Logo em sua estreia, o Big Brother Brasil 24 chamou a atenção pela escalada de irresponsabilidades cometidas em relação a um participante com deficiência. Na chamada “prova do líder”, ele foi submetido a uma prova de resistência em ambiente impróprio à prótese que utilizava, sendo forçado a retirá-la para continuar a disputa.
Não bastasse a condição desigual em relação aos demais competidores, o participante ainda teve sua prótese apelidada de “cotinho” por outro integrante em rede nacional. Por fim, após desistir da prova, no chamado “confessionário”, ouviu do apresentador que “a deficiência é um assunto novo”, sobre a qual “não se sabe bem o que se pode ou não falar”.
Realmente, um espetáculo proporcionado pelo BBB 2024: de despreparo, desrespeito e discriminação. Longe, porém, de externar uma opinião pessoal deste autor, a intenção do presente texto é debater os aspectos jurídicos do episódio retratado.
Para fins didáticos, pretende-se: revisitar os conceitos jurídicos relacionados (1), apontar os direitos violados (2), e, quem sabe, direcionar responsabilidades em relação ao ocorrido (3).
Neste passo, três seriam os institutos do Direito das Pessoas com Deficiência ignorados pela direção do programa: i) barreiras sociais; ii) acessibilidade; iii) capacitismo.
A noção de barreira se desenvolve no contexto do paradigma social da deficiência, modelo que superou o paradigma médico anterior (=clínico, biológico ou reabilitador), responsável por projetar a deficiência como uma disfunção biológica individual.
O que é importante compreender é que esse novo modo de encarar a deficiência inverteu a lógica do pensamento dominante, incorporando o ambiente como causa relevante das restrições experimentadas pelas pessoas com deficiência.
Assim, se no modelo médico a deficiência era encarada como a falta de um membro ou sentido (equação “deficiência = impedimento”), no modelo social ela passa a ser compreendida a partir dos obstáculos que impedem a participação igual em sociedade (equação “deficiência = impedimento + barreira”). Daí a necessidade de superação de barreiras e instituição de apoios.
Este é, justamente, o conceito de barreira trazido pela legislação: qualquer entrave, obstáculo, atitude ou comportamento que limite ou impeça a participação social da pessoa, bem como o gozo, a fruição e o exercício de seus direitos à acessibilidade, à liberdade de movimento e de expressão, à comunicação, ao acesso à informação, à compreensão, à circulação com segurança (art. 3º, inc. IV, LBI).
Vencido o conceito de barreira, é possível debater o segundo instituto desconsiderado: a acessibilidade. Esta propõe que os espaços, equipamentos, produtos e serviços contidos socialmente sejam capazes de proporcionar autonomia, independência, segurança, mobilidade e comodidade para o exercício dos direitos pelas pessoas com deficiência.
É o que diz a Lei Brasileira de Inclusão, que conceitua acessibilidade como: “a possibilidade e condição de alcance para utilização, com segurança e autonomia, de espaços, mobiliários, equipamentos urbanos, edificações, transportes, informação e comunicação, inclusive seus sistemas e tecnologias, bem como de outros serviços e instalações abertos ao público, de uso público ou privados de uso coletivo, tanto na zona urbana como na rural, por pessoa com deficiência ou com mobilidade reduzida” (art. 3º, inc. I).
Trata-se, portanto, de um direito-garantia, de caráter instrumental, meio para a consecução do objetivo principal das normas protetivas: a inclusão social da pessoa com deficiência.
Por fim, o capacitismo constitui um marcador social, tendente a designar as relações desiguais de poder e os processos de subestimação das pessoas com deficiência na sociedade.
Ele se molda por uma ideologia que propala uma corponormatividade, i. é, uma construção social que expressa a hierarquização de corpos “normais” (sem falhas, padrões etc.), sobre corpos “excepcionais” ou “especiais” (inferiores). Isso leva a diminuição da pessoa com deficiência.
