Cálculo dos haveres e tributação: alguns nós que devem ser desatados

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Neste segundo artigo da série sobre conflitos societários, dois temas serão abordados: a) a metodologia de cálculo da apuração de haveres do sócio retirante[1]; e b) a tributação incidente no pagamento dos haveres.

Vale lembrar, como se viu no primeiro artigo[2]: contratos ou estatutos sociais bem elaborados, acompanhados de acordos de sócios disciplinando a metodologia do valuation da sociedade e o respectivo pagamento ao sócio descontente, certamente evitam conflitos e longuíssimas demandas judiciais ou arbitrais. O motivo é simples: o direito brasileiro cada vez mais respeita o acordado entre as partes.

Porém, se não há pacto sobre a metodologia da apuração de haveres e sobre o prazo de seu pagamento, a regra legal determina a elaboração do famigerado “balanço de determinação” com o pagamento pela sociedade em noventa dias[3] do evento[4] ao sócio retirante.

E aí começa o problema! Quem sai da sociedade sempre acha que ela vale milhões; e quem fica, sempre acha que não vale nada, não obstante o inerente paradoxo de, se não vale nada, qual é o motivo de estar ficando com ela.

Atualmente, o Superior Tribunal de Justiça[5] adota a tese de que os haveres devem ser calculados com base no valor patrimonial da sociedade, se não houver disposição contratual (critério legal versus critério contratual), simulando uma “dissolução total” da sociedade, mas considerado o valor justo dos ativos[6]. Isto é, os bens tangíveis e intangíveis (marca, patentes, fundo de comércio etc.) devem entrar na simulação do encerramento da sociedade para apurar o valor dos haveres[7].

A mesma corte assevera que o chamado valor econômico da sociedade, calculado com base na metodologia do fluxo de caixa descontado a valor presente, não deve ser considerado, pois pode ensejar: (i) desestímulo ao cumprimento dos deveres dos sócios minoritários; (ii) incentivo ao exercício do direito de retirada, em prejuízo da estabilidade das empresas, e (iii) enriquecimento indevido do sócio desligado em detrimento daqueles que permanecem na sociedade (vide nota de rodapé 6).

Quanto aos três pontos acima, tenho minhas dúvidas. A sociedade continuará no mercado – lembre-se do cálculo de risco dos sócios ao entrarem em uma sociedade e o prazo indeterminado delas – e, assim sendo, me parece que o cálculo dos haveres deve lembrar do futuro dela[8]. Ora, o sócio que exerce o direito de recesso, pois não concordou com os rumos futuros da sociedade a partir de uma decisão assemblear, deve receber seus haveres com base na sua expectativa de crescimento na sociedade até aquele momento, o que inclui bônus e ônus, ativos e passivos e, também, a projeção do futuro da sociedade até o momento em que foi vencido na assembleia.

Desconsiderar o futuro, me parece, gera um incentivo cruel, aprofundado pela assimetria de informação entre minoritários e majoritários, e parafraseando ao contrário a jurisprudência: i) desestímulo ao cumprimento dos deveres dos sócios majoritários de preservação da empresa e função social; (ii) sopesar as decisões (dos sócios majoritários) para não incentivar o exercício do direito de retirada, em prejuízo da estabilidade das empresas; e (iii) enriquecimento indevido dos sócios remanescentes em detrimento do sócio desligado, pois se apropriarão do resultado futuro da sociedade.

Naturalmente, somente a casuística poderá dar a resposta correta ao melhor posicionamento, mas o pêndulo não pode ficar estancado nem em uma, nem em outra posição. Exemplo clássico: um conflito societário em uma startup. O fluxo de caixa futuro é muito mais valioso e representativo da ambição e do combinado dos sócios do que alguns produtos e projetos não lançados no mercado.

Quanto à questão tributária, vale dividir em duas hipóteses a saída de um sócio da sociedade:

