Bolsonarismo, comunismo e centrão: procurando os nomes corretos

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Nas discussões públicas sobre a política brasileira, há alguns termos que vêm sendo usados cuja definição não é clara ou seu significado varia de acordo com o interlocutor. Este grau de imprecisão por vezes camufla certas dimensões do fenômeno tratado, impedindo que parte importante de análises sejam feitas.

Vou tratar de três termos aqui em que isto ocorre: bolsonarismo, comunismo e centrão. Todos são de uso corrente hoje e merecem ao menos algumas considerações que nos ajudem a avaliar as consequências de seu uso tal como vem sendo feito.

Comecemos pelo bolsonarismo. Expressão comum para tratar do fenômeno que levou o ex-capitão do Exército e deputado federal do Rio de Janeiro ao maior cargo da nossa República, o termo ainda não possui uma definição consensual. Por ser um conceito relativamente recente, é natural que isso aconteça. Porém, já é possível destacar um aspecto do movimento que parece permanente: o mesmo fenômeno que permitiu a sua ascensão também fez surgir a direita no eleitorado brasileiro disposta a votar enquanto tal.

O bolsonarismo transcende Jair Bolsonaro; este parece ter sido um político que conseguiu se aproveitar de algo que é muito maior do que ele e, por isto, vai permanecer ao menos eleitoralmente e se transformar, ainda que o indivíduo pereça. Como exemplo, em 2026, Bolsonaro não poderá ser candidato à Presidência. Mas alguém duvida que haverá um candidato apoiado por ele ou por seus seguidores que se defina como tal? Se o sociólogo Flávio Pierucci tinha razão ao afirmar que havia uma direita envergonhada no Brasil, essa vergonha se dissipou.

Uma outra evidência deste processo tem a ver com a polarização afetiva – um outro termo ainda com questionamentos sobre seu significado – que é reconhecida no eleitorado brasileiro. Como a outra face da mesma moeda, sugere que despontou um eleitorado brasileiro disposto a defender claramente pautas conservadoras no debate público. Não que este eleitor não existisse antes; ele não se organizava claramente em torno destas pautas, nem se enxergava desta forma.

Ao longo das eleições entre 1994 e 2014, o voto no PSDB parece ter sido antes um voto antipetista e não um voto pela direita. O PSDB nunca conseguiu criar esta identificação por razões diversas, mas principalmente por não assumir em suas campanhas uma identidade de um partido de centro-direita. Em 2026, haverá uma candidatura que defenderá a direita no Brasil. E isto ocorrerá mesmo sem um Bolsonaro ali, seja Jair ou um de seus filhos.

Ainda não há um partido que galvanize essa disputa e coloque-se como referência eleitoral, o que pode impedir que este fenômeno se estenda por mais tempo. Há várias tentativas de ocupar este lugar, mas não sabemos se alguma delas prevalecerá. Esta é uma diferença importante no cenário político e eleitoral brasileiro. Não depende de Bolsonaro e, neste sentido, o termo parece limitar nosso olhar ao associar as mudanças à existência de um líder que se aproveitou de algo que é maior do que ele mesmo.

O segundo termo que merece breves considerações é o comunismo. Expressões como “nossa bandeira jamais será vermelha” e “evitar que o país se torne comunista” se tornaram motes nas manifestações públicas que a direita proporcionou em nosso país. O termo é tão recorrente e central para estas pessoas que o Brasil Paralelo, grupo inegavelmente conservador e exemplar da ideologia da direita nacional, produziu uma série documental no seu canal sobre a história do conceito em uma perspectiva um tanto particular.

Fato é que este problema nunca foi uma questão real da política brasileira. Ainda que possamos identificar movimentos motivados por ideais comunistas, nenhum deles conseguiu qualquer ação concreta que pudesse indicar a implantação de algo que se assemelhasse a uma experiência comunista no país. Muito menos através de partidos políticos pela via eleitoral. Os partidos brasileiros organizados mais próximos deste conceito são hoje o Partido Comunista Brasileiro (PCB), o Partido da Causa Operária (PCO) e o Partido Socialista dos Trabalhadores Unificado (PSTU).

