Uma das principais consequências da ideologia dos livres mercados é conceber os trabalhadores como meros custos a serem minimizados a qualquer preço. Embora tal visão não seja propriamente uma novidade, já que há pelo menos dois séculos encontramos contribuições de economistas incorporando premissas ou conclusões que refletem despreocupação ou mesmo desprezo em relação a trabalhadores e pobres, fato é que o neoliberalismo auxiliou a fortalecer e consolidar essa compreensão.
Nesse contexto, a ideia é relegar trabalhadores às leis da oferta e da procura – como se elas funcionassem perfeitamente nos mercados de trabalho – e considerar qualquer proteção jurídica ao trabalho como disfuncional. Chega-se ao absurdo de se defender que qualquer proteção ao trabalhador levará ao resultado oposto, em um exemplo clássico da retórica da perversidade a que se refere Hirshman1.
Já tive a oportunidade de explorar a questão da desregulação do mercado de trabalho diversas vezes, tanto para demonstrar o equívoco de suas premissas2, como para demonstrar os trabalhos empíricos recentes que desmontam a tese de que maiores salários e maior proteção do trabalhador levam necessariamente à redução da oferta de trabalho3. Mais do que isso, mostrei o quanto essa lógica perversa está muito mais relacionada a aspectos ideológicos e culturais do que a evidências4.
Não obstante as evidências atuais sobre os mercados de trabalho, ainda é muito difícil superar a teoria econômica neoliberal. Recentemente muitas pessoas, dentre as quais eu me incluo, ficaram assombradas com a crueza de um vídeo em que o empresário bilionário Tim Gurner expõe a sua visão sobre como os trabalhadores precisam ser subjugados5.
É chocante que até discussões que pareciam superadas – como a impossibilidade ética e jurídica do trabalho infantil – voltaram ao discurso público tanto no Brasil como no mundo, sempre com o intuito de baratear o custo do trabalho6. Impressiona também ver como o nosso Supremo Tribunal Federal vem destruindo paulatinamente o Direito do Trabalho, abrindo espaço para a legitimação da fraude, tendo por base uma teoria econômica que, além de incompatível com a Constituição Federal, pode ser considerada ultrapassada em razão das atuais evidências7.
De fato, para além das questões jurídicas, políticas e sociais envolvidas, há que se ressaltar que, na esfera econômica, cada vez mais há evidências de que não só o raciocínio neoliberal é equivocado, como também que bons empregos, vistos tanto sob o ponto de vista da remuneração como também sob o ponto de vista da qualidade de vida dos empregados, são bons também para as empresas.
Nesse sentido, é preciso ressaltar o trabalho de Zeynep Ton, Professora de Negócios no MIT School of Business e autora do livro The Case for Good Jobs. How Great Companies Bring Dignity, Pay & Meaning to Everyone’s Work8. Suas recentes pesquisas vêm atraindo a atenção da grande mídia, o que propiciou inclusive que a Revista Time lhe dedicasse a interessante reportagem Good jobs are good business, explorando vários de seus achados9.
Para Zeynep Ton, maus salários impactam muito na vida dos trabalhadores, pois estes não têm margem para emergências ou despesas inesperadas, precisam ter múltiplos trabalhos, ficam sem tempo para outras obrigações, dentre outros fatores que aumentam o stress e comprometem o funcionamento cognitivo dos trabalhadores, bem como a sua saúde mental e física, assim aumentando a possibilidade de erros e fazendo com que execução de tarefas e atendimentos sejam menos confiáveis.
Porém, os baixos salários trazem também efeitos nefastos para as empresas, especialmente no que diz respeito ao aumento da rotatividade da mão de obra, que chega a exigir a reposição anual de toda a força de trabalho em alguns setores, como call centers, armazenamento, varejo e restaurantes.
Segundo Ton, para muitas empresas atendidas pelo Good Jobs Institute, os empregadores estão destinando de 10 a 25% dos seus custos totais com trabalho para a reposição de empregados, o que envolve os custos para recrutar, treinar e atingir índices de produtividade. Em casos extremos, esses custos podem chegar a 45%.
Mas não é só: tais custos nem se comparam aos que decorrem da inevitável perda de qualidade que ocorre com a execução operacional: vendas perdidas ou diminuídas em razão de erros, serviços mais lentos, altos graus de insatisfação de consumidores e aumento dos custos dos produtos em razão dos erros e da redução da produtividade do trabalho.
