Enquanto 2025 se encerra, o país se prepara para um novo ano com muitas emoções. É sempre assim a cada quatriênio desde 1994: Copa do Mundo e eleições presidenciais compartilham o mesmo ciclo de 365 dias. A diferença é que se no esporte a torcida é praticamente única, na política o país se divide, e, nos últimos ciclos eleitorais, o pleito foi cada vez mais acirrado.
Não se pode desconsiderar que desde 2022, a polarização política foi suavemente amenizada e o Brasil foi de fato um exemplo no julgamento de golpistas e candidatos a autocratas, mas da insuperável caixinha de surpresas que é a política brasileira, se pode esperar qualquer coisa. Eis que surgiu o nome do senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ) como candidato, abençoado pelo pai, Jair Messias Bolsonaro. Nosso Papa Doc (alcunha do ditador haitiano François Duvalier, que governou o Haiti entre 1957 e 1971) também tem seu Baby Doc (o filho Jean-Claude Duvalier, que o sucedeu no poder até 1986).
A candidatura de Flávio é uma dessas surpresas inesperadas que, quando analisadas pelo retrovisor, nos faz refletir sobre como não previmos isso antes. O jogo político brasileiro se mostrou um típico enredo de romance policial, que faz o leitor ver apenas aquilo que o autor deseja, enquanto esconde, na sua cara, os elementos que revelam a verdadeira prova do crime. Em se tratando dos Bolsonaro, talvez a palavra crime nem seja tão ambígua assim, já que o pai, criminoso—julgado e condenado—se comporta como um verdadeiro chefe de máfia.
Ainda que seja um jogo ficcional construído para negociar a dosimetria, o fato é que a candidatura de Flávio embaralha todas as cartas do jogo. Tenho minhas dúvidas, pois me parece uma atitude plenamente lógica para o clã Bolsonaro. Por ora, o mais prejudicado na disputa provavelmente será o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, ainda filiado ao Republicanos. Ficção ou não, a candidatura do senador tem ganhado materialidade na medida em que as pesquisas indicam que, se Flávio perde para Lula no segundo turno, o que ele efetivamente faz é derreter Tarcísio no primeiro. O governador, como um vira-lata, parece meter o rabo entre as pernas e diz apoiar Flávio. Parece que a fantasia de bolsonarista de Tarcísio era, na verdade, uma fantasia de palhaço.
Dizem que uma campanha presidencial começa quando as eleições anteriores terminam, e ao longo dos últimos anos, na corrida de Tarcísio pela presidência, a única coisa que parece ter funcionado foi a armadilha que o próprio governador armou para si mesmo. Até o momento, Tarcísio jogou mal o jogo. Parece até que fez aula com o Ciro Gomes, que sabe melhor que ninguém fazer o que não se deve fazer ao disputar eleições para o Planalto.
No entanto, é preciso dar um desconto para Tarcísio, pois ele é apenas sinédoque de parte considerável da direita conservadora brasileira. Tal como detalhado pelo colega Vinícius Rodrigues Vieira nesta coluna, o tarcisismo reúne segmentos distintos da direita brasileira além do bolsonarismo, com a agregação em São Paulo das viúvas do malufismo e dos tucanos, para não citar o pessoal da Faria Lima. É uma fórmula que repete a relação simbiótica entre esses setores conservadores e Bolsonaro pai, tal qual na Itália de Mussolini. Os conservadores pensavam que usariam Bolsonaro para realizar suas reformas, enquanto Bolsonaro usava a direita conservadora para chegar ao poder.
A derrota eleitoral de Bolsonaro e sua condenação devem ter feito os olhos de Tarcísio brilharem, pois supostamente o caminho estaria aberto para sua campanha presidencial. A ideia de um país cansado da polarização e a possibilidade de representar uma direita conservadora mais tradicional e menos radical, captando a centro-direita, parecia um papel perfeito para Tarcísio, o fisiológico. Mas eis que a relação simbiótica com bolsonarismo cobra seu preço e quando se pactua com o Diabo, é preciso pagar.
Tarcísio pensou que conseguiria os votos de Bolsonaro quando este não pudesse mais competir, mas percebeu, talvez tarde demais, que para ter esse apoio não restaria outra opção a não ser vestir a fantasia bolsonarista. Xingou Alexandre de Moraes e colocou o boné do Trump enquanto o presidente dos Estados Unidos aumentava os embargos comerciais ao Brasil. Péssimo timing. Parece até que ligou para o Ciro Gomes para pedir umas dicas. Foi diminuindo, diminuindo, até que anunciou que não seria mais candidato à presidência e disputaria o governo de São Paulo. Ninguém acreditou muito.
Passado um tempo, Tarcísio voltava a se aquecer para disputar o pleito. Com Bolsonaro efetivamente condenado, parecia mais palpável. Não sei se faltou ao governador leitura política, mas certamente faltou uma leitura antropológica. Após anos com o clã Bolsonaro em evidência, ele não entendeu que para o patriarca e seus descendentes o que vem na frente não é a política, mas a famiglia. E um Bolsonaro só confia em um Bolsonaro. E puro sangue. Michele que vá disputar o senado, pois na presidência ela não tasca.
A esquerda petista mais que apressadamente comemorou a candidatura de Flávio, pensando ser ele um palanque para Lula. Também tenho minhas dúvidas. Conforme a campanha ganha corpo, o marketing e o próprio campo político começam a dar substância ao candidato e torná-lo viável para as eleições. É possível que, caso Flávio realmente se firme como candidato, tenhamos um segundo turno disputado.
Em tempo, ao que tudo indica, Flávio se esforçará por se mostrar um Bolsonaro menos radical e intempestivo. Da famiglia, é aquele que se mostra mais próximo do Centrão, que tem tudo para aderir à candidatura do senador. Nesse carnaval, Flávio vai se fantasiar de Tarcísio, mantendo-se, porém, aquilo que é: um Bolsonaro.