Estes dois últimos são formados de dissidências do Partido dos Trabalhadores (PT) em razão de suas críticas ao movimento de concessão feita pelas lideranças petistas ao modelo “burguês liberal” vigente no país. São partidos de extrema esquerda, críticos ao PT. Este, por sua vez, é exemplo de um partido de centro-esquerda, que implementou ao longo de seus governos na Presidência políticas que o aproximam da social-democracia europeia.

Nada comunista pode ser associado aos governos petistas no Brasil. Cabe dizer aqui que como uma ideologia, as experiências concretas que buscaram organizar a sociedade em torno dos ideais comunistas nunca atingiram plenamente seus objetivos. Nem em Cuba, nem na União Soviética ou em nenhum outro lugar. O mesmo ocorre, por exemplo, com a noção de democracia liberal.

As experiências políticas históricas estão distantes dos potenciais defendidos por seus idealizadores em ambos os casos. Ainda assim, no Brasil, nunca houve sequer tentativas de mudar a organização social profundamente neste sentido. Tem servido apenas para aglutinar parcela dos cidadãos para outros fins, como na ocupação da frente dos quartéis e da tentativa de golpe no 8 de janeiro de 2023. Ou seja, por um medo irreal de implantação do comunismo no país, um ideal que prega a máxima igualdade entre os indivíduos, pessoas estão dispostas a agir para abrir mão de suas liberdades individuais: confusões ideológicas com consequências concretas.

Por fim, muito mais corriqueiro e mundano, o termo centrão também merece considerações. A expressão ganhou projeção no debate constituinte em 1988. Lá, um grupo de parlamentares atuou como moderador de posições divergentes, mais extremas, em torno dos temas que comporiam a Constituição. Nada a ver com o seu uso contemporâneo. O termo atualmente se refere a um conjunto de parlamentares que está disposto a oferecer apoio ao governo de plantão em troca de cargos ou do atendimento de outros interesses.

Para entendermos a imprecisão do conceito, devemos considerar o funcionamento do sistema político nacional. O partido do presidente, líder do Poder Executivo, não forma maioria no Parlamento após uma eleição porque temos muitos partidos conseguindo uma cadeira no Congresso. Quando a votação de um partido foi elevada, ele atingiu 20% do Parlamento, fração baixa para dar ao Executivo o apoio necessário para que seus projetos sejam aprovados.

Assim, o Executivo busca formar uma coalizão, o que significa dividir o poder decisório com outros partidos e, assim, compor a maioria parlamentar. Tal arranjo é muito comum em sistemas parlamentares europeus, por exemplo. Usualmente, essas alianças levariam em conta o posicionamento ideológico dos partidos, pois implicam em partilha de poder – se um presidente de um partido de esquerda compõe uma coalizão com um partido de direita, ele está aceitando que algumas políticas de direita sejam implementadas em seu governo. Porém, aqui no Brasil, há um conjunto de partidos que está disposto a compor sempre com o governo, pouco considerando as questões ideológicas.

O grande exemplo desse movimento é notado na formação do PSD. Em 2011, durante o primeiro governo Dilma, dissidentes do PFL, claramente oposicionista ao PT, fundam o novo partido. Gilberto Kassab, um de seus líderes, é questionado em uma entrevista sobre qual a ideologia do partido e responde que não seria um partido nem de direita, nem de esquerda. Não pôde dizer que seu intuito era formar um partido “governista”.

Ideologicamente, o centrão é composto por partidos de direita ou centro-direita. Mas o que os distingue não é a ideologia e sim a disposição a compor o governo. À direita, há partidos ideológicos, como o Novo, que não estão dispostos a fazer concessões apenas para fazer parte do governo. Ou seja, ao usar o nome centrão fazemos alusão a um eixo ideológico para nos referir à disponibilidade de um partido oferecer ou não apoio ao governo. Talvez “dispostos” seja mais correto.

Debates políticos no âmbito público são sempre imprecisos, seja porque é preciso comunicar rapidamente alguma ideia, seja pela novidade dos fenômenos que tentam ser tratados. É natural que isto ocorra. Mas é preciso estarmos atentos às consequências dessa imprecisão. Elas também podem importar.