Bens de capital, financiamento privado do agro e o PL 3/24

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O crescimento do financiamento privado e a aproximação do mercado de capitais do agronegócio têm marcado a parcela de destaque do setor na economia e sua representatividade no PIB nacional conforme verificado nos últimos anos – alcançando 23,8% em 2023.

Segundo relatório elaborado pela Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), para o Plano Safra de 2024/2025, estima-se a necessidade de R$ 570 bilhões de custeio para atender os pequenos, médios e grandes produtores rurais. Segundo o relatório, diante da escassez e dificuldade de acesso ao crédito oficial subsidiado pelo governo federal, as propostas prioritárias para o Plano Safra de 2024/2025 envolvem, justamente, o fomento do funding privado do setor.

A tendência legislativa verificada nos últimos anos tem demonstrado a preocupação de viabilizar novas formas de incentivo ao crédito privado. Exemplos são as recentes Leis do Agro – que possibilitaram o aumento relevante na utilização dos instrumentos privados de financiamento, o que apenas foi possível pela aplicação de políticas públicas bem estruturadas na edição de tais normas. Também se destaca a lei que instituiu o Fundo de Investimento nas Cadeias do Agronegócio (Lei 14.130/2021), que fez do Fiagro um relevante veículo de aporte de recursos privados para o fomento setorial.

Os números apurados no relatório da CNA falam por si só: entre 2020 e 2023, o aporte de recursos em Cédulas de Produto Rural (CPRs) aumentou de R$ 22 bilhões para R$ 298 bilhões. Os recursos obtidos via Certificados de Recebíveis do Agronegócio (CRAs) também saltaram de R$ 48 bilhões para R$ 128 bilhões no mesmo período. Em relação ao Fiagro, os recursos obtidos em 2022 eram de R$ 10 bilhões, saltando para R$ 38 bilhões em 2023.

A apuração mais recente conduzida pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM), em seu Boletim do Agronegócio publicado trimestralmente, corrobora a relevante participação dos recursos privados no setor agroindustrial.

No primeiro trimestre de 2024, os recursos obtidos via Fiagro atingiram R$ 36 bilhões, o que representou uma redução de 5% em relação ao trimestre anterior, mas significou um aumento de 144% quando comparado a março de 2023. Já os recursos obtidos via CRAs atingiram R$ 140 bilhões, um aumento de 7,1% em relação ao trimestre anterior – deste volume, 87% dos recursos foram destinados à produção, beneficiamento, industrialização e comercialização de produtos agropecuários, enquanto 13% foram destinados à produção, industrialização e comercialização de insumos agropecuários.

Os indicadores acima possuem correlação direta com a segurança jurídica conferida a tais títulos privados e veículos de financimento. E, conforme aponta o relatório da CNA sobre o Plano Safra de 2024/2025, o aprimoramento do sistema de financiamento privado dependerá de inúmeros fatores, dentre os quais destacam-se a necessidade de redução de custos e de desborucratização para constituição e registro de títulos, bem como da aprimoração do sistema de garantias.

Neste ponto, o novo Marco Legal das Garantias (Lei 14.711/2023) também se insere no movimento que busca reduzir custos financeiros das operações de financiamento, desborucratizar e otimizar a constituição de garantias sobre ativos, e incrementar a segurança jurídica e recuperabilidade dos créditos.

A superação do alto custo do crédito e das taxas de juros impostas, da crescente demanda de garantias, e da escassez de recursos passa inevitavelmente por esse caminho que a legislação e os agentes econômicos vêm tentando construir – ao qual o PL 3/2024 parece caminhar na direção contrária.

O PL 3/2024, apresentado em 10 de janeiro pelo Poder Executivo, trouxe como mote a aprimoração do instituto da falência e propôs a alteração da Lei de Recuperação Judicial e Falência (Lei 11.101/2005), que apenas há três anos foi amplamente reformada pela Lei 14.112/2020. O texto aprovado em 26 de março pela Câmara dos Deputados acabou por sugerir uma nova e ampla modificação na LRF.

