Ao longo da história brasileira, cargos de livre provimento fizeram parte da Administração Pública nacional. Em 1823, apenas um ano após a independência do país, começam a surgir os primeiros “auxiliares” no setor público. Nas décadas seguintes do século XIX e ao longo da maior parte do século XX, essas categorias foram se expandindo e formando uma colcha de retalhos composta por comissionados, extranumerários, tarefeiros, mensalistas, diaristas, contratados, serventes e uma série de outros postos criados de maneira improvisada e casuística[1].
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Diogo de Figueiredo Moreira Neto, ao comentar legislação editada na década de 1930, defende que a manutenção de posições de livre nomeação na administração pública representava “terrível fruto do empreguismo”[2], servindo de moeda de troca por apoio político em um sistema marcado por instituições frágeis e fragmentação política e cuja fidelidade dos ocupantes pudesse ser acompanhada de perto por agentes políticos.
Durante o regime militar, houve um aumento substancial na quantidade de cargos de livre nomeação e exoneração na administração federal[3]. Para se ter uma noção do tamanho do fenômeno, quando a Constituição de 1988 (CRFB/88) entrou em vigor, 80% dos agentes da administração pública brasileira haviam sido admitidos sem concurso público, considerando-se comissionados, contratados e celetistas (cujo ingresso, à época, prescindia de concurso)[4].
Comissionados na Constituição de 1988 e na jurisprudência do STF
Na atual ordem constitucional, os cargos em comissão, nos termos do artigo 37, V da CRFB/88, destinam-se exclusivamente às atribuições de direção, chefia e assessoramento, devendo ser preenchidos por servidores de carreira nos casos, condições e percentuais mínimos previstos em lei. Nesse sentido, diferenciam-se das funções de confiança, a serem exercidas sempre por servidores de carreira, na medida em que, observados os limites legais, podem ser ocupados por pessoas sem vínculo permanente com a Administração Pública – os chamados “extraquadro”, no jargão dos corredores das repartições públicas.
Contudo, em contextos de carência crônica de servidores efetivos, ocupantes de cargos em comissão podem servir também para garantir a continuidade de atividades administrativas em órgãos e entidades em que há escassez de servidores efetivos[5]. Muitas das posições de livre provimento na administração são ocupadas por pessoas comuns, sem grandes padrinhos políticos, que desempenham funções ordinárias, e mesmo subalternas, na estrutura da máquina pública.
Especialmente nos estados e nos municípios, que, em geral possuem corpos burocráticos menos profissionalizados do que a União Federal, é comum que recepcionistas, motoristas, agentes administrativos e burocratas de modo geral não sejam servidores de carreira, mas, na verdade, agentes extraquadro, muito embora suas atividades nada tenham de direção, chefia nem assessoramento. Em estudo empírico sobre o setor de saúde no oeste do Paraná, por exemplo, constatou-se que, de um total de 141 pessoas que trabalhavam em atividades de apoio e manutenção em hospitais, 31 eram ocupantes de cargos em comissão[6].
O Estado do Tocantins possui um caso bastante emblemático, com a aprovação de lei – posteriormente declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal (ADI nº 4.125) – que criava um número de cargos em comissão superior à totalidade dos cargos efetivos existentes naquela unidade da federação. Outro caso relevante ocorreu no Tribunal de Contas do Estado do Sergipe, que também teve a inconstitucionalidade da criação de cargos em comissão cujas atribuições não eram claramente definidas reconhecida na ADI nº 6.655.
Diante deste contexto, o Supremo Tribunal Federal, em 2019, ao analisar o Recurso Extraordinário nº 1.041.210 (Tema nº 1.010 da Repercussão Geral), fixou entendimento de que (i) cargos em comissão se restringem a funções de direção, chefia e assessoramento, não se prestando ao desempenho de atividades técnicas, burocráticas ou operacionais; (ii) a criação dessas posições supõem uma relação de confiança entre autoridade nomeante e servidor nomeado; (iii) o número de comissionados deve ser proporcional ao de servidores efetivos e às demandas que eles visam a suprir; e (iv) as atribuições do cargo em comissão devem ser descritas, de forma clara e objetiva, na lei que os instituir.