Podem ser considerados exemplos de capacitismo: i) a atribuição de rótulos pejorativos às pessoas ou instrumentos de apoio; ii) a infantilização no diálogo ou tratamento; iii) o questionamento da capacidade; iv) a negativa de atribuição de determinadas tarefas; v) a hipervalorização de compromissos cotidianos exercidos.
Vistos esses conceitos, previamente abordados em textos específicos nesta coluna (ver aqui, aqui e aqui), possível investigar os direitos violados no presente episódio.
Primeiramente, percebe-se que a deficiência do participante não foi considerada pela direção do programa. Ora, sendo a deficiência classificada como “impedimento + barreira”, a ausência de ponderação sobre os obstáculos da prova, como solo molhado e caminho escorregadio, conduz à desconsideração da dimensão socioespacial relacionada à limitação funcional apresentada pelo participante.
Ademais, inúmeras alternativas ao modelo de prova poderiam ter sido cogitadas para evitar uma participação desigual. Isso significaria repensar arquitetonicamente a ambiência do programa, inclusive adotando princípios de desenho universal para sua concepção (clique aqui).
Ainda que a escolha fosse manter a prova específica, conveniente que se instituíssem apoios adequados ou o uso de tecnologias assistivas (ex: prótese adaptada) como instrumentos inclusivos. Nesse contexto, verifica-se que a acessibilidade – de mobilidade – foi fartamente violada no caso concreto. Em síntese, caberia à prova adaptar-se à pessoa com deficiência e não a pessoa com deficiência adaptar-se à prova!
Doravante, em relação ao comentário jocoso sobre a prótese do participante, a conduta revela uma expressão de cunho capacitista, que deveria ter sido repudiada durante e após a prova pela direção do programa.
Ao invés, optou-se por relativizar o ocorrido, como se a falta de conhecimento sobre os direitos das pessoas com deficiência justificasse ambientes de discriminação.
É preciso deixar claro que o capacitismo estrutural, presente nas entranhas da sociedade brasileira, não deve servir de escudo para práticas, ações e discursos discriminatórios, seja no ambiente público, seja no ambiente privado. Necessário uma postura assertiva, tempestiva e educativa em casos desse jaez, o que não foi adotado pela emissora de telecomunicação.
Considerando todo esse contexto de violação de direitos, diminuição da cidadania e desrespeito à condição vulnerável das pessoas com deficiência, exsurge, inexoravelmente, o dever de reparar por parte da empresa de televisão.
In casu, foram violados os artigos 2º, 3º, 4º, 5º e 9º da Convenção Internacional sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência, internalizada no ordenamento nacional pelo Decreto nº 6.949/2009 como norma constitucional, bem como os artigos 4º, 5º, 8º, 53 e 74 da Lei Brasileira de Inclusão (Lei 13.146/2015).
Não é demais lembrar que o BBB movimenta cerca de R$ 1 bilhão por edição, constituindo o programa televisivo mais lucrativo do Brasil. A reprovabilidade da conduta ainda pende agravada pelo alcance dos danos causados, já que o episódio foi ao ar em rede nacional, em horário de maior audiência, sendo transmitido pela emissora de telecomunicação mais conhecida do país.
A reparação, portanto, não deveria se limitar à compensação pelos danos individuais infligidos ao participante com deficiência, devendo abranger também a esfera coletiva, indenizando os prejuízos causados à imagem, honra e dignidade de todas as pessoas com deficiência.
Nesse contexto, a responsabilização da empresa de televisão assumiria uma natureza punitivo-inibitória, agindo como impedimento para que a busca por altos lucros de audiência não justificasse a repetição de ilicitudes semelhantes no futuro.
Se realmente desejamos concretizar os direitos das pessoas com deficiência almejando um ideal sociedade inclusiva, crucial a adoção de uma postura reparatória firme, preventiva e pedagógica diante de situações discriminatórias de grande exposição.
Nossa solidariedade ao participante e a todas as pessoas com deficiência!