No recebimento de haveres pelo sócio retirante, o sujeito responsável pelo pagamento do tributo sobre ganho de capital é a pessoa jurídica. Ou seja, o sócio que receber os seus haveres, com acréscimo patrimonial, não pagará o imposto de renda pelo ganho de capital e sim a pessoa jurídica[9]. Isto decorre da leitura do artigo 22, parágrafos 1º e 4º, da Lei 9.249/95[10]. Observe-se a jurisprudência[11]: “Na hipótese de avaliação pelo valor de mercado, a diferença entre este e o valor contábil é considerada ganho de capital da pessoa jurídica e, portanto, incluída na base de cálculo do imposto de renda e da contribuição social sobre o lucro líquido da empresa. Nesse caso, o montante não integra a base de cálculo do imposto de renda pessoa física devido pelo sócio que o recebe a título de apuração de haveres, na forma dos §§1º e 4º do art. 22 da Lei 9.249/95″.
Tomar cuidado: se, por acordo das partes, o pagamento ao sócio desligado for realizado através de negócio jurídico de compra e venda, cessão de participação societária ou qualquer outra denominação, haverá necessidade de recolhimento do imposto de renda pelo ganho de capital incidente na operação[12]. A alíquota é progressiva, variando de 15% a 22,5% a depender do ganho de capital[13], devendo o imposto ser pago pelo sócio que está alienando a sua participação societária.

Como se percebeu, seja no cálculo dos haveres, seja na tributação incidente à operação, muita cautela deve existir, com vantagem, sempre, ao pactuado entre os sócios. As opções são diversas, mas sempre é possível alcançar o pagamento justo ao sócio retirante, estudar uma tributação mais favorecida, preservando-se a empresa e sua função social.

Nó a gente desata com calma!

[1] Aqui designaremos “retirante” independentemente do motivo da saída do sócio (exclusão, recesso, morte etc.), mas sugere-se sempre o aprofundamento.

[2] Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/conflitos-societarios-a-desinteligencia-dos-socios-destruindo-a-empresa-16062024.

[3] Art. 1.031, CC. Nos casos em que a sociedade se resolver em relação a um sócio, o valor da sua quota, considerada pelo montante efetivamente realizado, liquidar-se-á, salvo disposição contratual em contrário, com base na situação patrimonial da sociedade, à data da resolução, verificada em balanço especialmente levantado. § 2 o A quota liquidada será paga em dinheiro, no prazo de noventa dias, a partir da liquidação, salvo acordo, ou estipulação contratual em contrário.

[4] Art. 605, CPC:  A data da resolução da sociedade será: I – no caso de falecimento do sócio, a do óbito; II – na retirada imotivada, o sexagésimo dia seguinte ao do recebimento, pela sociedade, da notificação do sócio retirante; III – no recesso, o dia do recebimento, pela sociedade, da notificação do sócio dissidente; IV – na retirada por justa causa de sociedade por prazo determinado e na exclusão judicial de sócio, a do trânsito em julgado da decisão que dissolver a sociedade; e V – na exclusão extrajudicial, a data da assembleia ou da reunião de sócios que a tiver deliberado.

[5] 2. Cinge-se a controvérsia a definir se o Tribunal de origem, ao afastar a utilização da metodologia do fluxo de caixa descontado para avaliação dos bens imateriais que integram o fundo de comércio na fixação dos critérios da perícia contábil para fins de apuração de haveres na dissolução parcial de sociedade, violou o disposto nos artigos 1.031, caput, do Código Civil e 606, caput, do Código de Processo Civil de 2015. 3. O artigo 606 do Código de Processo Civil de 2015 veio reforçar o que já estava previsto no Código Civil de 2002 (artigo 1.031), tornando ainda mais nítida a opção legislativa segundo a qual, na omissão do contrato social quanto ao critério de apuração de haveres no caso de dissolução parcial de sociedade, o valor da quota do sócio retirante deve ser avaliado pelo critério patrimonial mediante balanço de determinação. 4. O legislador, ao eleger o balanço de determinação como forma adequada para a apuração de haveres, excluiu a possibilidade de aplicação conjunta da metodologia do fluxo de caixa descontado. 5. Os precedentes do Superior Tribunal de Justiça acerca do tema demonstram a preocupação desta Corte com a efetiva correspondência entre o valor da quota do sócio retirante e o real valor dos ativos da sociedade, de modo a refletir o seu verdadeiro valor patrimonial. 6. A metodologia do fluxo de caixa descontado, associada à aferição do valor econômico da sociedade, utilizada comumente como ferramenta de gestão para a tomada de decisões acerca de novos investimentos e negociações, por comportar relevante grau de incerteza e prognose, sem total fidelidade aos valores reais dos ativos, não é aconselhável na apuração de haveres do sócio dissidente. 7. A doutrina especializada, produzida já sob a égide do Código de Processo Civil de 2015, entende que o critério legal (patrimonial) é o mais acertado e está mais afinado com o princípio da preservação da empresa, ao passo que o econômico (do qual deflui a metodologia do fluxo de caixa descontado), além de inadequado para o contexto da apuração de haveres, pode ensejar consequências perniciosas, tais como (i) desestímulo ao cumprimento dos deveres dos sócios minoritários; (ii) incentivo ao exercício do direito de retirada, em prejuízo da estabilidade das empresas, e (iii) enriquecimento indevido do sócio desligado em detrimento daqueles que permanecem na sociedade. 8. Recurso especial não provido. (STJ – REsp: 1877331 SP 2019/0226289-5, Relator: Ministra NANCY ANDRIGHI, Data de Julgamento: 13/04/2021, T3 – TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 14/05/2021) (realce nosso)

