Barroso não explica confusão entre público e privado na festa do iFood

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O ministro Luís Roberto Barroso, do alto de sua conhecida soberba, reclamou daqueles que criticaram sua participação heterodoxa em festim privado na mansão do CEO do iFood, litigante com interesse direto em causa relevantíssima no STF. Chegou a sugerir, num ato de extrema arrogância, típico de quem não tem razão, que os críticos são “incultos”.

Porém, apesar de toda a sua cultura, Barroso não explicou a confusão que promoveu entre interesse público e interesse privado, ao supostamente participar ou promover uma arrecadação de fundos entre poderosos empresários para uma nobre causa.

Antes de mais nada, aliás, diga-se que a ideia em si de estimular, com bolsas de estudo, o ingresso de negros na magistratura é extremamente louvável e importante. Mas, como diz o ditado popular, “de boas intenções o inferno está cheio”.

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Para começo de conversa, onde está no art. 103-B da Constituição a função do CNJ de promover “políticas públicas” que demandam recursos orçamentários? Não há. Cumpre ao órgão o controle externo da atividade judiciária, apenas. A questão pode parecer uma formalidade, mas não é. O respeitável projeto de estímulo ao ingresso de magistrados negros, com providência de bolsas de estudo, tem um custo estimado de R$ 7 milhões, segundo estimativa do próprio presidente do CNJ.

Ocorre que esse valor, embora insignificante diante do orçamento do Judiciário, não tem previsão legal, já que não é atribuição do Judiciário distribuir bolsas de estudo. Então, como se diz, “tudo que começa errado só pode terminar errado”. Ao que argumenta Barroso, não houve contribuições espontâneas suficientes para o programa do CNJ e por isso convocou-se o malfadado jantar beneficente.

A coisa fica mais estranha quando ouvimos a justificativa oficial do presidente do STF na última sessão do CNJ: “Na última quinta-feira nós realizamos um jantar em São Paulo para obtenção de recursos para o nosso programa de bolsas (…); e portanto com a ajuda da procuradora-geral do Estado de São Paulo, Inês Coimbra, fizemos um jantar para arrecadação de fundos com empresários de São Paulo”.

Repare-se no detalhe: “Nós realizamos um jantar”, “Nós fizemos um jantar”. Nós quem, ministro? O jantar foi organizado pelo presidente do STF e pela chefe da PGE de São Paulo? É uma decisão pública, então, mas executada na esfera privada? Se a iniciativa foi do chefe do STF ou da chefe da PGE, estes agentes públicos pediram ao executivo do iFood que emprestasse a casa e pagasse a festa? E por que o iFood? Houve um encontro de Barroso com o líder empresarial, que, repita-se, tem processo no Supremo? Onde e quando isso ocorreu?

Tudo que envolveu esse jantar deixa dúvidas no ar. Sintetizando, se a causa é decorrente de uma decisão (pública) do CNJ, por que a arrecadação se faz em uma festa (privada) de contornos nababescos, com cantora famosa e chef estrelado, com direito a duetos musicais com o presidente do STF? É preciso oferecer a proximidade com o presidente da Corte como atrativo à arrecadação?

Também não se sabe, até o momento, quais outras grandes empresas compareceram ao jantar benemerente da parceria público-privada. Quais destes convivas e “generosos” doadores têm interesse em casos no STF? O que é, afinal, público e privado nessa história? Nada disso foi respondido pelo presidente do STF e do CNJ. E mais, a imprensa noticiou que o jantar do patronato teria sido “em homenagem” ao ministro. Foi ou não? Exibir os convites da festa ajudaria a esclarecer essa dúvida.

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Ainda, se o objetivo era estimular publicamente as doações, qualquer entidade interessada poderia aparecer no evento para contribuir com a nobre causa? Se o “jantar beneficente” houvesse sido anunciado publicamente, talvez os trabalhadores reunidos na Aliança Nacional dos Entregadores de Aplicativos também tivessem interesse em comparecer e participar, fazendo uma doação modesta, mas tendo a oportunidade de contar para o ministro Barroso que trabalhadores da categoria que prestam serviços ao iFood estão morrendo aos borbotões, sem direitos trabalhistas ou previdenciários. E que grande parte dessas vítimas de acidentes de trabalho são negros e periféricos. Mas, claro, ninguém chamou os sindicatos para essa festa. “Eles não usam black tie”, lembrou o jornalista Fernando Molica.

Por fim, se Barroso está verdadeiramente preocupado com a exclusão racial em nossa sociedade, poderia cogitar de proferir voto no RE conferindo direitos trabalhistas previstos na Constituição aos entregadores (na maioria negros e pardos), como acaba de acontecer na Superior Corte de Justiça de Portugal. Mas, é claro, essa decisão dificilmente sairá da caneta do presidente do STF, porque há o princípio constitucional da livre iniciativa a impedi-la, como sempre.