversas têm sido as razões apresentadas para os requerimentos: desde explicações relacionados à sua ida ao Complexo da Maré, na zona norte do Rio de Janeiro, passando por esclarecimentos sobre suas ações e omissões quanto aos atos do dia 8 de janeiro; sobre o Decreto nº 11.366, de 1º de janeiro de 2023, que suspendeu diversas disposições relacionadas ao armamento; sobre falas proferidas em entrevistas, postagens das redes sociais, entre outras razões.

O nome do ministro da Justiça como chave de busca também mostra como resultados moções de repúdio, pedidos escritos de informações, etc.

No ensejo desses números de convocação logo no primeiro ano de governo, a coluna de hoje se dedica a tecer alguns comentários sobre essa modalidade de controle parlamentar comum em todos os parlamentos e tão pouco abordado no âmbito do Direito brasileiro: a convocação de autoridades.

Como sabido, conforme a CF, uma vez convocada, a ausência injustificada da autoridade importa em crime de responsabilidade. A despeito disso, o ministro Flávio Dino, em meio ao elevado número de convocações, já deixou de comparecer sob o argumento de que sua presença configuraria “grave ameaça” a sua integridade física, porque os parlamentares não se submetem a detectores de metais; e pela suposta falta de “imparcialidade” do colegiado que o convocara. O ministro acabou indo só no dia seguinte.

A previsão do art. 50, caput, funciona como mecanismo para a atribuição de responsabilidade política, na medida em que o eventual mau desempenho da autoridade convocada pode desencadear fortes pressões para a sua demissão.

Nesse caso, a Casa Legislativa não aplica uma sanção direta, mas de forma indireta, a partir das perguntas formuladas pelos parlamentares que, na medida em que vão sendo respondidas pelas autoridades convocadas, podem revelar a inaptidão para o cargo. Assim, a convocação pode fazer com que a autoridade seja desligada por seu superior ou ela mesma peça para sair do cargo.

Apenas para ilustrar um exemplo bastante noticiado à época, mencione-se o então ministro da Educação Cid Gomes, que foi demitido em 18 de março de 2015, no início do governo Dilma, precisamente após o comparecimento à Câmara dos Deputados, quando proferiu declarações destemperadas e se desentendeu com deputados presentes na sessão nesse dia.

É importante notar que, a despeito de a previsão constitucional mencionar o propósito de obter informações, só uma leitura ingênua reduziria o instituto a esse papel. Na prática, as Casas Legislativas também estão fornecendo informações ao governo, à Administração Pública, aos meios de comunicação e aos eleitores.

Por isso, os parlamentares podem acabar fazendo perguntas sobre questões que já foram resolvidas no momento da inquirição ou que sequer tenham resposta. Em grande medida, o questionamento parlamentar é uma sinalização para os diferentes auditórios. Mas, diferentemente dos inquiridos em uma CPI, as autoridades convocadas não podem ficar em silêncio.

A priori, não existem perguntas “proibidas”. Assim, é legítimo que os parlamentares façam perguntas não só para requerer esclarecimentos, mas também com outros tipos de motivação, como: pressionar por ações, ganhar publicidade, testar os ministros em áreas controvertidas, colocar os ministros em situação política de fragilidade, demonstrar preocupação, forçar compromissos, demonstrar falhas do governo, etc. Nem sempre o “controle” é o principal móvel dos parlamentares nas convocações de autoridades.

O normal é que as perguntas desencadeiem um “debate”, com grandes oportunidades de discursos e visibilidade para os parlamentares.

Juridicamente, de acordo com o desenho da Constituição de 1988, tanto a Câmara dos Deputados, quanto o Senado Federal, podem convocar autoridades, e isso pode ser feito tanto pelas comissões, quanto pelo plenário. Com isso, o modelo brasileiro se diferencia do norte-americano, por exemplo, em que somente as comissões têm prerrogativas semelhantes.

Aqui, tampouco se optou (como fizeram Portugal e Reino Unido) por fixar um determinado número de dias para a oposição conduzir os debates. No Brasil, as convocações não são propriamente uma ferramenta das minorias.

A redação do texto constitucional é bem abrangente, a convocação pode recair sobre Ministro de Estado ou “quaisquer titulares de órgãos diretamente subordinados à Presidência da República”. Ocorre que essa grande amplitude das autoridades residuais vem sendo pouco aplicada na prática. Até são chamados os titulares de órgãos como a ABIN, IBAMA, Fundação Palmares, entre outros que têm por característica a possibilidade de demissão ad nutum.

No entanto, ao que tudo indica, os parlamentares não vêm fazendo uso desse instrumento de controle parlamentar para convocar os dirigentes das agências reguladoras. Levantamentos preliminares chamam a atenção por não terem como objeto essas autoridades.

Em princípio, a CF não vedaria essa possibilidade (cabe no texto do art. 50, caput), mas será que isso é compatível com o modelo brasileiro, em que esses entes deveriam gozar de uma relativa independência? Será que essa modalidade de accountability resultaria inócua, já que os dirigentes gozam de mandato e não poderiam ser demitidos? (Ao menos não sem uma “justa causa” apurada em processo administrativo).

