Brasil derrapa no desafio de regular dispositivos médicos

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Embora seja notável o avanço da tecnologia que, diga-se, aliás, revela-se cada vez mais fundamental para diagnósticos e tratamentos de diversas doenças, ainda existem alguns percalços a serem superados.

Há muitos anos (na época embrionária da Saúde 4.0) tive a oportunidade de discutir o tema inovação na saúde com o professor dr. Lauro Moretto, presidente da Academia Nacional de Farmácia, e já naquela oportunidade pudemos concluir que o Brasil, embora um dos maiores mercados de dispositivos médicos, derrapa no desafio de equacionar a regulamentação e inovação.

Pontue-se apenas para contextualização que somente em 2023, depois de quase 20 anos da edição da norma de regência de registro de dispositivos médicos  no Brasil (RDC 185/2001) a Anvisa publicou a RDC 777/2023, que, em conjunto com a RDC 751/2022, atualizou as regras a fim de adequá-las aos tempos modernos.

Nesse passo, vale acentuar que o termo inteligência artificial foi cunhado numa conferência no Dartmouth College, em 1956 por McCarthy e col.[1], e a sua aplicação em medicina iniciou-se com o artigo de Shortlife em 1963[2].

Fato é que a Anvisa busca sempre estabelecer padrões rigorosos para o registro dos MDs exigindo processos transparentes e gerenciamento de qualidade.

Aliás, tudo me leva a crer que, diferentemente do que alguns advogados vêm dizendo, no tocante à transparência aos indivíduos e a IA, tal preocupação não começou com o PL da Inteligência Artificial do senador Rodrigo Pacheco, mas foi através da análise da atuação da Anvisa que o senador pôde esculpir o PL.

Ocorre, contudo, que, enquanto a Anvisa se debruça sobre a edição de regulamentos relevantes para assegurar que os produtos colocados no mercado sejam seguros e funcionem conforme o esperado, de outro, considerando que inovação em saúde é um processo sem fim, as empresas caminham a passos largos na exaustiva busca por equipamentos cada vez mais modernos, como é o caso do Software as a Medical Device (SaMD).

Sobreleva notar que a Anvisa possui técnicos altamente capacitados e experientes para a análise e atualização do arcabouço regulatório, inclusive no Mercosul, através de protocolos de cooperação. Contudo, enfrenta há muitos anos engessamento típico de um país extremamente burocrático, acabando por colocar em xeque muitas vezes o acesso a produtos modernos capazes de auxiliar na garantia de melhor qualidade de vida dos pacientes brasileiros.

No que tange à inovação em saúde, lembro de alguns anos atrás ter feito para o Instituto Brasileiro de Direito Empresarial um webinar sobre startups de saúde e como a telemedicina e a IA poderiam impactar no cenário pós-Covid. Comigo participaram o dr. Gonzalo Vecina Neto, fundador da Anvisa e ex-conselheiro do Instituto Paulista de Direito Regulatório; o dr. Renato Porto, ex-diretor da Anvisa e atualmente presidente-executivo da Interfarma; e a dra. Mariana Alegre, ex-coordenadora do IPDR e hoje diretora associada global na Eli Lilly and Company, além do destacado e sempre lembrado dr. Claudio Lottenberg, atualmente presidente institucional do Instituto Coalizão Saúde.

Em tal oportunidade, pude constatar que a inovação poderia ser um caminho magistral para enfrentar até mesmo pandemias, desde que, naturalmente, fosse bem regulamentada, notadamente porque sem regulamentação não se garante o já famigerado trinômio qualidade, segurança e eficácia.

Pois bem. Percebe-se que os técnicos da Anvisa têm um grau de conhecimento profundo. Mas, ao mesmo tempo, resta evidenciado que existe um hiato gerado entre a vontade de se regular bem e o acesso a equipamentos dotados de tecnologia de ponta.

Não é demais pontuar aquilo que já é notório: a tecnologia, ao mesmo tempo em que reduz gargalos crônicos como melhoria de fluxo de atendimento e consecutiva redução de custos, pode ser uma verdadeira aliada e é um pilar na batalha pela garantia de melhor qualidade de vida dos pacientes.

O primeiro presidente da Anvisa, Gonzalo Vecina Neto, incumbido da delicada missão de revisar o presente artigo, ao esclarecer sobre a necessidade da regulação de dispositivos médicos, enfatizou que esta precisa ser feita a um só tempo para garantir a saúde e permitir a inovação, e realçou que “apenas existe efetiva regulação se a saúde é atendida através de produtos o mais inovadores possíveis, o que exige uma interface entre a Anvisa e a sociedade”.

Já quanto à política pública de saúde, o professor titular do Departamento de Política, Gestão e Saúde da Faculdade de Saúde Pública da USP Fernando Aith, com quem tive a honra de escrever o presente artigo, com percuciência esclarece que “é de rigor a criação de políticas claras de mecanismos adequados que incentivem a transferência de know-how e, consecutivamente, acelerem a propriedade intelectual para criação de produtos com menor custo que possam ser utilizados pelo SUS”.

Assim, surge uma necessária indagação: onde paira a dificuldade da Anvisa de regulamentar o setor de forma ligeiramente mais efetiva e célere?

Insistimos que por 20 anos ficamos reféns de uma RDC que acabou ficando defasada em razão do avanço da tecnologia e novamente nos deparamos com esse problema. Embora a Anvisa tenha começado a disciplinar com alicerce em normativas e orientações europeias o Software as a Medical Device, ainda não existe qualquer norma relativa à inteligência artificial.

Pior. De acordo com informações extraídas do próprio site[3] da Anvisa, nesse momento (encerrado metade do ano), apenas 27,27% das propostas da atual Agenda Regulatória foram concluídas.

Nota-se, assim que tem-se tampado o sal com a peneira e mantidas falhas de mercado que certamente acabam afetando negativamente não apenas as empresas que investem em inovação, mas, sobretudo, os pacientes que acabam ficando sem acesso a produtos que já existem em outros países.

Acredito sinceramente diante de todo esse contexto que, conforme bem registrado por Claudio Lottenberg em recente conversa que tive com ele, os técnicos e especialistas da Anvisa devem ser mais valorizados. Apenas assim o Brasil conseguirá disponibilizar equipamentos relevantes até mesmo para apoio à decisão clínica e resguardar de forma ainda mais efetiva a saúde da população através de produtos inovadores.

[1] McCarthy J, Minsky ML, Rochester N, Shanon CE. A Proposal of the Dartmouth Summer Research Project on Artificial Intelligence. Disponível em:http://en.wikipedia.org/wiki/History_of_artificial_intelligence
» http://en.wikipedia.org/wiki/History_of_artificial_intelligence

[2] Shortlife EH. The Adolescence of AI in medicine: will the field come of age in the ‘90s. Artif Intell Med. 1993;5(2):93-166.

[3] https://app.powerbi.com/view?r=eyJrIjoiOTYzZTliMjAtZGJkMS00NGE1LTg0MTYtZGFkY2Q4ZTRkZjBmIiwidCI6ImI2N2FmMjNmLWMzZjMtNGQzNS04MGM3LWI3MDg1ZjVlZGQ4MSJ9