Do ponto de vista gerencial, os resultados são igualmente desastrosos. Pagamentos baixos, ao gerarem baixa performance dos empregados e alta rotatividade, enfraquecem toda a gestão da companhia, submetendo gerentes e empregados a uma constante ansiedade. Uma das consequências desse ambiente tóxico é o fato de que gerentes desviam o tempo que poderiam investir no bom recrutamento e treinamento de funcionários para “apagar incêndios”.
No caso específico de cadeias de lojas de conveniência, Ton mostra que a alta rotatividade de trabalhadores faz com que gerentes tenham que implementar “contratações desesperadas” ou imediatas, sem entrevista ou checagem prévia do candidato, colocando as pessoas no trabalho sem qualquer treinamento.
De forma geral, a baixa qualidade do trabalho faz com que a equipe, em muitos casos, precise trabalhar ainda mais em termos de horas, o que aumenta a possibilidade de que os colaboradores peçam demissão, fazendo com que as expectativas laborais da empresa se tornem muito baixas.
Além disso, em ambiente no qual não podem confiar nos seus trabalhadores, as companhias precisam desenhar sua estrutura de cargos e posições para “pares de mãos intercambiáveis” e não para seres humanos com cérebros. Isso faz com que tenham que reduzir complexidade em suas atividades, perdendo talentos e grandes potenciais, assim como reduzindo produtividade.
Como os gerentes não podem formar uma equipe com um mínimo de estabilidade, passam a maior parte do tempo revisando ou rechecando os serviços alheios ao invés de buscarem mecanismos para um melhor serviço. No que toca aos consumidores, Ton mostra que as mil promoções e programas de recompensas oferecidos para manter a fidelidade não se sustentam quando o serviço é ruim e os consumidores estão expostos na serviços e atendimentos de baixa qualidade.
Em muitos casos, novas frentes de vendas deixam de ser implementadas porque não há pessoal qualificado para assegurar a empresa. Um dos exemplos citados por Ton é o da Amazon, que foi conhecido a partir de memorandos vazados, os quais mostravam que a empresa teve que conter planos de expansão porque, em razão da alta taxa de rotatividade dos seus trabalhadores, não teria como suportar novas frentes de investimento.
Para Ton, esse cenário mostra o quanto a alta rotatividade não é apenas cara e desumana. Ela é efetivamente ruinosa para empregados e para as empresas, embora, em muitos casos, estas nem mesmo quantifiquem os enormes custos relacionados aos baixos salários. Partem da premissa de que estão ganhando e maximizando seus lucros ao precarizarem cada vez mais o trabalho, sem levarem em consideração os altos custos inerentes aos efeitos indesejáveis já mencionados.
É por essa razão que Ton sustenta que é economicamente racional deixar de ver empregados apenas como custos e passar a vê-los também como investimentos. Nesse sentido, ela cita os exemplos das companhias Costco e H–E–B, que compreendem seus empregados como seres humanos que podem levar a maior crescimento e lucratividade do negócio, razão pela qual os pagam significativamente mais do que o mercado. A título de exemplo, em 2022, uma hora média de um trabalhador da Costco era de $26 dólares, quase $10 dólares a mais do que é pago a um trabalhador tipo do varejo.
É importante ressaltar que essa mudança de postura não envolve apenas maiores remunerações. Ton afirma que essas companhias não apenas pagam mais, mas desenharam um sistema que aumenta produtividade e o engajamento dos empregados para que sejam bem sucedidos. Assim, elas eliminam atividades consideradas desperdícios, investem nos empregados e os empoderam para tomar decisões, dando a eles tempo suficiente para que sirvam bem aos clientes e consumidores e participem ativamente da melhoria do negócio.
Outro exemplo mencionado por Ton é o da QuikTrip, uma cadeia de lojas de conveniência com postos de gasolina, onde encontrar um emprego é bastante competitivo, uma vez que a companhia investe nos trabalhadores, oferecendo-lhes treinamento valoroso e atribuindo-lhes maiores poderes para que possam fazer parte ativa do projeto de aumentar as vendas e a satisfação do consumidor.
Assim, ao contrário dos vulneráveis sistemas de alta rotatividade, Ton considera que ambas as companhias construíram um sistema de excelência onde trabalhadores são treinados e tratados com dignidade e respeito, sendo parte fundamental da estratégia de melhoria de desempenho da companhia e de oferta de melhores retornos aos acionistas.
