Bolsonaro ainda contamina a democracia mesmo após golpe fracassado

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Os limites de Jair Messias Bolsonaro são os mesmos da democracia brasileira. O indivíduo que, no pós-democratização, mais ousou desafiar as instituições da República foi finalmente posto contra as estruturas constitucionais pela ação da Polícia Federal de 8 de fevereiro passado. Tempus Veritatis, o nome da operação que deixou evidente a trama golpista que se articulava contra as eleições de 2022, indica que o tempo da verdade chegou não apenas para o mau militar que, com a ajuda de seus pares, chegou à Presidência, mas também para a ordem político-jurídica em vigor desde 1988.

Os mais afoitos consideram o ex-presidente derrotado, contando apenas os dias para uma condenação certeira, estando aberta apenas a tipificação criminal. Esquecem-se, porém, que ordens político-jurídicas se sustentam apenas caso tenham lastro na sociedade — ou seja, legitimidade. E, goste-se ou não, o bolsonarismo — aqui entendido como a extrema direita brasileira — surgiu em meio à percepção de que a República brasileira se tornou ilegítima.

Ditadura do Supremo, insegurança jurídica, primazia da família (tradicional, claro), liberdade econômica, direitos humanos para humanos direitos: mais do que palavras de ordem que se propagaram na última década, são indícios de que parte significativa da população não enxerga validade na forma como o Brasil se estruturou nos quase últimos 40 anos. Outros políticos além de Bolsonaro podem vir a representar essa agenda — espera-se que de modo mais civilizado, num campo circunscrito à centro-direita, sem flertes com o autoritarismo e iliberalismo em geral.

Hoje, porém, o ex-presidente ainda é a voz principal da direita brasileira, o que empodera os extremistas, aqueles considerados parte do bolsonarismo raiz, que entoa o lema “Deus, Pátria, Família e Liberdade” com o gosto do fascismo na boca. O próprio fato de Bolsonaro ainda não ter sido preso preventivamente sugere a existência — ainda que implícita — de um amplo cálculo político para evitar comoção popular. Haverá uma reação dos partidários mais radicais quando finalmente seu líder acertar as contas com a Justiça?

Lula — um democrata que foi preso com base em processo repleto de falhas e teve habeas corpus negado pelo STF após o então comandante do Exército Eduardo Villas Bôas ameaçar os ministros da corte — não suscitou ação ferrenha das massas embora à época, em 2018, se imaginasse o contrário. O atual presidente, no entanto, não teve a petulância de convocar manifestações em praça pública — apenas refugiou-se no Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo num ato de simbologia política.

Com a manifestação prevista para 25 de fevereiro na avenida Paulista, em São Paulo, Bolsonaro pretende ir além do campo simbólico. Sua convocação cita a defesa pacífica do Estado democrático de Direito. Pode parecer contraditório, pois o golpe por ele liderado pretendia abolir, na prática, nossa Constituição. Todavia, tudo se encaixa quando nos lembramos que na narrativa bolsonarista supremo é o povo — não a Carta Magna democraticamente elaborada e aprovada, que pode ser substituída por outra depois de ser devidamente rasgada. O povo, por sua vez, seria restrito apenas aos cristãos, homens bons e denominações afins.

Bolsonaro ainda pode ter a ambição de se livrar da cadeia. Sua prioridade, porém, é manter viva a guerra contra o “sistema” e, assim, ainda angariar votos. Na ausência de um partido estruturado à direita — tal como o PT é à esquerda —, o legado bolsonarista depende de um constante estado de mobilização, seja nas ruas, seja nas redes sociais.

Para os que veem neste texto um exagero da avaliação da força bolsonarista, lembrem-se de três dados que refletem a receptividade significativa entre a população ao modelo de país proposto pelo ex-presidente. Em primeiro lugar, cabe lembrar que a pesquisa da Atlas Intel realizada após a operação contra Bolsonaro e demais golpistas revelou que um terço dos brasileiros teria apoiado o estado de sítio, previsto segundo a PF no roteiro do golpe fracassado, para remover poderes do STF e convocar novas eleições. Ou seja: há receptividade para o autoritarismo no Brasil.

Em segundo, o apoio ao bolsonarismo captado por pesquisas costuma ficar aquém daquele manifestado na realidade — por exemplo, os levantamentos estatísticos não captaram o tamanho do desempenho de Bolsonaro e da direita em geral nas eleições de 2022. Em terceiro lugar, é necessário ter em mente que a conjuntura externa importa. Nas entrelinhas, o bolsonarismo ainda aposta numa virada de mesa caso Donald Trump volte à presidência dos EUA. Não tenho dúvidas de que o distanciamento histórico levará à conclusão de que só não tivemos golpe bolsonarista por falta de apoio americano.

O comandante do Exército no fim do governo Bolsonaro, general Marco Antônio Freire Gomes, teria respondido ao então presidente em novembro de 2022 que não valia a pena ter 20 dias de glórias em troca de 20 anos de problemas ao rechaçar a proposta de golpe, segundo a delação de Mauro Cid, militar que era ajudante-de-ordens presidencial. Com seu líder-mor preso ou não, o bolsonarismo tem lastro social suficiente para atacar a democracia brasileira pelas próximas duas décadas ou mais.