Na manhã em que veio a liminar na ADPF 1259, parte da reação política e da imprensa tratou a decisão como uma espécie de seguro de vida do Supremo: Gilmar Mendes “blindou” os ministros, o que reduziria a “participação popular” e teria ido além do que a Constituição autoriza. A narrativa, nos parece, é sedutora – sobretudo num ambiente em que a crítica ao STF virou energia política barata.
Mas o que a decisão faz, de fato, é algo bem mais complexo: ela reconstrói o rito do impeachment de ministros à luz da Constituição de 1988 e tenta tirar a Corte do campo minado do populismo autocrático, sem eliminar a sua responsabilização política. E é justamente por isso que, paradoxalmente, ela aumenta a responsabilidade democrática sobre a escolha do procurador-geral da República e a composição do Senado.
O que decidiu Gilmar?
As ADPFs 1259 (Solidariedade) e 1260 (AMB) atacam dispositivos da Lei 1.079/1950, a velha Lei do Impeachment, no que toca ao julgamento de ministros do STF. Questionam desde o catálogo de condutas vagas (como “proceder de modo incompatível com a honra e o decoro de suas funções”) até regras sobre quem pode denunciar e com qual quórum o Senado deve receber a acusação.
Na decisão cautelar, Gilmar, alinhado em larga medida ao parecer da PGR, promoveu quatro movimentos centrais:
- Exclusividade da PGR para oferecer a denúncia: deixa de valer a regra que permitia que “qualquer cidadão” apresentasse pedido de impeachment ao Senado contra ministros do STF ou o próprio PGR. Agora, só o chefe do Ministério Público pode fazê-lo.
- Quórum qualificado de dois terços para o Senado receber a denúncia: a maioria simples prevista na Lei 1.079 é considerada não recepcionada. Para que o processo seja instaurado, passa-se a exigir o mesmo patamar de apoio que a Constituição demanda em outros pontos para atos de igual gravidade.
- Vedação a afastamento automático e corte de subsídios: o modelo pensado em 1950 – afastamento imediato do cargo, com redução de vencimentos – é considerado incompatível com as garantias da magistratura. Essas medidas deixam de ser automáticas e não podem equivaler a punição antecipada.
- Proibição de usar o mérito das decisões como fundamento de impeachment: Gilmar reforça que responsabilizar ministros pelo conteúdo das decisões configura criminalização da interpretação jurídica – algo que a própria jurisprudência do STF já vinha vedando em outros contextos.
Em síntese, a liminar redesenha o jogo: menos porosidade ao ataque difuso e permanente, mais peso institucional concentrado em dois atores – PGR e Senado – e um recado claro de que divergência jurisprudencial não é crime de responsabilidade.
Autodefesa (quase) não é autoproteção corporativa
Há quem leia essa reconfiguração como puro corporativismo. Como vocalizam os juristas mais conservadores e a audiência mais reacionária, seria um STF legislando em causa própria para se blindar de qualquer controle. Mas essa leitura ignora o problema concreto que está na origem da ADPF.
Desde 2019, e de forma ainda mais intensa após o 8 de Janeiro, o Senado passou a ser inundado por pedidos de impeachment contra ministros – boa parte deles copiados de discursos em rede social ou de peças padronizadas, sem base fática ou jurídica minimamente consistente. Um ecossistema de “denúncias” passou a usar a Lei 1.079 como instrumento de intimidação política, mais do que de responsabilização. Esse espólio bolsonarista docilizou um Senado, por isso, ainda mais hostil.
Nessas condições, manter a legitimidade irrestrita de “qualquer cidadão” significava transformar o impeachment em mecanismo permanente de assédio institucional, com o presidente do Senado como único filtro efetivo. Ao mesmo tempo, a possibilidade de instaurar o processo com maioria simples abria espaço para que uma maioria eventual – resultante, por exemplo, de uma onda eleitoral de extrema direita em 2026 – pudesse deflagrar o rito contra um ou mais ministros com custo político relativamente baixo.
É esse cenário que a decisão de Gilmar tenta enfrentar. Ao exigir PGR e dois terços, o Supremo está menos “colocando a si mesmo acima da lei” e mais conformando uma lei pré-constitucional a um arranjo minimamente compatível com a independência judicial. ADPF serve exatamente para isso: testar a recepção de normas antigas ao novo texto constitucional.
Por bem ou por mal, o movimento não elimina o impeachment. Torna-o excepcional, caro e institucionalmente qualificado – como convém a um mecanismo que, no limite, pode reconfigurar o equilíbrio entre os Poderes.
A legitimidade em jogo é a do próprio STF
Ao interferir na Lei 1.079, o STF estaria “legislando” e “protegendo os seus”, corroendo sua legitimidade democrática. Mas aqui há um ponto no rodapé da política, pois se o Supremo não reage à erosão das condições mínimas de independência de seus membros, sua legitimidade também se deteriora – só que por inação.
A multiplicação de pedidos de impeachment sem filtro institucional robusto cria um ambiente em que ministros são pressionados a decidir sob a constante ameaça de denúncia a cada voto impopular, o Senado é tentado a usar o simples recebimento desses pedidos como moeda de troca contra decisões incômodas e a sociedade passa a naturalizar a ideia de que toda divergência política é, em si, motivo legítimo de cassação.
