Se existe um vinho que não deu certo, ele se chama cognac. A estória nos conta que o conhaque tem origem no vinho que envelheceu e “estragou” nas barricas de carvalho das caravelas portuguesas dos anos 1500, que mais tarde foram destilados por franceses e ingleses, originando-se uma das bebidas mais nobres do mundo.
Já o vinho que deu certo é a poesia engarrafada, parafraseando Robert Louis Stevenson.
Realmente, há mais filosofia numa garrafa de vinho do que em todos os livros do mundo (Louis Pasteur).
O ano de 1532 nos remete às primeiras mudas de vitis vinífera, que surgiram no Brasil trazidas pela expedição de Martim Afonso de Sousa, sendo Brás Cubas o responsável por plantar as primeiras videiras na região de Santos, nas encostas da Serra do Mar.
Aliás, acredita-se que tais primeiras videiras são parentes do tão amado português Pera Manca – vinho supostamente escolhido por Pedro Álvares Cabral para acompanhá-lo durante as grandes navegações, inclusive, utilizado para brindar o encontro com a população indígena do Brasil, em 1500.
A literatura nos indica que a produção de vinho só veio a decolar no final do século 19, com a colonização italiana no Rio Grande do Sul, a partir do ano de 1875. É lá, ainda, onde se concentra o maior volume de produção no país, quase 90%, de acordo com o IBGE.
Segundo a Embrapa, atualmente a viticultura no Brasil ocupa uma área de aproximadamente 78 mil hectares, com a produção de uvas na ordem de 1,5 milhão de toneladas/ano, das quais cerca de 50% são destinadas ao processamento, para a elaboração de vinhos.
Ainda, dados do IBGE apontam que o setor movimenta quase R$ 5 bilhões na economia do país, que conta com mais de mil vinícolas.
O que nos dizem esses dados? A indústria de vinhedos tem um impacto expressivo na economia brasileira, sem contar o enoturismo que tem espaço de sobra para atingir o “padrão ouro” esperado no país (vinícolas, spa do vinho, hotéis boutique etc).
Um olhar desatento ao setor pode impedir o desenvolvimento de uma cadeia inteira que vai da atividade agrícola ao turismo, sufocando um ecossistema socioeconômico e cultural de inegável relevância.
No Brasil, os tributos são responsáveis por cerca de 50% do preço final do vinho (incidência de tributos como, IPI, ICMS, PIS e Cofins, além do imposto de importação de 27% sobre os vinhos importados da União Europeia).
Já em outros países, a política fiscal é de incentivo. Na Europa, o vinho é símbolo de tradição, que prestigia gerações e preserva as características únicas de cada terroir. A consequência disso são políticas públicas que visam estimular o consumo e o setor.
Em geral, a carga tributária sobre o vinho em países europeus como Itália, França, Portugal não superam 20% (IVA).
Apesar do texto da justificativa da PEC 45/2019, em sua versão original, convertida na EC 132/2023 (reforma tributária), ressaltar que “os efeitos esperados da mudança proposta são extremamente relevantes, caracterizando-se não apenas por uma grande simplificação do sistema tributário brasileiro – mas também, e principalmente, por um significativo aumento da produtividade e do PIB potencial do Brasil”, estamos caminhando no sentido oposto.
A introdução (na calada da noite) do imposto seletivo na reforma tributária, inspirado no americano “sin tax”, veio a se consolidar numa proposta de taxar produtos nocivos ao meio ambiente e à saúde, dentre eles: a bebida alcoólica.
Nesse contexto, o PLP 68/2024, recentemente encaminhado pelo governo ao Congresso, instituiu o imposto seletivo que incidirá sobre a produção, extração, comercialização ou importação de bens prejudiciais à saúde ou ao meio ambiente.
Em meio ao subjetivismo do critério do que seria elegível ao imposto seletivo, isto é, o que realmente seria prejudicial, nocivo à saúde ou ao meio ambiente, o art. 393, § 1º, do PLP, trouxe um rol taxativo, que inclui as bebidas alcoólicas (NCM´s 2203; 2204; 2205; 2206; 2208).
Apesar de prever a incidência do imposto sobre a produção, extração, comercialização ou importação, a proposta também estabelece como fato gerador do imposto o consumo do produto pelo próprio produtor ou fabricante (art. 397, VI).
Estranha essa hipótese de incidência, quando a proposta sujeita as bebidas alcoólicas ao imposto seletivo quando acondicionados em embalagem primária, assim entendida aquela em contato direto com o produto e destinada ao consumidor final.
Sobre a alíquota, que será prevista em lei ordinária, propõe-se um modelo pelo qual a tributação se dará através de uma alíquota específica (por quantidade de álcool) e uma alíquota ad valorem.
Enquanto a proposta acredita que o imposto seletivo pode contribuir com a subsistência de políticas públicas que possam minimizar danos para a sociedade de forma efetiva, parece um contrassenso pensar numa seletividade “negativa”, enquanto não se observa a relevância socioeconômica do produto, por exemplo.