[6] A doutrina especializada representada por Alfredo Assis: “(…)na apuração dos seus haveres, esta deve proporcionar-lhe aquilo que, na liquidação total do patrimônio social, ele receberia. Ou seja, se há um bem cujo valor de mercado é diverso daquele pelo qual figura na escrituração da sociedade, é o primeiro que deve prevalecer. E é nesse sentido que deve ser interpretada a regra sob análise, quando alude à situação patrimonial da sociedade, verificada em balanço especialmente levantado. O balanço, aí, não deve ser entendido como aquele elaborado segundo os dados contábeis no dia do rompimento do ajuste; difere do patrimonial, previsto no art. 1.020 do Código Civil, não só em relação ao momento, mas também no modo de ser elaborado. Se há bens cujo preço tem cotação no mercado, esse será o valor a ser considerado, e não o que figura na escrituração. Se há bens imóveis e edificações, é necessário que sejam avaliados por um engenheiro ou, na sua projeção dinâmica, por um economista. Ajustados os valores dos bens que integram o estabelecimento da sociedade de acordo com essa perspectiva, o balanço será, então, levantado por contabilista habilitado. Salvo previsão diversa ou situação jurídica que não os comporte, entram na avaliação, também, os bens incorpóreos, ditos intangíveis, que raramente figuram na escrituração, como a denominação social, a marca, eventuais modelos ou desenhos industriais, invenções, modelos de utilidade, aviamento (fundo de comércio) etc.” (NETO, Alfredo. Art. 1031 In: NETO, Alfredo. Direito de Empresa – Ed. 2023. São Paulo (SP):Editora Revista dos Tribunais. 2023.) (realce nosso)

[7] Em função disso, o Artigo 606 do CPC veio para esclarecer que, na omissão do contrato social, “o juiz definirá, como critério de apuração de haveres, o valor patrimonial apurado em balanço de determinação, tomando-se por referência a data da resolução e avaliando-se bens e direitos do ativo, tangíveis e intangíveis, a preço de saída, além do passivo também a ser apurado de igual forma”.

[8] Nunca é demais esquecer a decisão do STJ de 2015: “DIREITO EMPRESARIAL. DISSOLUÇÃO PARCIAL DE SOCIEDADE POR QUOTAS DE RESPONSABILIDADE LIMITADA. SÓCIO DISSIDENTE. CRITÉRIOS PARA APURAÇÃO DE HAVERES. BALANÇO DE DETERMINAÇÃO. FLUXO DE CAIXA. 1. Na dissolução parcial de sociedade por quotas de responsabilidade limitada, o critério previsto no contrato social para a apuração dos haveres do sócio retirante somente prevalecerá se houver consenso entre as partes quanto ao resultado alcançado. 2. Em caso de dissenso, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça está consolidada no sentido de que o balanço de determinação é o critério que melhor reflete o valor patrimonial da empresa. 3. O fluxo de caixa descontado, por representar a metodologia que melhor revela a situação econômica e a capacidade de geração de riqueza de uma empresa, pode ser aplicado juntamente com o balanço de determinação na apuração de haveres do sócio dissidente. 4. Recurso especial desprovido. (REsp 1335619/SP, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, Rel. p/ Acórdão Ministro JOÃO OTÁVIO DE NORONHA, TERCEIRA TURMA, julgado em 03/03/2015, DJe 27/03/2015).”

[9] SOLUÇÃO DE CONSULTA COSIT Nº 99022/2018 (Publicada no DOU de 21/12/2018) PARTICIPAÇÕES SOCIETÁRIAS. DISSOLUÇÃO PARCIAL DE SOCIEDADE. DEVOLUÇÃO DE CAPITAL EM DINHEIRO. FORMA DE INCIDÊNCIA. Na dissolução parcial de sociedade, com restituição do capital em dinheiro, a parte do patrimônio líquido da pessoa jurídica atribuída ao sócio que exceder ao custo de aquisição da participação societária admitido pela legislação será tributada segundo a natureza de cada conta componente do patrimônio líquido.

