Recentemente, temos acompanhado uma onda de investimentos de grandes montadoras no Brasil, investimentos estes que são testemunho da vitalidade e importância do setor automotivo para a economia nacional. A Stellantis, uma líder de mercado, planeja investimento recorde para a América do Sul, totalizando € 5,6 bilhões, equivalente a R$ 30 bilhões, aproximadamente, entre 2025 e 2030. O valor seria destinado a impulsionar o lançamento de mais de 40 produtos e desenvolver tecnologias inovadoras de descarbonização em toda a cadeia de suprimentos automotiva.
Outras montadoras anunciaram investimentos igualmente impressionantes. É o caso da Volkswagen, com mais de R$ 9 bilhões até 2028 para lançar 16 novos veículos, incluindo modelos híbridos, 100% elétricos e full flex, e da Toyota, com mais de R$ 11 bilhões em investimentos até 2030. Já BYD e GWM, entrantes no mercado nacional, somam aportes que ultrapassam os R$ 3 bilhões para a produção de veículos elétricos e híbridos no Brasil.
O movimento sinaliza o fortalecimento no desenvolvimento da indústria local e uma aceleração rumo aos objetivos de carbono líquido zero, alinhados ao programa de mobilidade verde Mover, do governo federal, que prevê incentivos fiscais para fabricantes de automóveis que investem em sustentabilidade.
Há, entretanto, um ponto polêmico que merece reflexão. Os principais benefícios fiscais se referem à isenção ou redução de Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) e, a princípio, diferentemente de programas anteriores, como Inovar Auto e Rota 2030, seriam aplicados apenas a veículos híbridos e elétricos. Ao mesmo tempo, a PEC da reforma tributária, aprovada pelo Congresso Nacional em dezembro de 2023, estendeu tais benefícios a carros flex, ou seja, a combustão.
Se os legisladores brasileiros fossem seguir tendências mundiais de sustentabilidade e energia limpa, é certo que esses benefícios seriam mantidos apenas para carros híbridos e elétricos. A União Europeia, por exemplo, determinou que a partir de 2035 todos os automóveis produzidos no bloco devem ser livres de emissão de CO2.
Estaria o Brasil, assim, incentivando a produção de veículos poluentes? Não necessariamente. Temos uma relação bastante estreita com a indústria automotiva, porque ela representa fatia considerável da economia. Em 2022, o setor faturou US$ 39 bilhões, respondendo por 5,26% do Produto Interno Bruto (PIB) e 22% do PIB industrial. Além disso, ainda que já tenha gerado mais, essa indústria é responsável por uma quantidade significativa de empregos, na casa dos 100 mil postos de trabalho. Por mais que as fábricas se modernizem, invistam em tecnologia e automação, ainda há uma concentração grande de mão de obra humana.
O tema, contudo, é delicado. A reforma legislativa certamente traz uma revisão significativa do sistema tributário e provavelmente se traduzirá em ganhos de produtividade no longo prazo. De um lado, tem-se a urgência das mudanças de hábitos rumo a um futuro mais sustentável. De outro, há um setor crucial para a economia.
Apesar da polêmica, penso que podemos concordar que, na prática, tanto os investimentos quanto os incentivos fiscais trazem vários pontos positivos para o Brasil e para o setor automotivo. Ambos têm como objetivo a diversidade de produtos, um maior volume de produção, mais receita e, consequentemente, a manutenção de milhares de empregos. Passemos a outro ponto: os atuais empecilhos para o avanço dos veículos elétricos no Brasil.
Necessário deixar claro que a população brasileira não é avessa à sustentabilidade. Levantamento da Confederação Nacional da Indústria (CNI) apontou que o número de brasileiros que se preocupam com hábitos sustentáveis, sempre ou na maioria das vezes, passou de 74% em 2022 para 81% em 2023. Ainda, apesar de sabermos que o principal motivador da adoção do etanol costuma ser o preço na bomba de combustível, o carro flex tem boa aceitação também por ser mais sustentável.
Desta forma, não são esses pontos que afastam o motorista brasileiro dos carros elétricos e híbridos. Além do preço ainda superior em comparação com o veículo a combustão, há o carregamento. Mesmo que alguns dos novos carros elétricos levem cerca de meia hora para chegar a 80% da bateria carregada em pontos de recarga rápida, a primeira geração de eletrificados demora mais de duas horas para atingir esse patamar, podendo levar mais de uma noite inteira em um ponto doméstico com 220 volts de 20 amperes. Então, mesmo que o motorista deixe o veículo carregando numa vaga especial do shopping enquanto vai ao cinema, por exemplo, o tempo pode não ser suficiente.
A eficiência quanto à quilometragem que poderá ser percorrida é outra questão. Isso sem falar nos postos de abastecimento. Alguns condomínios e estabelecimentos comerciais, como os já citados shoppings, têm disponibilizado pontos de carregamento, mas eles são suficientes? E qual é o custo quando o carregamento não é ofertado como cortesia e o motorista precisa desembolsar para recarregar o carro?
É claro que esse cenário deve mudar. Lembro-me de quando os veículos a álcool começaram a se popularizar, na década de 1980, e havia filas enormes em postos porque apenas uma bomba fornecia o combustível. Hoje, porém, o etanol é um combustível bastante aceito e difundido no país. Vislumbro o mesmo para os carros elétricos no futuro, mas até lá ainda temos um longo caminho – literalmente – a percorrer.