Ao reafirmar que crimes de responsabilidade não podem ser confundidos com “decisões de que não gostamos” e ao condicionar o início do processo a atores responsáveis (PGR e dois terços do Senado), o STF está, na prática, protegendo a própria capacidade de decidir contra maiorias circunstanciais.
É uma forma de autodefesa institucional que, goste-se ou não de seu desenho, tem lastro na própria lógica liberalizante de instituições em um arranjo de separação de poderes – e, nesse sentido, é legítima.
O novo centro de risco: a democracia de procurador-geral
Nada disso significa, porém, que a solução adotada esteja livre de riscos. Ao fazer da PGR o único portão de entrada para o impeachment, a decisão concentra um poder considerável nas mãos de uma pessoa nomeada pelo presidente da República e aprovada pelo próprio Senado.
Numa conjuntura de razoável normalidade institucional, isso pode ser virtuoso: a PGR tende a atuar como filtro técnico e a conter iniciativas puramente revanchistas – como, aliás, já sinalizou o atual procurador, Paulo Gonet, ao defender a exclusividade do Ministério Público para essas denúncias e a necessidade de adequar a Lei do Impeachment às garantias da magistratura.
Mas é igualmente fácil imaginar o outro cenário: um presidente eleito em ruptura com o sistema de freios e contrapesos, um procurador-geral escolhido precisamente por sua disposição em usar o cargo como arma política servil a ele e um Senado com maioria hostil ao STF, disposto a converter ressentimentos em processos de cassação.
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Nesse contexto, a exclusividade da PGR pode ser convertida em monopólio do arbítrio, vez mais que a mesma chave que, hoje, impede a proliferação de pedidos infundados, amanhã pode abrir a porta para um impeachment calibrado contra ministros específicos, transformando divergências institucionais em “crimes de responsabilidade” sob medida.
Em outras palavras: a decisão de Gilmar reduz o risco difuso, mas aumenta o risco concentrado. A batalha deixa de ser travada em milhares de petições de cidadãos e congressistas e passa a depender, decisivamente, de quem ocupa a cadeira de procurador geral – e de como o Senado de 2026 escolherá reagir a esse novo desenho.
Entre a blindagem impossível e a vulnerabilidade total
O dilema de fundo é que não existe arranjo institucional “neutro” para julgar ministros do STF – e o constitucionalismo já nos ensinou, desde Alexander Bickel, que não há corte que exerça controle forte sobre maiorias políticas sem carregar algum “déficit” de legitimidade democrática.
Com legitimidade popular direta, o impeachment corre o risco de virar plebiscito permanente contra decisões impopulares, deslocando para a rua e para as redes a velha “dificuldade contramajoritária” de que fala Bickel: toda decisão contra a maioria passa a ser tratada como abuso e, portanto, como motivo de punição.
Com filtros institucionais fortes, inevitavelmente surge o discurso da “blindagem” e da corte que “se fecha em si mesma”, apoiando-se mais em sua legitimidade de resultado – proteger direitos e estabilizar o jogo constitucional – do que em uma legitimidade de origem, como lembram autores como Habermas e Dworkin ao discutir o papel das cortes em democracias complexas.
A decisão na ADPF 1259 tenta justamente escapar desses extremos: recusa a ideia de um STF “intocável”, mantendo o impeachment como possibilidade real, ainda que excepcional, mas também recusa um modelo em que a pressão política cotidiana se converta em ameaça constante de cassação e capture os ministros pelo medo.
O Supremo só continuará a ser reconhecido como tribunal constitucional se puder decidir contra as maiorias circunstanciais – inclusive contra maiorias parlamentares e contra as ondas de opinião que o impeachment inevitavelmente mobiliza. O preço dessa escolha, porém, é deslocar o debate sobre legitimidade para outras arenas democráticas: a indicação e aprovação do procurador-geral e a eleição dos senadores – justamente os campos onde, hoje, a extrema direita aposta suas fichas para 2026. Em vez de desaparecer, a disputa sobre quem controla o STF migra do interior do Tribunal para a luta pelo comando das instituições que agora concentram a chave do impeachment.
O recado final
Lida friamente, a liminar de Gilmar Mendes na ADPF 1259 não é ato de autoindulgência corporativa, mas uma autodefesa da função jurisdicional diante de um ambiente em que o impeachment de ministros vinha sendo normalizado como arma de disputa política.
Essa autodefesa reforça a legitimidade do STF hoje – na medida em que preserva sua capacidade de decidir sem que cada voto seja um potencial gatilho de cassação –, mas torna ainda mais claro onde estarão os próximos pontos de fricção do regime: na PGR e no Senado.
Se o futuro procurador-geral e a próxima maioria senatorial forem capturados por projetos iliberais, o novo modelo pode se converter em instrumento de perseguição seletiva. Se, ao contrário, essas instâncias forem ocupadas por atores minimamente comprometidos com o Estado de Direito, o país terá dado um passo importante para tirar o Supremo do balcão das bravatas e recolocá-lo no lugar que a Constituição lhe reserva.
Entre blindagem impossível e vulnerabilidade total, a decisão de Gilmar escolhe um caminho imperfeito – como todos os caminhos institucionais –, mas que, por ora, parece ser o único capaz de proteger a legitimidade do STF sem abdicar do controle democrático.