[10] Art. 22. Os bens e direitos do ativo da pessoa jurídica, que forem entregues ao titular ou a sócio ou acionista. a título de devolução de sua participação no capital social, poderão ser avaliados pelo valor contábil ou de mercado. § 1º No caso de a devolução realizar-se pelo valor de mercado, a diferença entre este e o valor contábil dos bens ou direitos entregues será considerada ganho de capital, que será computado nos resultados da pessoa jurídica tributada com base no lucro real ou na base de cálculo do imposto de renda e da contribuição social sobre o lucro líquido devidos pela pessoa jurídica tributada com base no lucro presumido ou arbitrado. § 2º Para o titular, sócio ou acionista, pessoa jurídica, os bens ou direitos recebidos em devolução de sua participação no capital serão registrados pelo valor contábil da participação ou pelo valor de mercado, conforme avaliado pela pessoa jurídica que esteja devolvendo capital. § 3º Para o titular, sócio ou acionista, pessoa física, os bens ou direitos recebidos em devolução de sua participação no capital serão informados, na declaração de bens correspondente à declaração de rendimentos do respectivo ano-base, pelo valor contábil ou de mercado, conforme avaliado pela pessoa jurídica.§ 4º A diferença entre o valor de mercado e o valor constante da declaração de bens, no caso de pessoa física, ou o valor contábil, no caso de pessoa jurídica, não será computada, pelo titular, sócio ou acionista, na base de cálculo do imposto de renda ou da contribuição social sobre o lucro líquido.

[11] TRF-4 – APL: 50099597320204047108, Relator: EDUARDO VANDRÉ OLIVEIRA LEMA GARCIA, Data de Julgamento: 13/12/2022, SEGUNDA TURMA.

[12] Confira-se o artigo 3º, da Lei nº. 7713/88, que dispõe sobre o imposto de renda: O imposto incidirá sobre o rendimento bruto, sem qualquer dedução, ressalvado o disposto nos arts. 9º a 14 desta Lei. § 1º Constituem rendimento bruto todo o produto do capital, do trabalho ou da combinação de ambos, os alimentos e pensões percebidos em dinheiro, e ainda os proventos de qualquer natureza, assim também entendidos os acréscimos patrimoniais não correspondentes aos rendimentos declarados.   § 2º Integrará o rendimento bruto, como ganho de capital, o resultado da soma dos ganhos auferidos no mês, decorrentes de alienação de bens ou direitos de qualquer natureza, considerando-se como ganho a diferença positiva entre o valor de transmissão do bem ou direito e o respectivo custo de aquisição corrigido monetariamente, observado o disposto nos arts. 15 a 22 desta Lei. § 3º Na apuração do ganho de capital serão consideradas as operações que importem alienação, a qualquer título, de bens ou direitos ou cessão ou promessa de cessão de direitos à sua aquisição, tais como as realizadas por compra e venda, permuta, adjudicação, desapropriação, dação em pagamento, doação, procuração em causa própria, promessa de compra e venda, cessão de direitos ou promessa de cessão de direitos e contratos afins. § 4º A tributação independe da denominação dos rendimentos, títulos ou direitos, da localização, condição jurídica ou nacionalidade da fonte, da origem dos bens produtores da renda, e da forma de percepção das rendas ou proventos, bastando, para a incidência do imposto, o benefício do contribuinte por qualquer forma e a qualquer título.

[13]  Art. 21, Lei nº. 13.259/16: O ganho de capital percebido por pessoa física em decorrência da alienação de bens e direitos de qualquer natureza sujeita-se à incidência do imposto sobre a renda, com as seguintes alíquotas: I – 15% (quinze por cento) sobre a parcela dos ganhos que não ultrapassar R$ 5.000.000,00 (cinco milhões de reais); II – 17,5% (dezessete inteiros e cinco décimos por cento) sobre a parcela dos ganhos que exceder R$ 5.000.000,00 (cinco milhões de reais) e não ultrapassar R$ 10.000.000,00 (dez milhões de reais); III – 20% (vinte por cento) sobre a parcela dos ganhos que exceder R$ 10.000.000,00 (dez milhões de reais) e não ultrapassar R$ 30.000.000,00 (trinta milhões de reais); e IV – 22,5% (vinte e dois inteiros e cinco décimos por cento) sobre a parcela dos ganhos que ultrapassar R$ 30.000.000,00 (trinta milhões de reais).