Na esteira da decisão do STF, a União Federal aprovou a Lei nº 14.204/2021, que estabelece regras para a gestão de cargos em comissão e funções de confiança na administração pública federal. Dentre outros aspectos, a lei fixa em 60% o percentual de cargos em comissão a serem preenchidos por servidores de carreira e exige como requisitos genéricos para a nomeação para cargos em comissão idoneidade moral e reputação ilibada; perfil profissional ou formação acadêmica compatível com o cargo; e não enquadramento nas hipóteses de inelegibilidade.
A Lei nº 14.204/2021, embora traga disposições salutares, aplica-se apenas à União Federal. Em relação a Estados, Municípios e Distrito Federal, o STF decidiu que cabe a cada ente federativo editar sua própria legislação acerca de seus comissionados, não havendo necessidade de aprovação de uma lei nacional que trate do tema (ADO nº 44). Com isso, poucos entes da federação possuem regras mais específicas sobre a criação e o preenchimento de seus cargos em comissão. É o caso, por exemplo, do Distrito Federal, que em 2012 aprovou a Lei nº 4.858.
Perspectivas para o futuro
O equacionamento da quantidade, dos requisitos para nomeação e das atribuições a serem desempenhadas por comissionados é particularmente relevante para o aprimoramento da gestão pública brasileira. De um lado, os cargos em comissão são concebidos como instrumentos de governabilidade e gestão democrática e renovação política no funcionalismo público, permitindo a agentes políticos recompensar aliados e nomear ocupantes de sua confiança[7]. São, assim, elemento relevante na caixa de ferramentas do presidencialismo de coalizão, permitindo a construção e o aprofundamento de alianças políticas.
Por outro lado, estudos apontam que, de maneira geral, comissionados extraquadro tendem a ter menores índices de escolarização e capacitação profissional do que servidores efetivos. Da mesma forma, órgãos públicos que possuem números desproporcionalmente elevados de comissionados tendem a possuir níveis menores de capacidade técnica do que aqueles que possuem mais servidores efetivos[8].
Dessa forma, parece salutar que a criação e o preenchimento dessas posições obedeçam aos critérios estabelecidos no artigo. 37, V da CRFB/88 e na jurisprudência do STF, em especial no Tema nº 1.010 da Repercussão Geral. Ainda que a Suprema Corte tenha entendido na ADO nº 44 que não há obrigatoriedade de edição de uma lei nacional sobre a matéria, tampouco foi vedada a aprovação de norma neste sentido, desde que observada a autonomia federativa (ressalva contida de maneira expressa no inteiro teor da ADO nº 44). Uma lei geral de comissionados poderia configurar o primeiro passo em direção a um tratamento mais republicano da questão no país.
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[1] MELO, José Augusto de Carvalho e. Extranumerário. Revista de Direito Administrativo – RDA, Rio de Janeiro-São Paulo, vol. 1, jan. 1945, pp. 347-358, p. 347-348.
[2] MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Regime Jurídico Único dos Servidores Públicos na Constituição de 1988. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1990, p. 13.
[3] SCHNEIDER, Ben Ross. Politics within the State: Elite Bureaucrats and Industrial Policy in Authoritarian Brazil. Tese de Doutorado. Departamento de Ciência Política, Universidade da Califórnia, Berkeley. 1987, p. 44, 109 e 575.
[4] MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 32 ed. rev. e atual. até a Emenda Constitucional 84, de 2.12.2014. São Paulo: Malheiros Editores, 2015, p. 272.
[5] TORAL, Guillermo. How Patronage Delivers: political appointments, bureaucratic accountability, and service delivery in Brazil. Forthcoming. 2022. Disponível em: < https://www.guillermotoral.com/benefits_of_patronage.pdf> Acesso em 20.out.2023.
[6] EBERHARDT, Leonardo Dresch; CARVALHO, Manoela de; MUROFUSE, Neide Tiemi. Vínculos de trabalho no setor saúde: o cenário da precarização na macrorregião Oeste do Paraná. Saúde em Debate, v. 39, mar. 2015, pp. 18–29, p. 23.
[7] LEWIS, David E. The Politics of Presidential Appointments: political control and bureaucratic performance. Princeton: Princeton University Press, 2010, p. 213.
[8] BERSCH, Katherine; PRAÇA, Sérgio; TAYLOR, Matthew M.; State Capacity, Bureaucratic Politization, and Corruption in the Brazilian State. Governance, vol. 30, n. 1, jan/2017, pp. 105-124.