Nesse sentido, em termos de eficiência fiscal, cuja extrafiscalidade visa combater o “grave problema de saúde pública”, é possível admitir que a incidência do imposto seletivo sobre as bebidas alcoólicas trará benefícios à saúde?
No caso do vinho, aumentar a carga tributária a ponto de desestimular o seu consumo trará resultados positivos à sociedade em termos de saúde pública?
Quais serão os critérios e as métricas que irão valorar esses resultados? Qual a meta do governo com esse modelo, se não é o imposto seletivo um tributo essencialmente arrecadatório?
Aliás, quão nocivo à saúde é o vinho? Não seria uma tremenda timidez considerar o vinho como mera bebida alcoólica?
Nessa concepção, a legislação brasileira define o vinho como a bebida obtida pela fermentação alcoólica do mosto simples de uva sã, fresca e madura, sendo o mosto definido como o produto obtido pelo esmagamento ou prensagem da uva sã, fresca e madura, com a presença ou não de suas partes sólidas (art. 3º e art. 4º, da Lei 7.678/88).
Da simples leitura da previsão legal, se observa que o processo de vinificação difere o vinho das demais bebidas, quando o processo é elaborado a partir da fermentação do mosto e não da destilação, que produz bebidas com teor alcoólico muito mais elevado.
A própria legislação brasileira cria classificações distintas entre a bebida fermentada, sendo aquela obtida por processo de fermentação alcoólica (art. 12, II, a), do Decreto 6.871/2009), e a bebida destilada, obtida por processo de fermento-destilação, pelo rebaixamento do teor alcoólico de destilado alcoólico simples, pelo rebaixamento do teor alcoólico do álcool etílico potável de origem agrícola ou pela padronização da própria bebida alcoólica destilada (art. 12, II, do Decreto 6.871/2009).
Essa distinção é facilmente percebida no teor alcoólico. O percentual alcoólico do vinho definido no Brasil deve respeitar o limite de 8,6% a 14% (art. 9º da Lei 7.678/88), enquanto bebidas destiladas podem variar de 38% a 54% (art. 51 do Decreto 6.871/2009).
Fazendo uma interpretação conjugada do critério de prejudicialidade do imposto seletivo com o percentual alcoólico das bebidas, é inegável que o vinho não pode ser tratado da mesma forma que bebida alcoólica destilada, por exemplo.
Por outro lado, se não há controle de consumo, a proposta de ampliar a carga sobre bebidas com maior teor alcoólico parece ser uma solução obtusa.
No caso do vinho, há também o aspecto nutricional. Recentemente, a Comissão de Agricultura e Reforma Agrária do Senado aprovou o PL 3594/2023, que classifica o vinho como alimento natural, a fim de atualizar a legislação em vigor, alinhá-la às práticas internacionais e promover o desenvolvimento sustentável do setor.
O projeto propõe a alteração do art. 3º da Lei 7.678/88, que passará a vigorar com a seguinte redação: “Vinho é o alimento natural obtido exclusivamente da fermentação alcoólica, total ou parcial, dos açúcares do mosto de uva fresca, madura e sã, prensada ou não”.
A justificação do projeto destaca que “há muitos séculos a bebida serve como alimento e até o século 19 era base da dieta alimentar de uma parcela relevante da população” e mais “em regiões produtoras de vinho, o produto passou a ser usado como alimento funcional, como parte integrante da dieta saudável. O processo de fermentação faz o valor nutricional da uva aumentar, transformando o vinho em importante fonte nutricional. Traz benefícios à saúde, como a redução da pressão arterial e melhora o sistema cardiovascular e intestinal”.
O projeto ainda considera os benefícios à saúde em elementos nutricionais como ferro, cobre, zinco e manganês, além de vitaminas, como a B12, a B6 e a B2.
A ideia de que o vinho é alimento e não bebida alcoólica não é nova, esse tratamento é realidade em diversos outros países, como, por exemplo, Uruguai e Espanha, pioneira nessa iniciativa desde 2003.
Aliás, do lado dos consumidores e produtores, a expectativa é que eventual acordo entre Mercosul-UE possa fortalecer esse tema. Enquanto se discute eliminar o imposto de importação sobre vinhos importados, pouco se fala sobre o tratamento interno do produto para fins tributários.
A medida é oportuna e necessária em tempos da polêmica em torno do conceito de vinho natural, que prestigia a essência dos métodos mais orgânicos de produção, que não envolve qualquer tipo de mecanização ou tecnologia, além de evitar o uso de conservantes e demais substâncias encontradas no vinho industrializado.
Definitivamente, não há como associar o vinho a produtos nocivos à saúde a ponto de desestimular a sua produção e consumo.
Nas vitórias é merecido, nas derrotas é necessário.