Um dificultador de uma pesquisa empírica sobre a convocação de autoridades está em que, com relativa frequência, em lugar de os parlamentares apresentarem um requerimento de convocação, simplesmente formulam um “convite”, às vezes até em caráter informal, para que a autoridade compareça para explicar determinada política. Mas mesmo nesses casos não convém que a autoridade recuse à tal “cortesia parlamentar”.

Dito com outras palavras, na verdade, o número de “convocações” é potencialmente muito maior do que o registrado. A busca só entre os requerimentos “ditos” de convocação tende a ser subinclusiva.

Existe uma série de outras perguntas sobre a convocação de autoridades que precisariam ser respondidas a partir de pesquisas empíricas, por exemplo: Quais são as autoridades cujas convocações são as mais aprovadas pelas Casas Legislativas? Com que frequência? Quanto tempo (número de dias) esse tipo de requerimento leva para tramitar? A quais partidos pertencem os parlamentares que mais formulam esse tipo de pedido? Quem convoca mais: o plenário ou as comissões? Quais foram as consequências das convocações? Ou seja, quantas vezes uma autoridade convocada perdeu o cargo?

Em sua tese de doutorado defendida em 2005, Leany Barreiro de Sousa Lemos reuniu alguns achados interessantes sobre essa forma de controle parlamentar no Brasil. Por exemplo, a autora dá conta de que a convocação de ministros pelo plenário costuma ser usada com parcimônia, mas, ao mesmo tempo, vem-se observando um incremento ao longo dos anos.

A Câmara dos Deputados disciplinou o comparecimento de Ministro de Estado a partir do art. 219 de seu regimento interno. O requerimento para comparecimento de Ministro deve ser apresentado por escrito e submetido à deliberação do plenário da Casa ou da comissão, neste último caso exigindo-se a pertinência temática entre as atribuições específicas da Comissão e o assunto sobre o qual o ministro prestará informações (art. 117, inciso II, art. 24, inciso IV, e art. 55, todos do RICD).

Pelo art. 219, § 2º, a convocação do Ministro de Estado deve ser comunicada mediante ofício do 1º Secretário ou do presidente da comissão, que definirá o local, dia e hora da sessão ou reunião a que deva comparecer, com a indicação das informações pretendidas. O dispositivo prevê, assim como a CF, que a ausência sem justificação adequada, aceita pela Casa ou colegiado, importa crime de responsabilidade.

Convocado, o ministro não recebe previamente as perguntas de forma escrita, diferentemente do que ocorre em outros parlamentos (como Áustria Bélgica, Dinamarca, Finlândia, França, Alemanha, Itália e Portugal). Ademais, o convocado deve encaminhar ao presidente da Casa ou da comissão, até a sessão da véspera da sua presença, um sumário da matéria de que virá tratar, para distribuição aos deputados (RICD, art. 221, caput).

O ministro de Estado convocado terá assento na primeira bancada, até o momento de ocupar a tribuna, ficando subordinado às normas estabelecidas para o uso da palavra pelos deputados; perante comissão, ocupará o lugar à direita do presidente (art. 220, § 1º).

Ao início do grande expediente, ou da ordem do dia, o ministro poderá falar até 30 minutos, prorrogáveis por mais 15, pelo plenário da Casa ou da comissão, só podendo ser aparteado durante a prorrogação. Encerrada a exposição do ministro, os deputados que se inscreveram previamente poderão formular interpelações no prazo de 5 minutos. O Ministro disporá do mesmo prazo de resposta, sendo permitidas a réplica e a tréplica, pelo prazo de 3 minutos, improrrogáveis. Após o término dos debates, os líderes podem usar da palavra por 5 minutos, sem apartes (art. 221, §§ 1º a 5º).

O comparecimento espontâneo recebeu um tratamento sutilmente diferente: o Ministro poderá falar por até 40 minutos, podendo o prazo ser prorrogado por mais 20 minutos, por deliberação do plenário, só sendo permitidos apartes durante a prorrogação. Findo o discurso, o presidente concederá a palavra aos deputados, ou aos membros da comissão, respeitada a ordem de inscrição, para, no prazo de 3 minutos, cada um, formular suas considerações ou pedidos de esclarecimentos, dispondo o ministro do mesmo tempo para a resposta, permitidas a réplica e tréplica, pelo prazo de 3 minutos, improrrogáveis (art. 222).

Pelo art. 223 do RICD, na eventualidade de não ser atendida convocação feita de acordo com o art. 50, caput, da CF, o presidente da Câmara promoverá a instauração do procedimento legal cabível.

Como se vê, do ponto de vista empírico, ainda há muitas respostas a serem dadas sobre o uso que os parlamentares fazem da convocação de autoridades, bem como o impacto prático dessa ferramenta. Ainda assim, está claro que o seu desenho é poderoso e, para a satisfação de quem se interessa pelo mundo parlamentar, parece estar entrando na moda. Melhor assim.