A condução do processo legislativo na Câmara “a toque de caixa”, com a apresentação do PL e aprovação do Relatório Substitutivo em cerca de dois meses, foi alvo de críticas pela falta de debate público e de participação da comunidade jurídica e dos agentes econômicos. Além disso, alterações incluídas de forma açodada se mostraram ora incompatíveis com a realidade prática verificada nas recuperações judiciais e falências, ora potencialmente lesivas ao próprio espírito da norma, que é justamente a preservação e o estímulo à atividade empresarial.

No âmbito do agronegócio, diversos vetores do financiamento privado revelaram a preocupação com a proposta de ampliação da proteção conferida pela LRF – atualmente limitada aos “bens de capital” – para abarcar a expressão “ativos essenciais”.

A proteção conferida pela lei vigente recai sobre os “bens de capital” – conceito no qual se incluem os bens utilizados no processo produtivo de outros bens (como maquinários agrícolas, veículos, silos, geradores). Mesmo que outorgados em garantia fiduciária pelo devedor, tais bens não podem ser excutidos pelo período de blindagem durante o qual ficam suspensas as execuções contra o devedor.

O PL propõe a ampliação dessa proteção, para que não seja permitido, durante o prazo de suspensão, a venda ou a retirada dos “bens de capital e dos ativos essenciais à sua atividade empresarial, ainda que incorpóreos ou intangíveis, excluídos créditos e dinheiro”.

Com a inclusão do termo “ativos”, e da expressão “ainda que incorpóreos ou intangíveis”, todo e qualquer “ativo” do devedor estaria potencialmente protegido – não apenas o bem de capital empregado no processo produtivo, como também o bem intermediário agregado e consumido totalmente no processo produtivo de outros bens (como matérias-primas, insumos, estoques), até mesmo bens de consumo destinados à utilização ou à comercialização.

Longe de ser alarmista, a preocupação do mercado é, de fato, genuína. A proposta de alteração de um único dispositivo, embora pareça singela, tem o potencial de gerar efeitos deletérios relevantes ao financiamento privado do agronegócio.

A superação do termo “bem de capital” pode inviabilizar os lastros das principais operações de financiamento mencionadas acima – as garantias concedidas pelos produtores rurais, em contrapartida ao crédito e aos insumos obtidos para fomento da atividade de produção rural. Nos termos propostos pelo PL 3/24, os credores que tenham obtido determinados “ativos” em garantia fiduciária serão impedidos de acessar tal garantia no cenário de insolvência do produtor rural tomador de crédito, sendo irrelevante que tais ativos sejam ou não “bens de capital”.

O outro lado da moeda será a dificuldade na obtenção de novos financiamentos pelos produtores rurais e outros agentes econômicos integrantes da cadeia agroindustrial A diminuição das chances de recuperabilidade do crédito com a impossibilidade de acessar ativos outorgados em garantia estão intrinsecamente atreladas ao risco das operações de financiamento. E, se aprovado o cenário proposto pelo PL 3/24, serão contingenciadas na análise de risco, potencialemtne acarretando encarecimento e dificuldades de acesso ao crédito.

Não há dúvidas sobre o impacto que tal alteração provocará no financiamento privado do agronegócio. Sobretudo, diante da parcela relevante – senão imprescindível – que vetores de financiamento como as instituições financeiras, as tradings, as multinacionais de insumos, as revendas e o próprio mercado de capitais representam no fomento da produção rural.

A fragilização de garantias na seara do sistema privado de financiamento do Agronegócio poderá gerar o efeito contrário ao intuito da LRF, que é justamente a preservação da atividade empresarial, da fonte de produção de renda e de geração de empregos, alpém do estímulo à atividade econômica.

O PL 3/24 ainda passará pela análise do Senado, permanecendo as dúvidas sobre se as Casas do Congresso se atentarão para tal problemática. Se mantida a proposta de alteração, só caberá questionar o quanto da projeção do funding privado destinado ao agronegócio para os anos seguintes se colocará em xeque, frente às incertezas e à falta de previsibilidade na recuperação do crédito. E, pior, qual o incremento de custo do crédito será enfrentado pelos produtores rurais nos anos-safra que seguem.