Outra das boas notícias que decorre do trabalho de Ton é que as companhias podem mudar, como se pode comprovar pelos exemplos recentes do Walmart, Sam’s Club, Quest Diagnostics e MudBay. Essas empresas melhoraram os pagamentos, escalas de trabalho e redesenharam seus sistemas para aumentar produtividade e serviços. Junto com o aumento da remuneração, todas elas tornaram seus empregados mais valiosos.
Os resultados dessas mudanças foram expressivos. O Sam’s conseguiu reduzir sua rotatividade em 25%, percentual que foi ainda maior em cargos de gerência. A Quest reduziu a rotatividade em mais de 50% e a MudBay em 35%. Além disso, todas essas companhias observaram expressivo aumento de vendas, diminuição de custos e aumento da produtividade. No Sam’s, a produtividade cresceu 16%, a lealdade do consumidor aumentou 7% e as vendas cresceram aproximadamente 15% sem nenhum outro fator adicional, como a abertura de novas lojas. Na Quest, os custos totais diminuíram em 2 milhões de dólares. Na MudBay, os empregados foram capazes de aumentar as vendas por hora em 12%.
Para Ton, ficou muito claro para os líderes dessas companhias que, para crescerem e aumentarem rendimentos, não podem contar com a baixa performance e a alta rotatividade que decorrem da baixa remuneração. Ao invés de perguntarem os custos decorrentes do aumento dos pagamentos de seus trabalhadores, eles passaram a ver os investimentos nos empregados como diferencial competitivo em relação aos seus rivais.
Como se pode observar, as pesquisas de Ton reforçam vários trabalhos anteriores no sentido de que investir em empregados pode trazer excelentes retornos para as companhias, questionando o falso tradeoff que, estimulado por teses neoliberais, concebe empregados como custos e, de certa forma, como obstáculos para a maximização de lucros das companhias.
Dessa maneira, para além de todas as razões jurídicas e morais que justificam a proteção do trabalhador, fato é que há também evidências econômicas de que isso contribui não apenas para a melhoria de vida dessas pessoas, como também para os próprios resultados econômicos das empresas.
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1 HIRSCHMAN, Albert. A Retórica da Intransigência. Perversidade, Futilidade, Ameaça. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.
2 Ver FRAZÃO, Ana. Desregulação do mercado de trabalho e suas consequências. Serie em três artigos. Jota. https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/constituicao-empresa-e-mercado/desregulacao-do-mercado-de-trabalho-e-suas-consequencias-parte-i-01072020; https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/constituicao-empresa-e-mercado/desregulacao-do-mercado-de-trabalho-e-flexibilizacao-dos-direitos-trabalhistas-parte-ii-08072020; https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/constituicao-empresa-e-mercado/desregulacao-do-mercado-de-trabalho-e-flexibilizacao-dos-direitos-trabalhistas-parte-iii-15072020.
3 Ver FRAZÃO, Ana. Aumento do salário mínimo traz efeitos positivos? Jota. https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/constituicao-empresa-e-mercado/aumento-do-salario-minimo-traz-efeitos-economicos-positivos-14062023; Diálogos entre Direito e Economia. Efeitos do aumento do salário mínimo e a necessidade de se evitar conclusões apressadas, Jota. https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/constituicao-empresa-e-mercado/dialogo-entre-direito-e-economia-10022021.
4 Ver FRAZÃO, Ana. Educação corporativa e o crescente achatamento dos salários dos trabalhadores. Como a cultura corporativa pode ser determinante para os processos decisórios dos grandes CEOs. Jota. https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/constituicao-empresa-e-mercado/educacao-corporativa-e-o-crescente-achatamento-dos-salarios-dos-trabalhadores-02112022.
7 Ver, por todos, CASAGRANDE, Cassio. Empresário, fuja da CLT e não pague INSS: pejotize os trabalhadores, o STF garante! Jota. https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/o-mundo-fora-dos-autos/empresario-fuja-da-clt-e-nao-pague-o-inss-pejotize-os-trabalhadores-o-stf-garante-06112023, FRAZÃO, Ana. Até quando o STF vai virar as costas para a realidade? Jota. https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/constituicao-empresa-e-mercado/ate-quando-o-stf-vai-virar-as-costas-para-a-realidade-31052023
8 TON, Zeynep. The Case for Good Jobs. How Great Companies Bring Dignity, Pay & Meaning to Everyone’s Work. Harvard Business Review Press, 2023.
9 Good jobs are good business. Time. https://time.com/6285516/good-jobs-good-business/