Em 1º de setembro de 2023, o Sindicato Nacional da Indústria da Construção Pesada (Sinicon) ajuizou a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 7449, questionando a constitucionalidade do artigo 29 da Lei 12.846/2013, conhecida como Lei Anticorrupção. Tal artigo prevê que a aplicação da lei não exclui a competência do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) para processar e julgar as condutas que também constituam infração à ordem econômica.
Em sua peça inicial, o Sinicon ressaltou que o cenário de combate à corrupção no Brasil ainda é marcado por uma realidade institucional “desconcertada e problemática”, em que há coexistência de competências sancionadoras – e, portanto, um risco de dupla penalização. O Sinicon argumentou que tramitam no Cade múltiplos processos administrativos que investigam cartéis em licitações no âmbito da Lava Jato – algumas já incluídas em acordos de leniência firmados com a Controladoria-Geral da União (CGU) ou controladorias estaduais.
A sobreposição apontada pela ADI decorre da semelhança entre os tipos previstos no art. 5º, IV da Lei Anticorrupção (“frustrar ou fraudar, mediante ajuste, combinação ou qualquer outro expediente, o caráter competitivo de procedimento licitatório público”) e no art. 36, §3º, I, ‘d’ da Lei 12.529/2011, a chamada Lei de Defesa da Concorrência (“acordar, combinar, manipular ou ajustar com concorrente, sob qualquer forma: […] preços, condições, vantagens ou abstenção em licitação pública”). O sindicato ponderou que todo acordo entre concorrentes para fraudar uma licitação pública configuraria um cartel.
O Sinicon argumentou também que a diferença entre tais dispositivos seria meramente nominal, já que ambos tratariam da mesma conduta e do mesmo ilícito. Logo, como a aplicação das referidas previsões poderia alcançar os mesmos sujeitos (pessoas jurídicas) e impor-lhes sanções da mesma natureza, haveria violação do princípio ne bis in idem, que se baseia na ideia de que ninguém pode ser punido duas vezes pelo mesmo fato. Até o momento, a ADI 7449 aguarda julgamento, de maneira que o Supremo Tribunal Federal (STF) ainda não deu sua resposta à questão.
O Sinicon sustentou, ainda, que a descoordenação institucional diminuiria os incentivos para a negociação de acordos de leniência, já que a celebração de acordo com uma autoridade não eximiria a outra de processar a empresa pelos mesmos fatos. Atualmente, no Brasil, os programas de leniência anticorrupção e antitruste correm em paralelo. A CGU é o principal órgão de combate à corrupção do Poder Executivo federal, ao passo que o Cade é o legitimado para a persecução administrativa de violações à Lei de Defesa da Concorrência ocorridas em todo o território nacional.
Entretanto, recentes desdobramentos indicam um movimento de aproximação entre a CGU e o Cade. Se bem-sucedida e efetivamente levada a cabo, essa aproximação pode trazer coordenação, coerência e integração às suas atuações nos casos de cartel em fraude a licitações públicas, em especial quanto à negociação de acordos de leniência.
Em 10 de novembro de 2023, durante o 29º Seminário Internacional de Defesa da Concorrência promovido pelo IBRAC, a CGU e o Cade assinaram o Acordo de Cooperação Técnica 52/2023 (ACT). Naquela oportunidade, o ministro da CGU reconheceu a coexistência entre instâncias de controle e repressão, bem como destacou os riscos da atuação descoordenada entre órgãos de investigação e persecução. Além disso, defendeu a necessidade de identificar, em esforço conjunto, uma forma de coordenar as atividades de investigações, acordos e decisões.
A CGU e o Cade já haviam celebrado um primeiro acordo de cooperação relacionado à repressão de cartéis em licitações em 2014, que teve por objeto principal o estabelecimento de mecanismos para “comunicação efetiva e permanente entre o Cade e a CGU”. Indo além do acordo de 2014, o novo ACT reconheceu expressamente a semelhança entre os instrumentos negociais e a proximidade entre os ilícitos (sendo mencionados, justamente, os dispositivos da Lei Anticorrupção e da Lei de Defesa da Concorrência destacados pela ADI 7449), no que tange à prática de cartel com o objetivo de fraudar procedimentos licitatórios públicos. E registrou, ainda, que a harmonização na repressão a tais ilícitos serve para afastar o risco de punições excessivas, permitir ações conjuntas e coordenadas, e proporcionar corretos incentivos aos agentes econômicos para a busca de soluções consensuais.
A partir do ACT, CGU e Cade deverão analisar seus fluxos de trabalho nas negociações de leniência, a fim de identificar oportunidades de aprimoramento e desenvolver projetos de atuação sinérgica e metodologias de compartilhamento de informações. Ao fim, espera-se o desenvolvimento de fluxos de trabalho coordenados ou conjuntos. De acordo com as obrigações estabelecidas no ACT, para além de trocas de conhecimento e compartilhamento de bases de dados, as evoluções a serem buscadas podem envolver: a formação de ações de investigação conjuntas; a capacitação mútua de servidores; a delimitação das áreas de atuação da CGU e do Cade visando à definição de competências de cada órgão; e a criação de uma metodologia para atuação integrada e coordenada no exercício das respectivas competências – inclusive, visando à compatibilização na aplicação de sanções.
O plano de trabalho do ACT também definiu que, caso sejam identificadas necessidades de aprimoramento que dependam de alterações normativas externas, CGU e Cade as demandarão junto às autoridades responsáveis por editar a norma pertinente ou por propor sua edição.
O ACT, mais do que uma solução consumada ou definida, parece ser um ponto de partida para a busca por iniciativas concretas de integração entre a CGU e o Cade. Embora incipiente, no entanto, já revela uma evolução, pois parece reconhecer um grau de sobreposição entre ilícitos e competências, assim como a consequente necessidade da racionalização e coordenação de ações efetivas – a fim de evitar redundâncias, excessos e incoerências nas atividades investigativas, persecutórias e repressivas.
Embora ainda seja cedo para falar em uma mesa conjunta de negociação de leniência CGU/Cade, o ACT pode levar a um diálogo mais organizado. As novidades trazidas pelo ACT são indicativas de passos mais promissores rumo à consistente procura por soluções integradas. Se efetivamente implementado, o novo ACT pode transformar a interação entre as leniências antitruste e anticorrupção no Brasil e proporcionar maior segurança jurídica para as empresas dispostas a cooperar com as duas autoridades, diminuindo o ambiente de descoordenação institucional descrito pela ADI 7449.