O Brasil caminha para uma legalização mais abrangente da cannabis e de seus diferentes usos. Parlamento, Judiciário e Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) têm dado segurança jurídica ao uso medicinal e a tendência é que, em 2024, tenhamos um mercado de R$ 1 bilhão. Mas essa expansão é apenas um primeiro passo. É necessário entender a experiência internacional e, principalmente, onde ela errou, para que se evitem caminhos regulatórios destinados ao fracasso.
Os EUA funcionam como um relevante laboratório de experiências, uma vez que, lá, o cultivo industrial foi legalizado a nível federal por um governo conservador e o uso medicinal e recreativo ainda estão sendo discutidos estado por estado. Assim, não é apenas um, mas vários laboratórios, ecoando as palavras do lendário juiz da Suprema Corte dos Estados Unidos, Louis Brandeis, que famosamente chamou os estados da União de “laboratórios da democracia”. Isso gera uma fertilidade de casos complexos que podem ser analisados sob uma lente do contexto nacional.
Atualmente, o Brasil já conta com uma robusta regulação sobre o uso medicinal. A RDC 660/22, da Anvisa, permite que pacientes importem produtos de cannabis que estejam de acordo com as normas do país de origem. E a RDC 327/19 cria regras para os produtos que são dispensados nas farmácias e necessitam de uma autorização sanitária – o que representa um rigoroso processo de análise pela agência.
O Congresso Nacional, por outro lado, tem reagido às investidas mais progressistas do Judiciário quando o assunto é cannabis, como foi o caso da PEC 45/2023, de iniciativa do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), que criminaliza a posse e o porte de entorpecentes por meio de uma alteração constitucional.
Por isso, quando pensamos na regulação da cannabis no Brasil, é necessário entender quais decisões regulatórias foram bem-sucedidas e quais não, para evitar atritos entre os Poderes, atrasando o desenvolvimento da indústria.
Nos EUA, embora tenha havido acertos, também foram cometidos muitos erros. O primeiro, fundamental, é a falta de uma estratégia nacional em relação à cannabis, em particular o que é considerado maconha, ou seja, que tem um conteúdo de THC superior a 0,3%. O governo federal mantém uma postura proibicionista, ao mesmo tempo que tolera até certo ponto os quadros legalizadores a nível estadual. Isso cria ambiguidade.
Deixando de lado a questionável constitucionalidade das extensas proibições impostas pelo governo federal, as quais se sustentam em uma interpretação abrangente do poder que a Constituição outorga ao governo federal para regular o comércio entre os estados, a postura de Washington diante da legalização a nível estadual tem sido pouco prática. Como uma criança malcriada, observa as atividades legalizadas pelos estados dizendo “não gosto”, como se assim alcançasse algo, descontando-se na aplicação às vezes exagerada dos controles que mantém sobre as importações e exportações e outras matérias de jurisdição federal, como é o registro de marcas a nível nacional. O Brasil deve evitar situações deste tipo e procurar a harmonia entre todos os níveis de governo.
Em relação ao cânhamo, a situação é menos grave do que em relação à maconha, dada a legalização federal que ocorreu em 2018. Contudo, os entes federais, especificamente a Administração de Alimentos e Medicamentos (FDA, na sigla em inglês), continuam complicando desnecessariamente a questão, insistindo em proibir muitos produtos de cânhamo, como comidas e medicamentos, mas desistindo de abordar o tema de maneira séria, desistindo de estabelecer regras práticas que reflitam a realidade do amplo consumo desses produtos, sem falar no fato de que as proibições categóricas não trazem benefícios.
Outro grande problema tem sido a regulamentação excessiva da indústria canábica, o que levou a uma triste realidade em certos estados, nos quais é muito difícil avançar um negócio legal de cannabis, ao mesmo tempo em que o mercado paralelo se fortalece. Claro, as empresas canábicas devem pagar impostos como todas e estar sujeitas a regulamentação razoável, mas adicionar impostos e restrições adicionais é contraproducente. No Colorado, por exemplo, existe um imposto de 15% sobre todas as vendas a varejo de maconha e produtos com infusão de maconha (excluindo a cannabis terapêutica), o qual contrasta com o imposto de 2,9% que se aplica a outros produtos.
Washington está agora prestes a cometer outro erro, a saber, a classificação da maconha como substância controlada, mas com uso médico reconhecido. Por um lado, isso representaria um avanço em relação à situação atual, na qual a maconha está categorizada como uma substância perigosíssima, igual à heroína e ao LSD. Mas essa mudança representará uma transição da ilegalidade total a nível federal para um emaranhado burocrático que poderá ser habilmente navegado pela poderosa indústria farmacêutica, mas não pelas pequenas e médias empresas que hoje formam a maior parte do setor canábico.
O que falta nos EUA é que se retire a maconha da lista de substâncias controladas a nível federal, ao mesmo tempo em que se estabelece um regime regulatório de bom senso para os produtos derivados como alimentos, medicamentos e cosméticos. Ao mesmo tempo, os estados devem evitar a tentação de usar a cannabis como a proverbial vaca leiteira, o que acaba fortalecendo o mercado paralelo.
O Brasil tem uma oportunidade de ouro de se informar da experiência estadunidense e evitar os erros que foram cometidos no Norte.